Ano Saramago. “Todos os Nomes” e “O Homem Duplicado”: afinal quem somos?

por Maria Pinto,    9 Janeiro, 2023
Ano Saramago. “Todos os Nomes” e “O Homem Duplicado”: afinal quem somos?
Capa de “O Homem Duplicado”, livro de José Saramago (ed. Porto Editora)
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Este artigo faz parte da iniciativa Ano Saramago, no âmbito da celebração dos 100 anos do Nobel português José Saramago.

No livro “Ensaio Sobre a Cegueira”, a Rapariga dos Óculos Escuros diz: “Há dentro de nós uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. “Todos os Nomes”, publicado em 1997, e “O Homem Duplicado”, publicado em 2002, parecem seguir a premissa da Rapariga dos Óculos Escuros, tornando-a no seu tema principal.

Em “Todos os Nomes” seguimos José, um funcionário do Arquivo do Registo Civil que se entretem a colecionar factos sobre celebridades. Enquanto copia os dados exatos sobre o nascimento desses registos colecionados, descobre um registo de uma mulher, desconhecida e perdida entre os famosos, e decide procurá-la. Em “O Homem Duplicado” seguimos Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, que um dia, ao ver um filme recomendado por um colega, descobre que um dos atores secundários é exatamente igual a si. Com esta descoberta, decide encontrar esse ator. 

Desta forma imediata, estes dois livros dialogam um com o outro, expondo uma questão que nos é familiar: afinal quem somos? O que faz de nós quem somos? Esta busca principal comum às duas personagens de dois livros diferentes leva a uma procura, a uma investigação, Tertuliano segue o ator, José segue a mulher desconhecida, e nesta busca pelo outro ambas as personagens tentam descobrir a garantia da sua importância como humanos. 

Capa de “Todos os Nomes”, livro de José Saramago (ed. Porto Editora)

Mas, conhecendo Saramago, estas questões não são as únicas que unem os dois livros. Nas primeiras páginas de “O Homem Duplicado”, podemos ler: “O que por aí mais se vê, a ponto de já não causar surpresa, é pessoas a sofrerem com paciência o miudinho escrutínio da solidão, como foram no passado recente exemplos públicos, ainda que não especialmente notórios, e até, em dois casos, de afortunado desenlace, aquele pintor de retratos de quem nunca chegámos a conhecer mais que a inicial do nome, aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer certidões de óbito (…)” Misturando num só mundo personagens que nos são familiares, como o H. de “Manual de Pintura e Caligrafia”, como Ricardo Reis de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, como Raimundo Silva de “História do Cerco de Lisboa” e José de “Todos os Nomes”, é engraçado pensar que nenhum deles é apresentado pelo seu nome, não precisando nós dessa informação para percebermos de quem Saramago fala, e rirmo-nos dessa intratextualidade. 

Percebemos em “Ensaio Sobre a Cegueira” que um nome é a tal ponto intrigante que chega quase a ser banalizado, desse modo descartável, pois nunca conheceremos completamente as personagens, como nunca conhecemos ninguém. No Livro das Evidências, Saramago retira a seguinte frase para a epígrafe de “Todos os Nomes”: “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”. Nos dois livros é-nos apresentado, claramente, o nome dos dois protagonistas, mas isso não impede Raimundo e José de se sentirem apagados e de tentarem, ao longo da narrativa, descobrir quem são.

Raimundo e José surgem novamente em paralelo quando Raimundo é chamado ao gabinete do diretor da escola. Ao entrar, antes de descrever o que vê, comenta “Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar (…)”. Após a descrição do local, volta a comentar “Já aqui estive”. É com estas afirmações que nós leitores podemos começar a recorrer aos diversos gabinetes de diretores de escola que temos em memória, nomeadamente os que foram lidos, como o gabinete do diretor que José assalta durante a madrugada em “Todos os Nomes”, de modo a colecionar o registo de aluna da sua Mulher desconhecida. Voltando a Raimundo, no final do seu discurso com o diretor, conclui a pensar: “Depois, talvez porque alguém tivesse aventado que poderia apenas haver lido em qualquer parte a descrição de um gabinete parecido a este, acrescentou outro pensamento ao que tinha pensado, Provavelmente, ler também é uma forma de estar lá.” É engraçado pensar que a cópia humana que Raimundo procura acaba por ser um ator, Daniel Santa-Clara, que, pela sua profissão, está habituado a “copiar” comportamentos de outros que não são ele.   

A busca das duas personagens tem, no entanto, conclusões diferentes, sem nunca deixar de partilhar a mesma ideia, quase que resumida na frase que ambas, Maria da Paz, namorada de Raimundo, e a epígrafe de “O Homem Duplicado” referem: “o caos é uma ordem por decifrar”. E, no meio desse caos, “já não seria pouco que conseguíssemos ser, cada um de nós, o nosso próprio fio de Ariadne…” (José Saramago em “O presente é uma linha ténue” por Carlos Câmara Leme, disponível aqui.)

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