“Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain, tenta desmistificar o culto do Chef e da elitização da gastronomia

por José Moreira,    13 Novembro, 2022
“Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain, tenta desmistificar o culto do Chef e da elitização da gastronomia
Capa do livro “Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain (ed. Livros d’Hoje)

Anthony Bourdain publicou o ensaio “Don’t Eat Before Reading This” na revista The New Yorker em 1999. O sucesso desta crónica catapultou a carreira de escritor e originou “Cozinha Confidencial”, que o estabeleceu como um dos nomes mediáticos mais importantes do meio gastronómico. Aqui regista as memórias do seu percurso culinário e desmonta alguns dos segredos, melhor ou pior guardados da indústria. Tornou-se posteriormente o primeiro grande influenciador de viagens gastronómicas (muito antes do termo existir) através dos seus programas, onde viajou mergulhado nas culturas e comidas do mundo.

“O que eu quero é contar-lhes sobre os recantos escuros do submundo dos restaurantes – uma subcultura com séculos de hierarquia militarista e uma crença em «rum, bandalheira e chicote»“, refere Anthony Bourdain na página 16 deste livro.

Destaca-se que passam 20 anos desde que Bourdain imortalizou Portugal pela primeira vez em televisão, quando trouxe o programa “A Cook’s Tour” ao Porto em 2002. Dividiu a experiência pela vertente urbana e rural da região, realizou o programa na companhia do amigo José Meirelles, português e seu antigo patrão na Brasserie Les Halles em Nova Iorque. As restantes visitas a Portugal dividiram-se em passagens pelos Açores (2009), por Lisboa (2012), com o programa “No Reservations”, e no regresso ao Porto (2017) com um episódio de “Parts Unknown” (último programa que apresentou antes da sua morte em 2018). 

A passagem por Lisboa em 2012 é considerada um grande “postal” turístico da cidade e terá divulgado amplamente a experiência e gastronomia da capital. O episódio fica marcado pelas presenças de ilustres da cozinha nacional como Ljubomir Stanisic, José Avillez e Henrique Sá Pessoa, mas também por outras presenças da vida Lisboeta como António Lobo Antunes, José Diogo Quintela e Carminho.

Ora, esta relação afectiva com Portugal, que ficou evidente nestes quatro episódios por cá filmados, está intimamente descrita no livro, estando ligada à sua primeira experiência no mundo da restauração em Provincetown, Massachusetts. Bourdain afirma: “Provincetown era (e é) essencialmente uma pequena aldeia piscatória portuguesa que vai até à ponta em forma de anzol do Cabo Cod”. 

Este seu primeiro contacto com a influência portuguesa é ilustrada de diversas formas, sempre coloridas e estranhamente familiares: “Falavam o seu dialecto próprio, um calão incrivelmente profano derivado dos termos de contracultura e do idioma português local, dito com inflexões irónicas, como por exemplo chamando-se uns aos outros «Sóóó» para «sócio», «dááálin» para «darling». Saqueavam tudo o que podiam, armazenando com bastante antecedência para os meses magros fora da estação”.

Vagamente inspirado por “Na Penúria em Paris e em Londres” de George Orwell, numa escrita contundente e pragmática, descreve um percurso pelas cozinhas americanas que durou cerca de vinte anos (com passagem no Culinary Institute of America, pelo meio). Este percurso tem episódios que vão de hilariantes aos pesadelos da droga e do álcool. Destaca ainda as pessoas que fizeram parte desse percurso, dos colegas de cozinha aos clientes.

“Acabei por conhecer actores, agiotas, executores, ladrões de automóveis, tipos que vendiam bilhetes de identidade falsos, vigaristas dos telefones, estrelas pornográficas, e uma alerna drogada que frequentava uma escola de agentes funerários durante o dia.”

“Cozinha Confidencial – Aventuras no Submundo da Restauração”, de Anthony Bourdain.

Após desconstruir as suas vivências no mundo gastronómico, Bourdain tenta até estabelecer um código de conduta informal da cozinha, baseado nas suas experiências:

1 – Envolve-te completamente;
2 – Aprende espanhol;
3 – Não roubes;
4 – Chega sempre a horas;
5 – Nunca atires a culpa para os outros;
6 – Nunca dês parte de doente;
7 – Preguiça, desmazelo e lentidão é mal;
8 – Prepara-te para assistir a todas as variedades de loucura humana e injustiça;
9 – Espera o pior;
10 – Tenta não mentir;
11 – Evita restaurantes que têm o nome do dono;
12 – Não te esqueças desse currículo!;
13 – Lê!;
14 – Vê as coisas com sentido de humor. Vais precisar bastante.

Este livro demonstra a personalidade de alguém que tentou activamente contribuir para desmistificar o culto do “Chef” e da elitização da gastronomia. Na sua atividade posterior deu destaque a pequenos restaurantes, muitas vezes fora dos circuitos turísticos mais expectáveis. Bourdain inspirou e cultivou ao longo de duas décadas a curiosidade pelo desconhecido, o sentar-se à mesa com alguém e partilhar uma refeição como mecanismo de mediação cultural. Estabeleceu a comida como elemento agregador e pacificador entre pessoas. Diria que o seu grande objectivo era a democratização da experiência culinária e da vivência genuína da cultura à qual pertencia.

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