“Crip Camp”, o documentário que mostra como um campo de férias criou um movimento pelos direitos civis
“Este campo mudou o mundo e ninguém sabe a sua história.” É desta forma que Jim LeBrecht abre o documentário Crip Camp, recém-estreado na Netflix. Crip Camp – em português, “campo dos aleijados” – deve o seu nome aliterativo ao campo de férias de verão Camp Jened. Outrora localizado no estado de Nova Iorque, o campo destinou-se a jovens com necessidades especiais durante os anos 50 a 70 do século passado. Num país com dezenas de milhões de pessoas com deficiência como os E.U.A., o Camp Jened era único entre os demais campos e instituições. Aqui a dinâmica orientadores-campistas tinha como base a amizade e a compreensão, e não a postura de babysitter ou psiquiatra adoptada em todos os outros sítios.
Ao longo dos primeiros 40 minutos do documentário, a ação passa-se no Campo. São apresentadas fotografias e vídeos de arquivo filmadas no Campo onde ficamos a conhecer os vários campistas e orientadores. É um verdadeiro reality check assistir à incapacidade de cada campista e à resultante assistência que cada um exige. Contudo, este documentário não é uma festa de piedade. O intuito não é o de chocar o espectador, nem fazê-lo ter pena dos jovens incapacitados. Este é um filme sobre um grupo de adolescentes que reagiu contra uma sociedade que ainda os ignorava e maltratava nos anos 70. Um filme sobre um grupo de marginalizados que se aperceberam que havia direitos básicos pelos quais tinham de lutar. No início do filme, Jim LeBrecht – um dos campistas e o co-realizador do documentário – comenta que “a verdade é que não se sofre por uma coisa que não fazemos ideia que existe”. Até que chega o dia.
No segundo acto, o foco de Crip Camp é em Judy Heumann, uma das campistas que meteu mãos à obra e fundou a “Disabled in Action”, organização dedicada a pôr fim à discriminação às pessoas com deficiência. Assistimos à determinação de Judy que de tudo faz: organiza manifestações, processa o Conselho de Educação de Nova Iorque quando este não a permite ser professora, incentiva a aprovação de nova legislação e garante que as medidas adoptadas são verdadeiramente implementadas.
A escolha por parte dos realizadores de se focarem em Judy Heumann foi sem dúvida a acertada: Judy é uma pessoa carismática, incansável e cativante. Carrega na perfeição a história que nos é contada, desde que a vemos pela primeira vez em adolescente até às entrevistas actuais, hoje com 72 anos. Poder-se-ia dizer que Judy carrega o filme bem demais, na verdade. É sentida a sua falta quando o documentário se desvia noutras direcções e se demora em aspectos menos interessantes.
A dada altura, Crip Camp faz uma ponte para o cinema, muito fascinante e pertinente. É apontado o dedo à representação dos incapacitados no cinema: desde a sua criação que os filmes têm colocado as personagens com algum tipo de deficiência no papel do vilão. Os documentaristas comprovam esta ideia com os exemplos do Capitão Gancho, o corcunda de Notre Dame, entre outros, que levam o púbico a pensar nos incapacitados como criaturas a recear e a desprezar. A própria Judy luta contra este estigma num breve momento em que a vemos à secretária defronte de um recorte que diz “Lady and the Ramp” (Dama e a Rampa) – um trocadilho com o clássico “Lady and the Tramp” (“Dama e o Vagabundo”).
Crip Camp não estaria completo sem os arquétipos vulgares do filme-documentário: entrevistas tocantes, imagens chocantes e a eventual reunião final. São clichês, por certo, mas são merecidos. Um filme que consegue contar uma história tão ignorada de uma forma tão sensível pode dar-se a esse luxo.
Em 2019, a produtora Higher Ground Productions (fundada por Michelle e Barack Obama) dera-nos American Factory (Bognar e Reichert), o posterior vencedor do Óscar de Melhor Documentário em fevereiro passado. Este ano, de novo com o casal Obama como produtores executivos, deu-nos Crip Camp. Pouco nos surpreenderemos se daqui a um ano esta história se encontrar entre os nomeados para o Óscar.
Nestes tempos de isolamento e incerteza em que nos encontramos, dos mais negros desde as guerras do século XXI, Crip Camp é um raio de sol em dias cinzentos. Um filme que elucida sem nunca ser moralista, sem pregar uma lição de História. Um filme que alterna entre o comovente e o divertido, mas sempre abrindo-nos os olhos para uma luta até hoje pouco divulgada. No fundo, um filme essencial: do género de filmes ao qual jovens e adultos deviam ser apresentados. A verdade é que não sabemos quando e onde pode surgir uma grande mudança: às vezes, é num campo de verão perdido nas montanhas.