Contrarianismo não é a mesma coisa que cepticismo

por João Pedro Martins,    16 Setembro, 2021
Contrarianismo não é a mesma coisa que cepticismo
Foto de Fabio Hofnik: https://flic.kr/p/74LUif | (CC BY-ND 2.0)
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Tenho encontrado pessoas que confundem facilmente o contrarianismo com o cepticismo, quando na verdade são coisas distintas. O contrarianismo mais facilmente encaixaria no fenómeno do pseudocepticismo, se quisermos ir por aí.
Como se pode constatar com a pandemia, o contrarianismo é quando alguém adota uma postura compulsivamente do contra, sempre que algo é lido como uma “ideia popular” ou uma “narrativa dominante”, “oficial”, custe o que custar, não raramente de forma dogmática, mesmo que no fundo até tenha boas intenções, segundo a sua óptica.

Algumas pessoas poderão perguntar: “porque não usas simplesmente o termo negacionista, porque é que lhe chamas contrarianismo?”. Não uso aqui o termo negacionista porque não me refiro simplesmente à pessoa que nega a existência de uma pandemia, ou à pessoa que nega a eficiência desta ou daquela medida em particular. Ou à pessoa que nega a seriedade de uma situação ou o risco da mesma. Refiro-me a quem até pode aceitar que a pandemia existe, quem pode aceitar os riscos que ela acarreta, que pode até conceder que determinada medida adotada pode funcionar pontualmente, mas que acha que o caminho nunca pode passar pela forma de combate mais adotada. Contrarianismo, aqui, difere também de negacionista por isso mesmo. Refiro-me às pessoas que acham que as teses adequadas têm de constar impreterivelmente entre as mais inconformistas possíveis e que, quanto mais inconformistas, melhor será o resultado e a sua recomendabilidade. Por falar em inconformismo, o contrarianismo deriva precisamente dessa assunção de que tudo aquilo que se enquadra no que elas entendem por conformismo terá de ser lido como automaticamente mau, indesejável, e que o inconformismo será automaticamente bom e preferível, mesmo que passe por defender a ingestão de produtos contra os pareceres dos principais órgãos científicos, entre várias outras vias ditas “inconformadas com a maioria”.

Percebe-se o quão sedutora pode ser a ideia da busca constante pela inconformidade, pela indomabilidade, ou a carga sedutora da suposta abertura da mente para aceitar até mesmo as ideias mais arrojadas. O problema, contudo, é quando alguém tem uma mente tão aberta (demasiado aberta) ao ponto do cérebro cair ao chão, como lembrava Carl Sagan. Existem limites materiais para o inconformismo e para a irreverência de ideias, que chocam com elas e facilmente as tornam contraproducentes. Temos de lidar com a realidade tal como ela é, não como gostaríamos que ela fosse, já que tal seria idealismo, ingenuidade até.

“O contrarianismo, particularmente num contexto de pós-verdade, virou um estilo de vida, mais do que uma preocupação sincera com a busca pela verdade.”

Por outras palavras, reina nesses grupos o princípio de que uma “narrativa dominante” não pode estar correta, jamais, nem deve ser assimilada, precisamente porque é “dominante”, “oficial”, e o que é “oficial” e “dominante” deve ser lido automaticamente como antitético ao caminho a seguir. Implícita está a ideia de que se algo fosse o caminho correto a seguir, então não seria certamente “dominante”. Daí o uso e abuso da analogia dos carneiros, com a soberba de quem se acha diferente da carneirada toda, por ter descoberto a verdade escondida que eles não querem que tu saibas. Mais uma vez, pessoas com determinados traços de personalidade são mais suscetíveis de cair nestas esparrelas indutivas.

É uma petição de princípio que usam. Uma outra falácia similar, da mesma família, é a reductio ad Hitlerum, que seria basicamente dizer “sabes quem também propunha isso? O Hitler”. Beber água não se torna indefensável automaticamente só porque o Hitler também bebia água, ou só porque o Hitler poderia ter programas a alertar para a importância da hidratação no devido funcionamento do organismo.

Um céptico, propriamente dito, analisa uma narrativa e o teor proposicional da mesma, independentemente das questões paralelas, como as da popularidade ou impopularidade de uma determinada ideia.
Alguém que está absorto em contrarianismo, por outro lado, opõe-se de forma compulsiva ao que é maioritário, muitas vezes sem escrutinar minimamente aquilo que adota em substituição, como aconteceu com a defesa do uso da hidroxicloroquina, até mesmo na ausência de um parecer favorável da comunidade científica. Malta do contrarianismo que entretanto passou para a defesa da ivermectina (um desarasitante) num ápice, apesar da alegada certeza que tinham a respeito da suposta eficácia da hidroxicloroquina para resolver o assunto, e mais uma vez sem um parecer favorável da comunidade científica.

O adepto do contrarianismo contenta-se com uma ideia minoritária em função da minoritariedade em si mesma, como se essa minoritariedade tivesse um valor intrínseco. Enquanto for minoritária, o contrariano atinge uma certa (e ilusória) paz interior. Digamos que são uma espécie de hipsters epistemológicos. Se uma ideia se tornar popular, toca a descartar automaticamente e procurar a próxima ideia impopular a ser adoptada.

Encontramo-nos por isso mesmo perante uma ironia dos diabos: temos malta que não se cala em relação às reticências que têm a respeito da segurança das vacinas, mesmo após milhões e milhões de doses administradas (só em Portugal já temos 80% da população devidamente vacinada), mas que por alguma razão aceita automaticamente a pretensa recomendabilidade da ingestão de um desparasitante, a ser usado numa dose que seria usada em cavalos, que passa a ser vista como preferível e totalmente defensável, mesmo quando é conhecida por causar graves problemas renais e hepáticos se ingerida nessas doses. Esta mesma malta não se calaria se, porventura, a ivermectina passasse a ser oficialmente recomendada, assim que começassem a cair os primeiros indivíduos no hospital, tal como estão a cair de momento à conta de quem resolve fazer uma automedicação, recorrendo a este fármaco contra tudo o que é consenso científico.

O contrarianismo, particularmente num contexto de pós-verdade, virou um estilo de vida, mais do que uma preocupação sincera com a busca pela verdade.

É legítimo questionar os propósitos das patentes (cuja suspensão foi bloqueada pelos países do costume), e o que isso significa para o mundo em termos de obstáculo contraproducente até mesmo para as premissas de quem defende a importância das patentes. É legítimo lamentar os propósitos lucrativos por detrás da lógica funcional das farmacêuticas, etc. O que é absurdo e nada legítimo é descartar tão prontamente a importância de se atingir um rigor científico nesse processo, ao ponto de se recusar esta ou aquela tecnologia, este ou aquele mecanismo que apresente uma utilidade solidamente demonstrada, especialmente quando se trata de debelar uma pandemia num momento tão crítico como o que atravessamos.

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Nestes últimos dias, navegando pelas redes sociais, tenho encontrado várias pessoas que citam, sem aparente honestidade, as atuais restrições de entrada em certos espaços e eventos, em vigor para quem não possui o certificado de vacinação, comparando-as depois com as restrições de acesso aos espaços para quem não tinha o "certificado de arianismo", ou "Ahnenpaß", na Alemanha Nazi. Este é muito possivelmente o argumento mais dúbio que estas pessoas poderiam partilhar sobre o assunto. Mais facilmente um "reductiu as hitlerum" destes seria usável e instrumentalizável contra negacionistas e opositores de medidas de contenção da pandemia, lembrando que eram precisamente os nazis que defendiam que os elos mais fracos deveriam ser deixados para trás...

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