Dez anos sem Saramago não significa ausência
Faz hoje dez anos que não temos a presença do escritor José Saramago, mas isso não quer dizer que esteja ausente. A Fundação José Saramago preparou a leitura de um romance inédito até há seis anos e a receita reverte para um Fundo de Apoio aos Profissionais da Cultura.
Ainda há dois anos celebrávamos os 20 anos do anúncio do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. Faleceria doze anos depois de se ver sozinho no aeroporto de Frankfurt, onde recebeu a notícia do galardão sem qualquer formalidade. Rumou à Suécia para tomar em suas mãos a grande medalha e fazer um dos mais bonitos discursos. Pós-Nobel, escreveu mais de dez livros sem sentir o peso da dourada condecoração.
Depois de ter alta da clínica onde ficou internado por quinze dias, em Lanzarote, conseguiu ainda acabar um dos livros mais divertidos da sua obra, “A viagem do elefante”, nunca descurando a dimensão histórica que incutia aos livros; e escrever trinta páginas de um livro que hoje é lembrado: “Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas”.
Leitura para marcar os dez anos de saudade e presença
Para marcar a data, a Fundação convida os leitores a “assinalar estes dez anos de saudade e de presença” com uma leitura de “Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas”, ouvindo os atores André Levy, Joana Manuel e Tiago Rodrigues.
A sessão é às 18:30 e terá transmissão por streaming pela Maple Live e pode ser acedida aqui. Cada bilhete tem o custo de 3€ e a receita da bilheteira virtual reverte na totalidade para um Fundo de Apoio aos Profissionais da Cultura que está a ser organizado. Saramago estava a escrever este livro quando “deixou de estar”, como gostava de se referir à morte. Assim, a leitura passará pelos três capítulos escritos por Saramago.
Este livro, ilustrado pelo vencedor do Nobel no ano a seguir a Saramago, Günter Grass, contém também as notas que o português deixou como preparação prévia para a escrita do romance, e dois textos que situam e comentam as últimas palavras Saramago. O primeiro, de Fernando Gómez Aguilera, chama-se “Um livro inacabado, uma vontade firme”; o segundo, de Roberto Saviano, intitula-se “Também eu conheci Artur Paz Semedo”.
“O homem chama-se artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida pela razão social de produções belona s.a., nome que, convém aclarar, pois já são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconheça-se.”
São estas as primeiras palavras que se vão ouvir na leitura, as primeiras linhas do romance de Saramago “Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas”
Inspiração em Saramago
Para homenagear o homem que dizia que não devia ter sido escritor, não na medida em que achava que não fazia um bom trabalho com as palavras, mas sim por se tornar escritor tão tarde na vida, surgiu o projeto de literatura que levo incessantemente desde 2018.
Uma nota pessoal: no dia exato em que fazia 20 anos que da boca de um representante da academia sueca saiu o nome José Saramago, nasceu o podcast Ponto Final, Parágrafo no estúdio de rádio da ESCS FM, rádio da Escola Superior de Comunicação Social, e que mais tarde iria ter como parceiro a Comunidade Cultura e Arte (CCA).
O episódio de estreia foi todo à volta de Saramago, tendo como convidado o diretor de comunicação da Fundação José Saramago, fundação que tem como objetivo cumprir o que Saramago pediu à mulher, Pilar: “Continua-me”.
Foi com Ricardo Viel que trouxemos aos ouvidos das pessoas a história de como foi ser o único português, à data, a receber tal prémio, de como foi transpor tudo isso para um livro, “Um País Levantado em Alegria”, de como era trabalhar lado a lado com um homem de tão famosa sabedoria e, claro, de alguns dos livros que escreveu e que podem ser todos encontrados, com novas capas e cores, na biblioteca da Fundação, editados pela Porto Editora.
O primeiro episódio do podcast que já conta com duas temporadas e 33 episódios com escritores, poetas, editores, jornalistas…amantes de literatura:
Se pudéssemos perguntar a Saramago o que pensa de marcarmos os dez anos da sua morte, talvez tivesse o mesmo tipo de opinião que teve quando publicava livros e quem lhe dava mais valor eram nuestros hermanos de Espanha e não os compatriotas portugueses. Talvez a presidenta da Fundação José Saramago (FJS), que mantém a memória do escritor, saiba responder.
Ficamos mais descansados ao saber que Saramago escreveu que “Às vezes deveríamos sentar-nos juntos para juntos chorarmos. Seria uma maneira de convocar os mortos para a vida que já não podem partilhar connosco”. São palavras escritas em 2004, que a FJS destaca de um texto originalmente escritor em espanhol.
Saramago vai à escola
Apontamos a data da morte numa altura em que o nome deste autor já está bem enraizado na cultura portuguesa. O Plano Nacional de Leitura abraçou alguns livros do nosso Nobel e fez deles matéria de estudo na escola. Em 2017, o “Memorial do Convento” deixou de ser estudado ao detalhe, mas “O ano da morte de Ricardo Reis”, que começa virando do avesso uma das mais célebres frases d’Os Lusíadas, ainda o é.
São livros aos quais devemos voltar para recordar a vida no século XVIII, durante o reinado de D. João V e da Inquisição, e no século XX, tempos salazaristas em Portugal, e autoritários na Europa, se pensarmos nestes dois livros respetivamente.
Somos o que escrevemos (?)
Saramago teria hoje 97 anos. À entrada do site da FJS é destacada a frase de sua autoria: “Somos o que tiverem sido os livros que escrevemos, na existência deles desejamos que nos reconheçam”.
Saramago, vencedor também do mais importante prémio literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1995, deixou 42 livros publicados, como “A Maior Flor Do Mundo” e “Os Poemas Possíveis”.
Para a FJS, é “Uma década de saudade, mas não de ausência”, já que pós-vida foram editados dois romances inéditos, “Claraboia”, “Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas” e um volume dos seus diários, “Último Caderno de Lanzarote”, entre outras peças para entender a sua obra.
Em março deste ano, foi erguido um roteiro literário que liga Lisboa a Montemor-o-Novo, à volta do livro “Levantado do Chão”, que é tido como primeiro romance de Saramago por já ter a escrita à base do diálogo e pensamento.
Se a vontade for sair de roda dos livros, é bom saber que em torno da obra literária saramaguesca nasceram peças de teatro, filmes, exposições e outras manifestações culturais. Numa nota no site da FJS ficamos a saber que o filme “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, do realizador João Botelho, vai estrear no próximo mês de setembro.