Dinheiro e aparência
O ar de solidez e respeitabilidade das instituições financeiras e de poder contrasta claramente com a fragilidade que inevitavelmente lhes é inerente. “A verdade é que”, como escreve Yves Citton no mais recente número da revista Electra, “hoje ninguém sabe como determinar o valor de nada nesta confusão mundial de vontades.”
Parte-se do princípio que o valor determinado pelo dinheiro e por outras transacções comerciais corresponde a um certo tipo de valor intrínseco, mas o que temos é, no fundo, “uma fracção do valor multifacetado” de algo a ser elevado ao estatuto de todo. Numa sociedade capitalista como a nossa quantificamos e avaliamos tudo aquilo com que nos deparamos, mas como é que se consegue, efectivamente, determinar o “verdadeiro” valor de algo?
No fundo, o que é isso de valor intrínseco? A ideia de que há algo escondido debaixo da superfície não correspondente ao que aparenta parte da assunção de que há uma verdadeira identidade, mascarada pela aparência que a ela se sobrepõe até esta ser exposta. Ora, nenhuma das faces é mais verdadeira que a outra, ambas são parte integrante da complexa estrutura da identidade, que oscila entre as suas várias partes, tantas vezes de forma contraditória e conflituante. Nenhuma das partes é o todo.
Quantas vezes não nos deparámos com alguém que, sendo frágil, se protege apresentando-se sempre como forte e viril? Efectivamente assume essa postura como protecção, mas nem por isso essa postura se torna menos verdadeira. É, ao mesmo tempo, forte e fraco, com todas as consequências que daí advêm, e a sua identidade é precisamente marcada pelo fluxo entre ambos os estados, a aparência e aquilo que lhe é intrínseco, presentes ao mesmo tempo.
Não existe transparência, a verdade é opaca, e parte da necessidade de tornar permeável e invisível a aparência, caracterizando-a como falsa, parece advir de uma necessidade de eliminar a ambiguidade ao caracterizar o que quer que seja.
Essa relação da aparência com a dita realidade estende-se precisamente ao valor do dinheiro e da moeda, que apresentam simultaneamente um carácter viril e frágil. Sendo uma construção social, o dinheiro partilha as características de outras construções sociais. É um código de regras que todos respeitam, mas que pode deixar de existir se todos, ou grande parte, decidirem deixar de as respeitar. Voltando a Yves Citton:
“A força da inércia que sustenta as nossas moedas comuns é tremenda, mas não é mais do que o ímpeto da sua própria circulação, desprovida de qualquer ancoramento firme num valor substancial – decorre do próprio fluxo e não de uma base fundamental.”
No fundo, o que é estável debaixo da sua aparência? A moeda aparenta força e tem necessidade de manter essa aparência para que seja respeitada e o seu valor se apresente estável. Qualquer mostra de fragilidade derrubaria a confiança e o valor cairia a pique.
É como o bluff, a confiança que se mostra no que se tem, mesmo que nada se tenha efectivamente. A confiança que se mostra aos outros faz com que eles nos sigam e, por sua vez, em nós tenham confiança. Com o dinheiro passa-se o mesmo. A demonstração de força por parte das moedas e dos Estados garante uma aparente força que, sem isso, não têm. O jogo é, portanto, nunca mostrar a mão. Perdida a confiança, tudo desmorona.
Mas em que medida não se torna a aparência em realidade? Como é possível argumentar que algo é fraco se a sua aparência é forte? Em que repousa verdadeiramente essa força ou fraqueza? Como dividir as várias componentes? Ao dizermos que a moeda não é forte porque basta todos perdermos confiança nela para cair, não estamos a assumir que o cenário actual não é esse (aquele em que todos perdemos a confiança) e que, por isso, a moeda é, actualmente, forte? Os estados de algo não têm de ser permanentes. A moeda pode ser forte hoje e fraca quando a confiança efectivamente se perder. É uma coisa fraca antes de se conhecer a sua fraqueza? Não é forte algo que seja permeável à volatilidade? Então o que é forte? Nada é imutável.
O jogo da força e da estabilidade é precisamente um de opacidade, não revela as suas fraquezas precisamente para se preservar. O valor intrínseco que tem é o das fragilidades que esconde. No mundo financeiro, a aparência é o que de mais verdadeiro há.
A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).