Em ‘The OOZ’, King Krule soa difuso
Archy Ivan Marshall não é o típico rapaz de 23 anos. Chega a esta tenra idade com vários projectos sob a sua alçada e uma discografia muito sua. Já esteve para colaborar com Kanye West (mas não aconteceu) e já quase que colaborou com Frank Ocean (que não gostou das batidas que Archy produziu). O seu cantar tem uma personalidade muito própria, o timbre profundo e robusto disfarça a sua curta estatura e o seu cabelo ruivo. É a primeira coisa que torna distinta a música que Archy faz sob o nome artístico de King Krule, entre outros. É sem dúvida um gosto adquirido mas a verdade é que o músico consegue moldar eficazmente a sua voz grossa e subtilmente cavernosa: arrasta-se nas notas que para ele são graves, canta com brandura quando tem de o fazer e explode de emoção quando a música o pede.
As suas letras são pensativas, bonita escrita transmitida por um tom incomum. O seu primeiro álbum 6 Feet Beneath the Moon, lançado em 2013, destila a poesia do viver almofadada por camadas de reverb, alia batidas electrónicas a guitarras suaves e canta letras sentidas: a melancólica “Border Line” tem um tom de “dança de alcoólico” e em “Ceiling” cria um instrumental atmosférico que dá espaço para a tristeza se espalhar pela música. A sua voz assenta muito bem no meio destes instrumentais que juntam vários tipos de música: “Easy Easy” mistura acordes de jazz com uma energia punk, em que ouvimos Archy quase vociferar que está cansado da rotina apática e da “podridão” interior. Há qualquer coisa de doloroso neste álbum, sentimos isso na voz e na entrega “rústica”, sentimos que alguns dos seus berros ou passagens mais abrasivas são a expressão de uma idade que passou. Aos 19 anos, um jovem King Krule tinha discussões de gente grande.
Quatro anos depois, Archy Marshall está de volta com The OOZ, composto por um conjunto de músicas e frases invocadas por uma mente presa no seu magoado existir, um estado permanente de desconforto psicológico. A palavra ooz foi cunhada pelo próprio: “The Ooz for me represents all of those creations that you have to refine. That’s where it comes from: It’s kind of about refining the subconscious creations that you do constantly.” Mas é claro neste projecto que as criações conscientes de Archy também foram refinadas. O britânico pega nos aspectos mais interessantes do predecessor de The OOZ e abrilhanta-os, tornando mais vigorosa a sua abordagem ao processo musical. “Biscuit Town” abre o projecto com uma batida cool e muito descontraída, enquanto uma melodia desconfortante acompanha a entrega quase declamada de Archy. “Logos” mistura uma batida digital com teclas “inchadas”, corpulentas mas tremidas, e Krule canta com uma tremenda apatia vocal que diz mais que qualquer sentimento.
Há muita tristeza nesta produção do rapaz britânico. “Cadet Limbo” viaja por um espaço soturno só seu, mostrando um homem preso à órbita inescapável de um forte amor, com os instrumentos a fazerem-se ouvir de tempo a tempo, culminando num belo solo de sopro. O auge surge através do single “Czech One”: é uma música assustadoramente bela. Saudade e mágoa sentem-se nesta suave vela que vai queimado o pavio da felicidade até ficarmos reduzidos à nossa posição fetal e depressiva. Poesia quase cantada embeleza este instrumental taciturno, um reflexo da dor amarga que Archy canta. Mas o mais espantoso na maneira como o músico aborda esse sentimento é ver como ele a esconde no meio de instrumentais mais “optimistas”: em “Midnight 01 (Deep Sea Diver)” uma batida irrequieta torna uma letra sobre sucumbir ao negativismo em algo quase atractivo (“And if we swim down low/ The pressure might go beneath the sheets I’m covered in/ And if we swim down low/ The pressure might grow those woes were still hovering”).
O indie rock também continua vivo na música do jovem Archy, em temas que retornam a “A Lizard State” do álbum anterior. A melhor dessas malhas é “Half Man Half Shark”, uma música mais tribal com uma bateria que estala que nem milho na panela. É mais uma arma no arsenal de Archy com um riff que lembra qualquer coisa do início da carreira dos Arctic Monkeys, mudando rapidamente de atmosfera quando se aproxima do final. Dá lugar a uma batida quase electrónica, uma surpresa inesperada mas não menos bem-vinda, que transforma uma música energética num momento distinto e único no álbum. “Dum Surfer” descreve devaneios nocturnos alimentados por álcool, com uma atmosfera decadente e um sotaque britânico especialmente cerrado. Há momentos destes menos bem conseguidos como “Emergency Blimp”: peca pela repetição e destaca-se pela negativa por surgir no meio de duas músicas completamente diferentes a nível da sonoridade.
Mas não é pelas malhas de rock que King Krule se destaca. Prima pelo olhar característico que tem da sua existência, que consegue (nos seus melhores momentos) criar empatia com o ouvinte, que se perde nos relatos de alguém tão particular como Archy e toma-os como parte de si mesmo porque são como o ouvinte se vê, únicos. E em The OOZ há um maior esforço para transmitir uma atmosfera, as música são mais “espaçosas”, e denotam uma fluidez entre si, quase como um contínuo choro pela noite fora. Mas isso nem sempre resulta.“Slide In (New Drugs)” ou “Sublunary” andam à deriva pelo universo de King Krule sem nunca aterrarem num sítio concreto, só é perceptível um suspiro quando podiam ser um desabafo. “Lonely Blue” deixa a guitarra tomar o papel principal numa música macilenta, que compensa com o final mais sério e tristonho mas que não nos convence até chegar lá. E a desértica “The Cadet Leaps” transmite uma atmosfera morosa, estática, uma música longa que facilmente se esquece.
King Krule não é um rapaz como os outros. Quantos se podem gabar da acutilância escrita que o jovem demonstra, e da maneira modesta com que combina géneros e estabelece fronteiras entre a música electrónica, o jazz, o punk? É claro para os seus fãs que tem muita coisa para dizer sobre os demónios que o assolam. E em The OOZ vemo-lo fazer isso mesmo, algo que também fez no seu álbum anterior. Mas em 6 Feet Beneath the Moon não soava tão disperso e tão “cheio”. Há músicas extraordinárias no seu segundo longa-duração mas é um projecto massudo. Há instrumentais corpulentos e letras introspectivas mas também fantasmas de bons temas e ideias que nos deixam à espera de mais. É um álbum que vive muito das suas emoções e que por vezes descura as músicas que lhes dão palco.
Músicas preferidas: “Biscuit Town”, “Dum Surfer”, “Logos”, “Cadet Limbo”, “Half Man Half Shark” e “La Lune”
Músicas menos apelativas: “Sublunary”, “Lonely Blue”, “A Slide In (New Drugs)” e “The Cadet Leaps”