É da praxe?
A praxe, no sentido mais abrangente, é o pináculo da perda dos valores democráticos e civilizacionais. Para se fazer uma reflexão sobre esta prática, é necessário olharmos para as suas origens, para a forma como evoluiu e para o seu atual papel na sociedade. Não é possível que ocorra um debate inteligente e aprofundado na sociedade sem termos em atenção estes três aspectos.
Foquemo-nos somente no terceiro ponto. Enquanto os restantes podem ser discutidos de forma mais académica, e por isso menos subjectiva, o mesmo já não acontece com este. Isto acontece por duas grandes razões, ambas muito preocupantes: desinformação e uma subjectividade emocional, de resto bem visível nos debates efetuados.
Existe uma clara desinformação na maioria dos jovens sobre o que é realmente a praxe e a sua evolução ao longos dos anos. Nos anos 60 do século passado, a praxe tornou-se um debate político em que muitos estudantes começaram a encará-la como uma actividade com traços claramente fascistas e, naturalmente, capaz de ferir valores democráticos que ainda não eram seus, ainda que tenham sido posteriormente conquistados.
Em 1969 foi extinta e só ressurgiu nos anos 80. Por outras palavras, a praxe, como algo semelhante ao que existe nos dias de hoje, é tão antiga como a crítica à mesma. É um debate que se estende há demasiado tempo, nunca tendo sido realmente consensual na sociedade e, curiosamente, os argumentos utilizados a favor da praxe repetem-se, o que conduz a uma discussão muito estagnada.
Um dos pilares da argumentação utilizada pelas pessoas a favor das praxes, sempre de uma forma muito emocional, é o da tradição. Este aspecto só por si não justifica nada, senão o debate sobre a tourada não faria sentido, surgiria de novo a caça às bruxas e não poderíamos criticar uma prática grotesca ainda praticada – até em países europeus – como a mutilação genital. Para além do mais, não é possível invocar a tradição, tendo em conta que sofreu tantas mudanças e, em certos momentos, não existiu sequer. O que realmente aconteceu, foi um retrocesso completo com a criação de actividades na década de 80 e 90 que tinham por base a ideia de elas próprias serem um reviver de uma glória passada, uma espécie de tesouro perdido. Na realidade, as praxes são a caverna de Platão na sua forma mais ridícula, porque os jovens que ingressam no ensino superior acreditam que existe uma tradição muito antiga, que é a única realidade, e que a sua obrigação é a da preservação da mesma; e os adultos “esqueceram-se” de que nem sempre foi assim. É uma bolha perfeita criada por nós mesmos e da qual não queremos sair.
Outro argumento invocado abundantemente é o da “praxe boa versus praxe má”. Um dos problemas deste argumento é que é falacioso. Ou existe praxe ou não. Ou existe praxe ou existem actividades académicas. É necessário que haja uma clara distinção entre núcleos desportivos ou culturais e flexões ao som de um “doutor” aos gritos. Não é possível afirmar-se cada vez que surge uma nova notícia escandalosa, muitas vezes sobre um caso criminal ou pelo menos moralmente reprovável, que esses mesmos casos são pontuais. Não é possível olharmos para o lado, porque isso é desvalorizar o papel da vítima e desprotegê-la completamente de possíveis actos futuros. É colocar o agressor ao mesmo nível da vítima e esta maneira de agir está enraizada na nossa sociedade, em diversas situações, como é, por exemplo, o da violência doméstica.
A praxe, do ponto de vista organizacional, é claramente anti-democrática. As cadeiras vão rodando entre uma elite estudantil cujas únicas regras a que precisam de obedecer são as que os próprios criaram à hora do almoço. São hierarquias que, acima de tudo, incitam ao sentimento de vingança. O caloiro passa por um processo de submissão e de violência psicológica e, muitas vezes física, que posteriormente poderá aplicar noutro caloiro após a obtenção do estatuto de “doutor”. Percorrendo o inferno, o que até então era um ser inferior, torna-se num novo ser: omnipotente e com poderes que lhe foram conferidos não à nascença, não devido às suas qualidades natas, mas simplesmente dado por outros como ele. E é exactamente esta mesma organização, em conjunto com as diversas associações e os responsáveis pela gestão das instituições do ensino superior, que criam um ambiente tóxico, quase distópico, onde existe uma pressão exercida no caloiro de diversas formas para participar na praxe. Antes de o caloiro entrar na faculdade, já sabe qual é o seu destino. Ele tem que decidir o seu futuro: se quer ou não participar. Necessariamente, isto significa que a pessoa é a favor ou não, uma suposição muito perigosa. Estamos a falar de alunos que, em muitos casos, ainda nem são maiores de idade. Mesmo que o sejam, só legalmente é que são considerados adultos. Em termos emocionais, são muito frágeis e na maioria dos casos, o único apoio que têm são os pais que estão a quilómetros de distância. São precisamente estes aspectos que facilitam a proliferação desta cultura machista, curiosamente praticada também por raparigas; na esfera da submissão e que por vezes é exercida já num nível criminoso.
A grande pergunta que hoje devemos colocar a nós mesmos é: qual é o papel da praxe na nossa sociedade? Na minha opinião, esta prática é altamente degradante para os jovens. Não cria nenhum modelo de adulto que, após a conclusão dos estudos, irá entrar no mercado de trabalho. Queremos que os jovens do século XXI sejam cidadãos submissos e acríticos, que aceitam ser inferiorizados, mal-tratados e que respondem perante uma hierarquia complexa e anti-democrática? Não há nenhuma virtude passível de ser obtida através destes processos. Temos que repensar os estatutos destas práticas, nos seus limites legais e, acima de tudo, obrigar a classe política a reagir. Talvez por medo, talvez por desinteresse ou por inabilidade, nunca nada mudou. Em termos de legislação, estamos a milhas de proteger as vítimas e de limitar os abusos. Mas mais do que fazer passar leis no Parlamento – que depois não são aplicáveis – é necessária uma vontade férrea de consciencializar as pessoas. Da mesma forma que não se pode obrigar as pessoas a reciclar sem primeiro elas perceberam a importância desse mesmo acto.
Ainda acredito que seja possível que um dia este tema deixe de ser tabu, não porque fomos engolidos por um regime ditatorial no ensino, mas antes porque a batalha tenha sido verdadeiramente ganha. A partir do momento em que a sociedade baixar os braços, estas práticas irão continuar e até intensificar-se, sem que haja uma verdadeira liberdade, porque a liberdade não é praticável entre duas opções: ser a favor ou contra a praxe. A liberdade não se experiencia através do medo no primeiro dia aulas ou da incerteza nas semanas subsequentes. A liberdade não é um direito garantido em lugar algum. Felizmente, alguns podem lutar por ela sem ser baleados ou perseguidos. Esta é uma luta possível e demorosa, porque o problema está enraizado e é estrutural numa sociedade complexa, cheia de contradições e de bipolaridades, que por sinal se manifestam de diferentes formas pelo país fora, sendo tendencialmente mais agressivas em zonas mais afastadas dos grandes centros urbanos. Dizer não à praxe não é negar a cultura dos nossos antepassados e do nosso país, mas sim afirmar que não tem lugar numa sociedade civilizada, inclusiva e verdadeiramente livre.