“Eastshade”: o culto ao lugar e a paz do natural

por João Diogo Nunes,    4 Setembro, 2019
“Eastshade”: o culto ao lugar e a paz do natural
“Eastshade”

Um pintor que viaja para uma ilha pitoresca para visitar os locais preferidos da mãe e pintá-los em sua memória, e entre eles estão muitos outros por descobrir, cada um com as suas histórias e com as suas gentes, prontas a partilhar os seus encantos e as suas preocupações. Tudo isto no meio de uma beleza natural ímpar. Tal como diz Danny Weinbaum, o principal responsável pelo jogo, o terreno foi desenhado para transmitir a sensação de um “grande jardim” ao invés de um mundo massivo, selvagem e indiferente, e é exatamente isso que se deve esperar de Eastshade, a sequela de Leaving Lyndow.

Quando pintamos um quadro, este materializa-se automaticamente ao nosso lado numa pintura realista em aguarela, com algum engenho, todavia, é possível obter quadros mais abstratos, sobretudo com a utilização dos efeitos psicóticos de alguns chás.

Eastshade é fácil de acompanhar, a baixa tensão narrativa e o ritmo espaçado permitem respirar e apreciar o mundo de jogo e a riqueza das personagens, o que acusa um design narrativo soberbo. Tanto as mecânicas do jogo como a escrita giram em torno da aventura de exploração relaxante. A história é simples e liga-se somente à progressão pelo mapa, sendo o contexto das missões único. Ajudar as personagens com as suas vidas pode ter algum retorno financeiro, mas, principalmente, serve para nos colocar o terreno à frente e dar a conhecer o folclore local. Há algumas decisões para tomar e os diálogos têm várias opções, o que enriquece ainda mais a experiência. Conforme o nosso comportamento, podemos gerar reações positivas ou negativas, ainda que não resultem em grandes mudanças no progresso. Os diálogos estão bem escritos e, apesar de não se afastarem muito dos clichês dos RPG clássicos, são diversos. Cada personagem é bastante única e tem uma personalidade distinta. Há reflexões sobre a imortalidade para ouvir; um excelente caso de detetive para solucionar; livros sobre pesca, lendas locais ou chás para ler; quezílias para resolver; e mais, isto por vezes com toques de humor muito engraçados. No final de contas, a escrita acaba por ser um dos pontos fortes do jogo, mesmo que nunca tome o leme da aventura.

Vaguear pelas florestas idílicas é o centro da experiência de Eastshade.

A nível técnico, infelizmente, há inúmeras falhas a apontar. A proeza estética é indesmentível, o jogo é lindíssimo e as paisagens belas acumulam-se diante de nós, como seria de esperar de um jogo onde se pode capturá-las. As cores vivas e variadas são de admirar, todo o espaço grita para ser contemplado. Existem outras qualidades, como a água, os modelos das árvores e dos edifícios, os efeitos de luz (no geral) ou algumas sombras, mas são poucas diante do mar de problemas técnicos que existe. Sem enumerá-los sequer por um quinto: a otimização do jogo é fraca, com oscilações ridículas na cadência de fotogramas — jogar na qualidade gráfica máxima ou na mínima mal faz diferença na performance; a deteção da colisão está em falta numa quantidade grande de assets, sendo possível passar através de numerosos objetos sólidos, ora em locais mais recônditos, ora noutros bem evidentes; o clipping é horripilantemente mau; há situações absurdas um pouco por todo lado, como peixes a nadarem em terra e borboletas a desaparecerem do nada; as texturas não são as melhores; a sincronização labial não é boa; e, como se não chegasse, também existem vários bugs, desde personagens presas em cadeiras e horas no jogo que não avançam até plantas que não dão para recolher, à possibilidade de nos afundarmos no cenário e até mesmo ao desaparecimento do cursor no menu depois de terminar o jogo. Isto tudo para além dos possíveis crashes ao ir dormir e dos detalhes faltosos, como olhos que piscam durante a pausa no jogo e uma missão que, por engano, apresenta o mesmo texto para duas decisões diferentes. Podia-se continuar por mais algum tempo, mas é escusado. (Alguns problemas foram, entretanto, resolvidos ou suavizados pelo estúdio, porém, como boa prática estabelecida, só são consideradas aqui correções feitas até à primeira semana depois do lançamento.)

No que à jogabilidade concerne, o design de jogo clássico intercala-se perfeitamente com a alma exploradora do jogo. Não há urgência alguma nos objetivos principais, desde cedo sabemos que temos todo o tempo do mundo para conhecer a beleza da ilha e das histórias que lá habitam, aliás, é só disso que se trata Eastshade e as mecânicas, com um sabor a velho que não cai mal, servem religiosamente esse propósito. O sistema de pintura consiste em capturar o que vemos numa tela, que depois é adicionada ao inventário. Para pintar precisamos de inspiração, que se ganha ao descobrir locais, ouvir histórias ou música, ler livros, sentar-se em fontes termais e beber chá; e de telas, que devemos construir reunindo pano e madeira ou comprar. Fora estes, há outros materiais, a maioria plantas e raízes, que são usados para diversos fins, como por exemplo, construir barcos para chegar a novas zonas do mapa, fazer chás que têm efeitos especiais ou montar tendas para dormir. À noite, o frio é letal e devemos fazer por nos mantermos quentes, pelo menos até termos acesso a um casaco mais à frente no jogo. Isto dá à primeira parte do jogo um fator de sobrevivência interessante que vai forçar o uso de fogueiras, chás e tendas.

O sistema económico também é funcional, bloqueando o progresso e a aquisição de itens destinados à parte final do jogo (como a bicicleta ou a roldana de tirolesa) equilibradamente. É possível ganhar dinheiro finalizando encomendas de quadros para pintar, vendendo itens ou completando certas missões. Também se pode vender peixe que pode ser pescado quando se compra a cana de pesca. O peixe está dividido num interessante sistema hierárquico, já que os três tipos de peixe têm um valor ascendente e cada um tem como isco o peixe da hierarquia abaixo (o de menor valor usa ovos ou cogumelos). Os controlos, por sua vez, são bastante competentes e só dão problemas em algumas ações que estão pouco simplificadas.

Há um ciclo noite/dia cuja progressão se vê em tempo real pelo movimento das sombras. Para além das cores do amanhecer e anoitecer, há também o marcante eclipse do meio-dia.

Sonoramente, Eastshade é prodigioso, a música assenta que nem uma luva e dá uma sensação saudosista de jogos clássicos de fantasia, ela pede ao jogador que pare e respire o ambiente, no entanto, por vezes tem alguns problemas na ativação. As vozes, não sendo altamente profissionais, estão bem e não se repetem tanto quanto seria de esperar — no máximo, um ator desempenha quatro personagens. A sonoplastia é de qualidade, enquadra-se bem na paisagem sonora ao mesmo tempo que cumpre as suas funções básicas, com destaque para o ruído urbano do mercado na cidade principal e para os sons da recolha de itens. Explorar a bela ilha com música atmosférica é um mimo mas não se descure a qualidade do design de níveis que permite uma exploração fluida e um desdobramento da curiosidade que incita no jogador. O mapa tem um tamanho ideal e é variado o suficiente e as florestas estão um primor, criadas com um realismo e com um traço único que permite decorar caminhos facilmente. Todo o jogo é assim e o mapa é completamente memorável.

Falta de polimento é uma forma bem clara de definir Eastshade — não há dúvida de que uma data de lançamento posterior teria dado tempo para corrigir muitas coisas —, todavia, é difícil não ver o amor que a equipa derramou pelo jogo ao criá-lo e o gosto que tem pelo género. Pode estar perto de um fiasco técnico, mas por muito que os defeitos interfiram na experiência de jogo, interrompendo-a de vários modos, eles não conseguem sujar a magia da aventura, incorruptível e genuína como é.

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