“Czech Dream”: há 20 anos, dois realizadores de cinema enganavam um país inteiro
Há 20 anos, no dia 31 de Maio de 2003, Vít Klusák e Filip Remunda enganaram um país inteiro. Aproveitando-se da ressaca capitalista de uma República Checa habituada à privação de bens devido a um duro e totalitário regime comunista, o duo de cineastas encetou um ambicioso projecto: montar uma campanha publicitária a larga escala que anunciasse a inauguração de um hipermercado nos arredores de Praga, repleto de preços baixíssimos, brindes para os primeiros clientes e a promessa de encontrar tudo o que se poderia querer num único lugar. Chamaram-lhe “Sonho Checo” (Česky sen). O único problema? O hipermercado não existia.
Após a Revolução de Veludo, a manifestação pacífica que precipitou a dissolução do regime comunista e, posteriormente, da Checoslováquia, o período pós-socialista que se seguiu viu a República Checa abraçar os ideais capitalistas do Ocidente de uma forma vertiginosa. Entre 1999 e 2004, investidores estrangeiros construíram 126 hipermercados, o mesmo número que países como os Países Baixos demoraram 20 anos a construir. Esta repentina disponibilidade e acérrima adesão dos checos levou a que se estabelecessem neologismos como hypermarketomanie — um vício em compras de hipermercado. A rotineira actividade de fazer as compras da semana passou a ser um estranho passatempo para as pessoas, que preferem passar Domingos a procurar pechinchas do que a passear ao ar livre.
Foi esta quase doentia mania de um país inteiro que levou Vit e Filip a encetar o ambicioso plano — que incluiu contratar empresas de publicidade para refinar a comunicação e aumentar o alcance dos anúncios, gravar spots publicitários e um viciante jingle, e definir uma data de inauguração: 31 de Maio de 2003, às 10 horas da manhã. Num prado de Letňany, erigiram um outdoor de 100 metros de comprimento por 10 de altura que simulasse a fachada de um hipermercado e enganasse os incautos 4000 clientes que apareceram para a “inauguração”. Todo este processo, desde a concepção até à grande revelação final, foi registado num documentário, lançado em 2004, que recebeu o mesmo nome do falso hipermercado: “Czech Dream”.
O filme confronta-nos com o poder da publicidade e faz-nos a reavaliar a nossa própria relação com a mesma. É fascinante ver a maquinação por trás dessa grande indústria e o esforço necessário para manter as rodas da mesma a girar. Apesar de o objectivo da publicidade ser provocar uma reacção nas pessoas e conectar-se com elas, o processo de decisão por trás de cada posicionamento de imagem, tamanho do texto ou cor é surpreendentemente asséptico, por ser tão baseado em indicadores mensuráveis. São conduzidas entrevistas com grupos focais, faz-se rastreamento do olhar das pessoas com recurso a óculos especiais — o tempo passado a olhar para cada elemento da publicidade dita a relevância que o mesmo deve assumir —, seguem-se famílias num dia de compras normal para saber como se comportam, entre outros métodos.
A certa altura, um dos publicitários contratados exalta o seu próprio trabalho e o poder que o mesmo lhe confere. Afirma que, devido ao que cria, consegue controlar o que as pessoas fazem. De certa forma, o seu discurso é assustadoramente verdadeiro. As pessoas ligam-se à publicidade porque lhes transmite certezas, mesmo que sejam baseadas em sensações ou ilusões, deturpando as percepções das pessoas. O desejo das pessoas é manipulado através de mensagens positivas e situações quase utópicas, num processo que se tornou tão naturalizado que raramente é questionado. Afinal, no que estamos dispostos a acreditar ou a reconhecer como verdade?
É engraçado como a estratégia publicitária do hipermercado já revelava o carácter ilusório da mesma: os slogans passavam por frases como “não venha”, “não compre”, “não gaste”, etc. Esta estratégia anti-consumista encaixou que nem uma luva na experiência. As frases na negativa parecem entregar alguma agência às pessoas, desafiando-as e criando a ilusão de que elas podem tomar as suas próprias decisões. No entanto, por mais que possam (porque literalmente nada as impede disso), a grande máquina parece ganhar sempre.
Ora, não é anormal que as pessoas procurem a maior pechincha, mesmo que pareça demasiado boa para ser verdade. O objectivo da experiência, mais do que confirmar isso, é confrontar as pessoas com a irracionalidade de algumas das suas atitudes consumistas. Por exemplo, as pessoas são obrigadas a caminhar por um prado para chegarem ao “hipermercado”. Não há um parque de estacionamento nem nada pelo meio, as pessoas simplesmente teriam de carregar as compras de volta por umas boas centenas de metros. O prado parece simbolizar tudo aquilo que as pessoas ignoram a favor de tudo o que podem comprar.
O entusiasmo vai-se transformando em dúvida e, depois da grande revelação, as reacções dividem-se. Uns admiram a experiência, dão-se por contentes por terem saído à rua num belo dia primaveril ou riem-se com a piada feita às suas custas. Outros não acham tanta graça. Curiosamente, esta experiência coincidiu com a altura do referendo através do qual os checos decidiriam se queriam juntar-se à União Europeia ou não. Por isso, as frustrações viram-se para diferentes alvos: os perpetradores da façanha (claro), o governo e a própria União Europeia. Se não podem confiar num simples hipermercado, como podem confiar na publicidade governamental que declara o “sim” no referendo como a melhor decisão? Ainda para mais quando o próprio filme foi produzido com dinheiros públicos.
Algumas pessoas viram-se para a violência, vandalizando o gigante cartaz, outros dizem que já sabiam que ia ser falso e tentam recuperar alguma superioridade. Tudo serve para retirar o ónus da sua própria decisão. No final do filme, enquanto o esperançoso jingle do hipermercado toca, os cartazes que anunciavam o “sonho checo” são substituídos por anúncios de tabaco e cartões e crédito. O ciclo continua. No entanto, será que nós aprendemos alguma coisa?