Então, a gente não há-de ter opinião, Anne? Nova edição do diário sem correcções
Foi publicada a versão original do diário de Anne Frank, sem as correcções e alterações feitas pela própria autora, quando ponderou publicar o diário após a sua saída do anexo, e, posteriormente, pelo pai. A edição conta com as duas versões: a versão A, que diz respeito à versão original, e versão B, que diz respeito à versão editada. Além disso, vão ser também publicadas as cartas que Anne Frank escreveu à sua avó, Alice Frank.
Quando Otto Frank constata ter sido o único da sua família a sobreviver ao holocausto, a sua fiel amiga Miep Gies passa-lhe para as mãos aquele que estaria destinado a ser, seguramente, o diário mais conhecido tanto por adultos como adolescentes. Diário, esse, escrito pela sua filha — a pespineta, faladora e curiosa Annelies [Anne] Marie Frank. Não há-de, então, a gente falar? “Não há-de, então, a gente ter a sua opinião?” Dos 13 aos 15 anos, esta jovem viu as suas asas cortadas e, no auge do turbilhão da juventude que lhe tentaram roubar, ela ripostou da forma mais valiosa e curiosa possível. À desumanidade, ela respondeu com a busca incessante de si mesma, com a procura da Anne que almejava, no seu mais íntimo, ser. No fundo, retorquiu com a sua honesta e sensível adolescência. Mais curioso isto se torna, se pensarmos que um dos documentos que mais bem espelham, interiormente, a desumanidade da perseguição à comunidade judaica adveio de alguém que, no futuro, tinha o sonho de vir a ser jornalista.
Quando Otto leu o diário e percebeu que, realmente, é muito difícil para qualquer progenitor conhecer, de forma verdadeira, os seus filhos, tomou a decisão de partilhá-lo com o mundo. Claro que quando o livro foi publicado, o que nos foi dado a conhecer foi a versão parcialmente retocada pela própria autora, quando a adolescente ouviu no rádio o apelo para os judeus holandeses documentarem as suas experiências. O próprio pai também teve uma palavra a dizer na edição final, eliminado algumas passagens. Mas, agora, pela primeira vez na história, vamos ter a oportunidade de o reler tal como foi escrito originalmente, na totalidade, sem as edições posteriores. Além disso, as cartas que Annelies trocou com a sua avó Alice Frank, entre 1936 e 1941, vão também ser dadas a conhecer. Um aspecto muito importante porque, pela pela primeira vez, vamos poder ter uma perspectiva diferente do seu ambiente familiar, independente do anexo. Por isso mesmo, estes são os motes perfeitos para recordarmos o diário que mais conseguiu entrar no íntimo de cada jovem adolescente que o leu. Sim, Anne, a juventude não é para ser calma. Nunca foi, não o é, nem nunca o há-de ser. Afinal, há quem se interesse pelos devaneios de uma pespineta patusca de 13 anos.
“Não queria ser tratada como todas as raparigas, mas como um ser com personalidade própria, como a ANNE.”
”Às três horas (Harry tinha saído naquele mesmo momento e queria voltar mais tarde) tocou a campainha. Eu não tinha ouvido nada porque estava, numa preguiça agradável, estendida na cadeira de repouso, a ler. Nisto entrou a Margot, toda excitada. — Anne, recebemos uma convocação das SS para o pai — cochichou. — A mãe já foi ter com o sr. Van Daan. Senti um medo horrível. Uma convocação para o pai… Toda a gente sabe o que isso significa: campo de concentração… Vi surgir diante de mim celas solitárias para onde queriam levar o meu pai! — Não pode ser — disse a Margot categoricamente quando nos encontramos as duas na sala de estar, á espera da mãe. —A mãe foi a casa dos Van Daans para combinar se não seria melhor mergulhar já amanhã. Os Van Daans vão connosco, somos, ao todo sete.” E foi assim, deste modo, que a vida normal de uma adolescente terminou, numa lânguida tarde de um Domingo de Julho, para se dar início à história do anexo mais conhecido da Holanda e do mundo. Na realidade, a convocatória não tinha sido para Otto, mas sim para Margot, a sua irmã mais velha. ‘Mergulhar’, tal como surge neste excerto, era a expressão que se utilizava, então, para o desaparecimento voluntário de alguém que tentasse escapar a uma perseguição de qualquer ordem. O esconderijo, que ficava nos fundos da empresa do pai de Anne, estava já a ser preparado há algum tempo. Ou seja, “mergulhar”, mais cedo ou mais tarde, já estava na mente desta família.Foi a convocatória de Margot que acabou, no entanto, por acelerar as coisas. Logo ao amanhecer do dia seguinte, os Frank lá seguiram com várias peças de roupa no corpo (o máximo que conseguiram levar) porque, logicamente, pessoas com a estrela de david no braço e grandes malas de viagem na mão seria extremamente suspeito — era o equivalente a judeus em fuga. Anne não se esqueceu, felizmente, do diário que recebeu no seu dia de anos e, assim, pôde continuar a ter as suas conversas, em forma de carta,com ‘Kitty”, a personagem que inventou para ser a sua verdadeira confidente para as coisas que não podia partilhar com os pais ou com a irmã — na base, para ser a sua verdadeira melhor amiga. Todas as cartas começavam assim, “Querida Kitty”.
É muito difícil imaginar uma adolescente faladora, que adorava comunicar e passear com os amigos, encerrada num pequeno espaço com a preocupação constante em manter baixo o seu tom de voz para não se correrem riscos. Uma menina sensível e inteligente que começava a despertar para a curiosidade sobre a vida, sobre as coisas ao seu redor, para os rapazes (tinha os seus admiradores), e que, no geral, se sentia feliz no regresso a casa após um dia de escola, para poder abraçar o seu gato Mohrchen. Uma rapariga, também, que estava a iniciar aquele processo de autoconhecimento. Quem sou e de que forma me diferencio dos outros? Tal foi-lhe roubado, mas ao mesmo tempo que a sua maturidade se desenvolveu de modo exponencial e demasiado cedo, ela também tinha de ser a adolescente que, efectivamente, era, com as revoltas, frustrações, indignações, paixões e fantasias de uma rapariga com uma vida normalizada. Essa conjunção em efervescência tinha de resvalar para algum lado, como de facto. A sua adolescência tinha de encontrar um porto seguro, daí a importância gigantesca deste diário para Anne Frank, que a auxiliou na asfixia constante que sentia. Ironicamente, em parte podemos dizer que, de forma muito natural, foi o próprio espírito adolescente que acabou por lhe servir de fiel aliado. É neste preciso ponto que podemos encarar a leitura do livro através de duas vias: há o contexto histórico e o contexto pessoal (este último é o que encontra reflexo em grande parte dos adolescentes). E claro, há que frisar que é esse mesmo lado que permite que jovens contemporâneos (mesmo com os seus telemóveis e dependências tecnológicas) encontrem pontos em comum com alguém que poderia ser sua avó ou, até, bisavó. É como se Anne Frank nos estivesse a dizer ali, naquele preciso momento em que a lemos, que só uma genuína intimidade é capaz de resgatar e puxar por outra intimidade, ou seja, uma troca honesta que ao mesmo tempo é dependendente mas, de forma activa, espoleta e incentiva a outra. Isto levanta outra questão interessante, é essa mesma tentativa de honestidade para connosco próprios que acaba por se sobrepor e vencer as prisões, limitações e castrações de uma determinada época. Pode parecer um bonito cliché, aceito, mas é como se quanto mais despido algo for, mais possibilidades tem de encontrar verossimilhanças nos outros — mais se abre, também, a outras épocas.
O que mais chateava Anne, era aquela sensação de não ser levada a sério. Era a mais nova, numa situação extremamente difícil, em que a constante ansiedade dos adultos pela possibilidade de serem descobertos a qualquer minuto crescia a cada dia passado. Eram os constantes ralhetes que, numa situação de adolescência típica, até poderiam ser normais, mas ali, naquele espaço, sem a possibilidade de respirar outro ambiente, tomavam uma outra amplitude no seu entendimento e forma de sentir. E Anne, claro, estava a crescer, era algo que não poderia ser travado. Há uma altura em que, face às acusações de ser malcriada, respondona e intrometida chega mesmo a perguntar-se, “não há-de, então, a gente ter a sua opinião?” Aquele anexo era pequeno mas, nem por isso, deixou de haver espaço para a história mais antiga deste mundo: a juventude em conflito com a gerações anteriores, com a opinião de que não são levadas a sério, muito menos compreendidas ou conhecidas a fundo.
O tema da juventude, em si, interessava a Anne, principalmente pelo sentimento de asas cortadas, sonhos traídos e cortados logo à nascença. Mais não seja, pela percepção de que a sua, parecia ser uma geração perdida sem futuro à vista. Sente este facto com profundidade porque, não o podemos, de maneira nenhuma negar, esse sentimento era mais do que o justificado. “‘Pois, no fundo, a juventude é mais solitária do que a velhice’. Encontrei esta frase num livro e fixei-a, porque encontrei nela a verdade. É a nossa vida aqui mais difícil de suportar para os adultos do que para nós? Não, decerto não! As pessoas com mais idade já têm opiniões formadas sobre todas as coisas e não vacilam, não hesitam perante as dificuldades da sua vida. A nós, os jovens, custa-nos manter-nos firmes nos nossos pareceres por vivermos numa época em que se destroem todos os ideais, em que a humanidade se mostra pelo seu lado mais horroroso, em que se duvida da verdade, do direito, de Deus! Aquele que pretende afirmar que os mais velhos sofrem mais aqui no anexo do que nós, jovens, não sabe ver até que ponto os problemas desabam sobre nós, problemas para os quais talvez ainda não tenhamos bastante idade, mas que se nos impõem de um modo violento. Em determinada altura, julgamos ter encontrado uma solução mas esta solução, de uma maneira geral, não resiste aos factos que são sempre tão diferentes. Eis dificuldade do nosso tempo: mal começam a germinar em nós ideais, sonhos, belas esperanças, logo a realidade cruel se apodera de tudo isso para o destruir totalmente.”
Eram oito pessoas a dividirem o mesmo espaço ininterruptamente. Os Franks (a Anne, a Margot e os pais), os Van Daans (o jovem Peter e os pais, de nome verdadeiro Van Pels), a quem se juntou mais tarde o dentista Albert Dussel [nome verdadeiro Fritz Pfeffer] com quem autora do diário partilhava o seu quarto — o que originou vários conflitos de disputa. Eram protegidos e mantidos pelos empregados da empresa de Otto, que mantinham, dessa forma, uma espécie de sociedade secreta para não correrem riscos. A fundamental Miep Gies fazia parte desse grupo. O pior chegou mesmo a acontecer, já quando o Dia D havia ocorrido. Dois dias depois da última carta dirigida a Kitty, a quatro de Agosto de 1944, a “Grüne Polizei” tomou de assalto o anexo e todos os que nele habitavam foram enviados para campos de concentração. Ninguém sobreviveu a não ser Otto Frank.
A melhor resposta de Anne foi mesmo ter continuado a busca para se conhecer a ela própria, mesmo em tempos de provações pelas quais ninguém devia passar e, claro, ser honesta perante isso. No feixe de contradições que ela dizia ser — porque todos lhe cobravam a impertinência, o facto de gostar de falar, de dar a opinião, do flirt — ela falou, ela importunou, ela namorou. No anexo, além do namorado anterior Peter Wessel, aproximou-se também do filho dos Van Daan. Apesar das acusações que lhe faziam, o que lhe originava imensa confusão e dúvidas sobre ela própria, sentia a necessidade de mostrar que não era aquilo que os “adultos” pensavam e que, afinal, havia uma outra Anne mais complexa e profunda à espera de ser conhecida. Uma outra Anne que queria lutar e mostrar-se para além do futuro que o nazismo lhe roubou. “Quando estou calada e séria, todos pensam que estou a representar uma nova comédia. Para me salvar só me resta dizer uma piadinha. Pior ainda quando se trata da minha família que imagina logo que estou doente e me impinge pastilhas contra as dores de cabeça , que me toma o pulso a ver se tenho febre, que pergunta como funciona o aparelho digestivo para, em seguida, censurar o meu mau génio. Não suporto semelhante coisa. Quando me tratam desta maneira, torno-me ainda mais impertinente, fico triste, e, por fim, viro o meu coração do avesso — o lado mau para fora, o bom para dentro — e continuo a procurar um meio para vir a ser aquela que gostava de ser,que era capaz de ser, se … sim, se não houvesse mais ninguém no mundo. (…) Já te contei em tempos que não tenho uma alma, mas sim duas. Uma dá-me a minha alegria exuberante, as minhas zombarias a propósito de tudo, a minha vontade de viver e a minha tendência para deixar correr, isto é, para não me escandalizar com flirts, abraços ou piadas inconvenientes. Esta primeira alma está sempre à espreita e faz tudo para suplantar a outra que é mais bela, pura, mais profunda. Esta alma boa ninguém a conhece, não é verdade?E é por isso que tão pouca gente gosta de mim.”
Anne Frank morre após ter sido transferida de Aushwitz para Bergen-Belsen, apenas dois meses antes da libertação da Holanda. O diário, que tencionava publicar posteriormente sob o título O Anexo Secreto não foi a única coisa que escreveu. Da sua autoria, ainda podemos contar com 34 contos e um romance que não conseguiu finalizar, Cady’s Life. Quando Miep e Otto, à volta da correspondência da empresa, descobrem a carta que confirma a morte de Anne e Margot, esta abre uma gaveta da sua secretária e diz “toma, aqui está o legado da tua filha.” Quando Otto acabou de ler o diário constatou para si, “não conhecia a minha própria filha.” Assim como a maioria dos pais.