Entrevista. Adriano Miranda: “Quem lê no Facebook não é leitor no sentido de quem lê jornais, notícias, há lá de tudo”

por Comunidade Cultura e Arte,    6 Maio, 2022
Entrevista. Adriano Miranda: “Quem lê no Facebook não é leitor no sentido de quem lê jornais, notícias, há lá de tudo”
Adriano Miranda – Público
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Na segunda parte da entrevista (lê aqui a primeira) que o fotojornalista do Público, Adriano Miranda, cedeu à Comunidade Cultura e Arte, abordou-se o facto da guerra na Ucrânia ser a primeira sob os holofontes das redes sociais. Qual o papel do jornalismo e fotojornalismo no combate às fake news? O fotojornalista, que esteve em serviço no país invadido e que além das fotos escreveu um total de dez crónicas, afirma que há manipulação noticiosa dos dois lados, foi um erro travar-se a emissão ocidental da cadeia russa RT e que, um jornalista, nunca deixa de ser humano. Falou-se acerca da abordagem jornalística em contexto de guerra, a sustentabilidade dos jornais em manter os jornalistas nos locais e a questão da segurança. Crónicas ou textos de opinião poderão dar, igualmente, muita informação nas entrelinhas, explica. Quanto às redes sociais, segundo as suas palavras, “quem lê no Facebook não é um leitor no sentido de quem lê jornais, de quem lê notícias, há lá de tudo”, explica.

Rui André Soares [RAS] – Certamente, o Adriano lembrar-se-á dos conflitos da Bósnia e do Kosovo, que ocorreram nos anos 90. Estamos a falar de uma altura em que nem os computadores estavam massificados, no entanto, os conflitos foram amplamente televisionados. Na época das redes sociais e do advento das fake news, como olha para a forma como a guerra da Ucrânia tem vindo a ser noticiada? O que pensa ter havido de novo, agora, na cobertura desta guerra?
Falaste nisso e vou acrescentar, também, a do Iraque e Afeganistão. Nós tivemos jornalistas nos dois lados da barricada. O que acontece nesta guerra da Ucrânia é que só temos jornalistas num lado da barricada — isso é preocupante. Não estou a defender nem uma cor nem outra, a única coisa que posso dizer é que houve uma agressão por parte de um país a outro, pronto, mais nada. A partir daí, essa agressão fundamenta-se em várias questões.

Leviv, na Ucrânia / Fotografia de Adriano Miranda

RAS – Mas também não se consegue ver como a população russa olha para este conflito: em primeiro lugar, porque o Putin não deixa, depois, porque não se consegue entrar lá, ou entrando lá, a liberdade de expressão do jornalista pode ficar condicionada.
Tens toda a razão no que estás a dizer, mas o que acontece nesta é que nós, neste momento, só estamos a ver um lado — para já, é o lado ocidental da coisa. Curioso, não aconteceu com a guerra da Jugoslávia e as outras, mas criou-se uma opinião pública muito de carneiro — se sais fora desse âmbito já és catalogado. As coisas extremaram-se muito, graças às redes sociais e às fake news, isso aí é muito claro. Mas só estás a ver um lado e, mesmo assim, o lado que estás a ver não é de portas abertas. Há pouco estava a falar com o Miguel Manso e, amanhã, queriam ir a uma frente de batalha e só vão com o exército ucraniano. Percebo porque só vão com o exército ucraniano, é para terem alguma protecção. Ainda há pouco, o New York Times, já não sei onde, teve de voltar para trás, a meio do caminho. Os profissionais de informação estavam cheios de medo — não fizeram nada porque começaram a chover tiros. Têm de ir protegidos, como é óbvio. Mas, por outro lado, também só vêm o que o exército ucraniano lhes tem mostrado. No meio disto tudo há muita propaganda e a propaganda não é só russa, é dos dois lados. Há muitas notícias falsas, tanto de um lado, como do outro.

RAS – Notícias ou, até, cenários que podem dar um certo tom à reportagem!
Pois, mais forjados. As coisas, nesta altura, são vistas assim, tens os maus e tens os bons. Nos maus, nem tudo é mau, também há bons, e nos bons também há maus. Esses dois pesos não estão a ser medidos. Não podemos dizer que todos os voluntários, os que se voluntariaram para combater ao lado dos ucranianos — e até mesmo dentro do exército ucraniano — são almas puras e santas. Há, ali, nazismo, muita gente filha da mãe, do lado russo também o há. Não estamos a dar o lado da Rússia, não estamos a dar o lado de que o povo russo está a sofrer com as sanções, das mães, dos pais e mulheres dos soldados que morrem todos os dias do lado russo. Não estamos a dar isso. Para já, fizemos uma coisa que, a meu ver, é anedótica — cortar a RT. Hoje, portanto, não temos meios para ver a comunicação social russa. Podem dizer, “mas eles estão sempre a mentir”, não quero saber, quero ver as mentiras que dizem, quero ver, pronto. Numa Europa ocidental, onde falamos de liberdade de expressão, de imprensa e comunicação social, somos nós próprios a decidir fazer censura. Isso faz com que não consigamos ver o outro lado que é, extremamente, importante para nós próprios, cidadãos inteligentes, para tirarmos as nossas próprias conclusões. Neste momento temos um lado, o outro lado não sabemos.

Guerra da Ucrânia / Fotografia de Adriano Miranda

RAS – Por acaso, o jornalista Ricardo Alexandre deu uma entrevista recente ao “Setenta e Quatro” e, numa resposta, focou algo muito parecido ao que o Adriano disse. Até falou em ir dentro de um contingente militar para poder ir a sítios. Que se não for assim, não se consegue ir aos sítios.
Não consegues.

RAS – Mas há, então, o factor de protecção, não é?
Atenção, que há aqui o factor protecção muito importante, mas não é só o factor protecção, também há o factor de controlo. Quando olham para ti no passeio, dão meia volta, ligam as sirenes e vêm ter contigo, a primeira coisa que fazem é perguntar quem tu és. Dizes que és português e jornalista e, depois, pegam no teu passaporte, colocam-te o passaporte debaixo do queixo e fotografam-te a ti e ao passaporte e levam-te para a esquadra. Há, aqui, uma correlação qualquer, não é? Não aconteceu nada, analisaram-nos os passaportes, onde tínhamos andado, que países tínhamos visitado e mandaram-nos embora.

 Há quem diga, “estamos a viver num cenário de guerra”, tudo bem. Mas mesmo dentro da guerra há regras. Há convenções e os próprios militares estão obrigados a isso. Quando um polícia ou militar aborda um cidadão indefeso — nós não somos militares e não somos o inimigo — também tem de ter alguns preceitos e a liberdade de imprensa tem de ser respeitada, apesar de estarmos em guerra, mas tem de ser respeitada. Há casos de colegas meus, a mim não me aconteceu, em que tiveram de apagar fotografias. Pedem para ver as fotografias nas máquinas fotográficas e apagam algumas ou, então, apontam uma kalashnikov: tu dizes, “press, press, press”, “ mostra lá as fotografias”, e é assim. Aconteceu com o jornalista italiano que prenderam porque diziam que era um espião russo: não sei se era, nem sei se não, mas foi preso e nem sequer tinha entrado na Ucrânia, estava na fronteira com a Polónia. Há vários casos assim.

Derivado de manipulação grosseira, também, diz-se que morreu A ou B, foi bombardeado aquele sítio, não foi bombardeado, mas acho que tudo isso, mais tarde, é como a borra do café — vem ao de cima e, depois, vai assentando, acho que vai acontecer isso. Repito, sou contra a invasão da Ucrânia e acho que o Putin é um grande filho da mãe, desculpem o termo — é um grande sacana e a questão aqui não é só o Putin, é o Putin e tudo o que o rodeia, o regime que o rodeia. Mas, na Ucrânia, também não são rosas que se cheirem, é preciso saber-se disso. Há, ali, dois pratos na balança que as pessoas não podem ignorar. Acho piada, há uns tempos era, “ui, esses ucranianos, esses gajos, andam aí a roubar”, agora é, “venham eles todos, eles são os maiores do mundo” — nós somos de extremos. O que é certo é que o povo está a ser massacrado, está a sofrer, e não há nada que justifique a invasão de um estado a outro estado. É ali, como na Palestina, Iraque, Afeganistão, Vietname e Timor — infelizmente, temos muito para contar. É como na Jugoslávia, aqui não há bons nem maus.

Esta é a primeira guerra que também é uma guerra de redes sociais e o Zelensky teve a proeza de bater o Marcelo Rebelo de Sousa aos pontos. O presidente da Ucrânia está todos os dias na televisão e o Marcelo foi encostado às cordas, não é por acaso que ele fala em todos os parlamentos mundiais e, claro, ele era actor, comediante, o próprio partido que ele fundou tem o nome do programa dele. Ele é uma espécie de Ventura ucraniano, as pessoas não sabem disso, mas é. Como estava a dizer, isto é a primeira guerra das redes sociais, também, e é a primeira vez que estamos a viver isto — é muito perigoso. Há fake news e os próprios jornais, no fundo, até já emitiram algumas. Depois, as coisas não são rastreadas, não são oficializadas e não são tiradas a limpo. Noto que já começa a haver alguma cautela nos nossos jornalistas das televisões portuguesas porque, muitas vezes, não sabemos até que ponto aquilo é verdade. Há muita propaganda e muita contra-informação, isso há. 

Fronteira entre a Polónia e a Ucrânia / Fotografia de Adriano Miranda

RAS – Tem sido fácil para os meios de comunicação suportarem os custos inerentes a manter um jornalista ou fotojornalista nos locais de guerra? A seu ver apostaram mais ou menos neste conflito?
É difícil. Em princípio, éramos para ir embora e tão cedo já não voltamos. Isto está a entrar numa fase da guerra que, enquanto não acabar, começa a entrar num “ram, ram” que nem vai para a frente nem vai para trás e as histórias começam a ser quase todas iguais — começa a haver falta de histórias e começa a ser muito caro. Isto não é o New York Times, não é uma CNN, não são esses grandes meios que têm grande suporte financeiro para aguentar isto tudo. É à nossa escala portuguesa — a Lusa já vai embora, acho que não tem lá ninguém, o Expresso vai outra vez mas já para aí há três semanas que não tem lá ninguém. Digamos que, se calhar, as televisões têm um arcabouço maior e vão-se aguentando, mas também não sei até que ponto se vão aguentar — estar lá assim muito tempo não se consegue. Depois acaba por cair, um bocado, no esquecimento — vai deixar de ser a notícia de ordem do dia e vai-se vendo só de vez em quando. 

RAS – Na sua página do Facebook, por exemplo, divulgou uma notícia que dizia que a foto de uma menina a gritar com soldados não era, afinal, na Ucrânia. Afinal, a menina era da Cisjordânia e os eram soldados israelistas. Vivemos numa época em que qualquer imagem pode ser manipulada e pode, assim, levar ao engano e ter influência no curso da informação? Qual o papel do fotojornalista face a esta questão?
O problema das notícias ao minuto é mesmo esse, o da verificação, ver se aquilo é mesmo assim ou não. Estás a referir essa fotografia e, quase de certeza, não foi a fotojornalista que a publicou. Já foi há muitos anos e alguém — algum gajo anónimo ou alguém dos serviços secretos russos ou ucranianos, a gente não sabe como aquilo apareceu — fez aquilo aparecer de novo. Há incultura, há ignorância, as pessoas são incautas e acreditam em tudo o que lhes dão. 

RAS – E podem reagir de forma emotiva, não é?
Sim, reagem de forma emotiva. É óbvio que uma pessoa que se habituou a ser informada no Facebook, que não é jornalista, não tem obrigação de verificar se as coisas são verdadeiras ou falsas — esse é o papel do jornalista. Era grave se, num jornal qualquer, aquela imagem passasse como sendo da Ucrânia. Agora, numa rede social é preciso ter em atenção às fake news: umas são de propósito, outras não são de propósito, são falta de conhecimento mas, depois, as pessoas acreditam no que vêem. O papel do fotojornalista, aí, é redundante, não pode fazer nada. Se não foi ele que fez aquilo de propósito, não pode fazer nada. 

RAS – A pergunta é mais no sentido de perceber a opinião do Adriano perante este tipo de situações. O fotojornalista terá sempre o contexto, se estiver no local e tentar perceber o que se está a passar. 
Este tipo de coisas sempre existiram, atenção, mas de uma forma mais ténue, não tão massificada. Os meios, hoje, são outros — isso sempre existiu. Agora, eu respondo com uma pergunta: como se consegue parar isto? Acho que não se consegue parar porque as ferramentas, hoje em dia, assim o permitem. Não há nenhum bloqueio. 

Guerra da Ucrânia / Fotografia de Adriano Miranda

RAS – Talvez, a forma de parar isto, seja não divulgar, não é? E duvidar. 
Pois, mas também não há nada que proíba de publicar. 

RAS – Enquanto leitores, é duvidar!
É o que eu faço, é o que eu faço. 

Ana Isabel Fernandes [AIF] – Mas aqui, também, há manipulação dos dois lados. Alguém vê uma fotografia e como tem interesse em dar-lhe um determinado contexto, é fácil dar-lho e levar outros ao engano. Nota que isso acontece nesta guerra?
Muito, sim. Há coisas que se vão descobrir. Repara no chamado envenenamento, até o Público deu a notícia e a própria Ucrânia veio desmentir isso. Mas há uma coisa que é muito importante, quando falamos em leitores, temos de falar de leitores de imprensa — jornalismo à séria — quem lê no Facebook não é um leitor no sentido de quem lê jornais, de quem lê notícias, há lá de tudo. Existem coisas de que gosto, leio, há outras coisas que não leio, não me interessa e tento seleccionar os amigos. Hoje em dia, no entanto, acho que há dois problemas: o facto das pessoas se habituarem a ler jornais, entre aspas, no Facebook, e a ir à procura de informação no Facebook. 

Acho, contudo, que isso também é alimentado pelos próprios jornais que, também, se alimentam do Facebook e, isso, cria uma pescada de rabo na boca, porque os jornais também vão buscar os Facebooks, os twitters dos políticos, isto e aquilo — começa a ser uma grande confusão. E as pessoas, pelo menos nós, portugueses, não temos grandes hábitos de leitura, não temos hábitos de comprar jornais — não são baratos — e as pessoas já não têm tanto esse hábito, como também não têm hábito de terem assinaturas digitais porque acham que isto deve ser tudo de borla — fogem ao máximo — então vão às redes sociais, ao Facebook. Eu, por exemplo, tudo o que vejo no Facebook, tirando coisas que sei que são credíveis, tenho grande dificuldade em partilhar ou ler. 

Homens e mulheres que se vão alistar no exército como voluntários na academia militar / Leviv, na Ucrânia / Fotografia de Adriano Miranda

AIF – Além das suas fotos, o Adriano escreveu um total de 10 crónicas a relatar a sua experiência na Ucrânia. Tendo em conta que também sentiu necessidade de as escrever, seria interessante perguntar, como fotojornalista, o que é que a fotografia, uma imagem, tem, que um texto não tem? E o que é que um texto tem que uma imagem não poderá transmitir. 
Isso é tão difícil de responder. Para já, escrevo porque gosto de escrever, pronto. Uma coisa que comecei tarde, mas acho que ainda estou num processo de descoberta. Tenho escrito várias crónicas para o jornal porque há coisas que tu não fotografas ou porque não deu, por alguma razão, ou porque não te apeteceu, não quiseste. É raro andar de máquina fotográfica, vejo muitas fotografias à minha volta, mas não ficam materializadas. Inconscientemente, até vou educando o meu olhar. Há muita gente que me diz que a forma como escrevo é muito fotográfica, é quase como se estivesse a fotografar porque estou a descrever o que estou a ver. Há, no entanto, coisas que não fotografo porque são mais fáceis de transmitir através de palavras do que, propriamente, da fotografia e vice-versa. 

Há sentimentos que, de outra forma, não consegues transmitir e, digamos, que senti essa necessidade ao fim de dois dias de ir para lá. Foi curioso porque falei com o meu colega e disse-lhe: “vou dizer-te uma coisa, se me disseres que não, não levo a mal, cada macaco no seu seu galho — estás aqui para escrever, estou aqui para fotografar — mas gostava de fazer isto”. Ele disse-me logo, “vamos já falar para Lisboa e publicas todos os dias”. Assim foi, o nome da crónica “Da Ucrânia com amor” até foi ele que sugeriu — íamos de táxi e nem sabia que há um filme que se chama “Da Rússia com amor”, mas aquilo foi uma necessidade, mais como um desabafo. Acho que é um complemento às fotografias que vou fazendo. Bem ou mal, complementam-se e acrescentam, sempre, mais alguma informação às fotografias, que é essa a minha função. 

AIF – A máxima de que “um texto vale mais que mil palavras” pode não ser totalmente verdadeira. Concorda? Dependendo do contexto, uma foto pode ser traiçoeira? 
Vou dizer-te uma coisa que não é nada politicamente correcto, mais ainda sendo fotojornalista, mas sempre aprendi assim e concordo. A fotografia não é nada do real. Dir-me-ão assim, “a fotografia não é nada do real, mas você não é fotojornalista? Como é que nos relata a realidade?” Até parece uma incongruência, mas não é. Quando fotografei aquela criança a chorar porque queria fugir com o pai para a Polónia e, se calhar, não ia conseguir — não sabiam da mãe porque a mãe, em princípio, está morta e o pai estava aterrorizado e a filha ainda mais — aquelas lágrimas, aquelas crianças, aqueles rostos são reais. Existiram, estavam à minha frente e não foram inventados. Quanto à parte irreal da fotografia, é outra história. Aquela fotografia não é a mesma nem para os russos, nem para mim, nem para o António, nem para o Manel. Cada um vê a sua realidade à sua maneira. 

RAS – São as nossas crenças depois, não é?
Claro, é isso mesmo. 

RAS – É por isso que o fotojornalismo se faz com o texto, porque ajuda no contexto.
Claro, digamos que o trabalho jornalístico, a escrita, o trabalho de redactor, digamos assim, complementam-se. Podem viver em separado, vá. Há livros de fotojornalistas só com as fotografias, sem o texto, e o texto também sobrevive sem fotografia. Há fotos tão boas que também sobrevivem ao tempo, só por si. 

RAS – Mas, se calhar, num contexto de guerra como o actual, tem de haver esse complemento, vivem bem juntas, ajuda a dar contexto. 
Porque também estamos a ver a coisa no momento, a quente — é a notícia do dia, ao minuto. Imagina, agora, os textos do Luciano Alvarez e as fotografias do Miguel Manso daqui a dez anos. Elas vivem, completamente, autónomas. Se calhar, amanhã vou ler a reportagem que fizeram hoje, mas aí é ao momento e as coisas têm de casar uma com a outra. Com o tempo, depois, vão maturando e ganham asas, cada um vai à sua vida. 

AIF –Terminou a sua última crónica da seguinte forma: “Memória crua e dura é necessária. Auschwitz é aqui tão perto e está tão perto.” Numa altura em que se fazem comparações com o início do século XX e a inevitável comparação com a Segunda Guerra Mundial, até pelo medo de uma possível III, porque escolheu terminar com esta comparação? Acha que a comparação se justifica? 
Auschwitz, realmente, é muito perto e, depois, por trás desta guerra, há muitas ideias, sinergias, que deram início à Segunda Guerra Mundial que criou este campo de concentração. Digamos que essa frase é um alerta para que as pessoas tenham mais juízo e combatam ideias que já deviam estar erradicadas há muito tempo mas que, infelizmente, surgiram com força. Falamos, neste momento, da invasão russa à Ucrânia, mas há uma coisa de que pouca gente fala: da Ucrânia pode haver uma invasão também, não uma invasão de armas, mas uma invasão de ideias e, essas ideias, são bem negras. Aliás, elas já estão cá em Portugal, também, nunca saíram de cá, mas estão a fermentar com novos protagonistas e pessoas novas. Essa frase é precisamente um alerta, “meu amigos, temos esta guerra, temos de a combater, isto tem de acabar, mas há outras guerras que podem vir e que são tão perigosas quanto esta.” Na fermentação desta guerra, também estão muito presentes as ideias que criaram esse campo de concentração — de ambos os lados, não só de um lado, mas de ambos os lados. Peça noticiosa é uma coisa, crónica é outra, texto de opinião é outra. São coisas diferentes e o jornalista não se pode despir de conceitos. Não pode branquear tudo. 

Homens e mulheres que se vão alistar no exército como voluntários na academia militar / Leviv, na Ucrânia / Fotografia de Adriano Miranda

AIF – Um dos aspectos em discussão da classe jornalística tem sido, precisamente, este: uma grande parte acredita que, mesmo em contextos mais desumanos, como num contexto de guerra, um jornalista não deve mostrar o “choradinho”, comoção ou uma atitude mais afectada. Deve sempre colocar o que está a passar e o tumulto interior para último plano, dando primazia às histórias. Mas, por outro lado, um jornalista é humano. É possível passar-se incólume de uma situação dessas, sem deixar isso transparecer no trabalho apresentado? Estou a lembrar-me das fotos dos funerais e na crónica em que diz, “Fixo um jovem fardado e hirto. Tem consigo a bandeira que jurou defender. É parecido com o meu filho mais velho. Recordo o rosto do João. Recuso-me a imaginá-lo de arma em punho.”
Não concordo com isso. É lógico que há a questão da isenção, isso é a verdade, mas um jornalista não deixa de ser um ser humano. Não há santos. Como se disse no início desta conversa, o jornalista não deixa de ser fruto das suas crenças, educação, convicções e não há santos imaculados nesta profissão. Se vocês lerem os textos do Luciano Alvarez, ele, também, dá muito o seu cunho pessoal, até dá um cunho pessoal a mais — mas é um estilo. Não deixa de escrever, contar o que viu, expondo a sua experiência pessoal. Isso é legítimo. Agora, não estive a noticiar, fiz outro estilo que é a chamada crónica — são espaços que estão bem diferenciados do resto do jornal. 

AIF – Mas surgiu, realmente, a crítica, principalmente aos jornalistas de televisão, que estes punham a dificuldade da sua experiência em primeiro lugar, em detrimento das histórias da população. Foi uma crítica que se alastrou, depois, à classe jornalística. 
É tal e qual como a guerra. Quem fomentou a guerra foi o poder russo, neste caso, encarnado pelo presidente que é o Putin, mas quem leva é o povo russo. Deixou-se de ver a cultura e música russa, deixou-se. O que acontece é que, realmente, o jornalista não pode ser o centro da notícia, isso não existe, é de um pedantismo atroz. O jornalista está ali para reportar e o protagonista deve ser a mãe, o filho, o avô, o soldado que estão a sofrer. Agora que haja, em crónica, a tua visão pessoal, não vem mal nenhum ao mundo nisso. Faz-se em todo o lado e espero bem que se continue a fazer. São visões pessoais mas que não deixam de ter nas entrelinhas factos noticiosos. Não se pode generalizar e tem de se reconhecer os vários géneros, os vários patamares dentro do jornalismo. Escrever na primeira pessoa não é fácil, é muito difícil — é mais difícil do que não escrever na primeira pessoa, precisamente, por causa disso. 

É fácil resvalar para os egos e veleidades, de seres mal interpretado e, nesse sentido, é um perigo, mesmo. Mas, no meio da história da tua vivência pessoal, num cenário drástico que é a guerra, se tu souberes ler, vais buscar muita informação. Vou-te dar o exemplo de uma crónica deliciosa que o Luciano Alvarez escreveu, quando foram parar numa auto estrada, numa bomba de gasolina, e soldados de kalashnikov começaram a vasculhar a máquina fotográfica — só pararam quando viram a mulher do Luciano em biquíni. Não interessa o facto da mulher do Luciano estar de biquíni ou não, mas se tu leres aquilo nas entrelinhas, quer dizer muita coisa. Não é um texto com as regras todas formatadas, mas é pessoal do que se passou e, ao mesmo tempo, consegues perceber muita coisa. Não se trata de um romance, não é um texto de ficção — passou-se com eles. Não se iria fazer uma notícia sobre aquilo, como é óbvio, mas ao escrever o testemunho do que se passou, está-nos a dar informação sobre o que se passou. 

AIF – A capacidade de haver aquela separação mínima emocional com o que se fotografa e deixar o curso das coisas correr, é algo que se consegue adquirir com o tempo? 
Acho que sim, a experiência ensina-nos, não é? O que já viveste num lado serve de exemplo para outra situação e, também, consegues criar anticorpos. Olha, é um bocado como a vacina. Não é crítica a ninguém, mas depende da reacção das pessoas: há colegas que conseguem ser imunes ao sofrimento. Não quer dizer que não sofram ou não sintam, mas no sentido de mostrarem isso. Há outros que não, há colegas que se desmancham e vou-te dar um pequeno exemplo: estou a fazer um trabalho em volta de doentes terminais com cancro e eu e um colega fomos ouvir um depoimento de um pai e de uma mãe cujo bebé tinha morrido há pouco tempo. A senhora falou, falou, falou e, depois, no final, disse-nos que ainda não tinha falado com ninguém sobre a morte do filho, mas falou connosco. Durante a entrevista vieram-me, muitas vezes, as lágrimas aos olhos e o meu colega ficou como uma estátua. Despedimo-nos do casal, apanhámos o elevador e ele começou a chorar, mas assim uma coisa fora do normal, como uma catarse. Eu não, passou-me e acabou, pronto. Cada um reage à sua maneira, não quer dizer que as pessoas não tenham sentimentos. 

Depois, há uma coisa terrível que é a tua impotência num cenário destes — não consegues fazer nada. Sinto-me mal em saber que há um pai e uma mãe que choram, ou saber daquela situação do pai com a criança que não sabe onde está a mãe e que, provavelmente, está morta. Não podes ir procurar, não encontras, não sabes, até te sentes mal em te despedires, “vamos embora, olha, agora aguenta-te.” Outra coisa é o não saberes o fim da história. O que é que acontece às pessoas? Não sei se entraram no comboio, no enfim. No outro dia, uma leitora — por acaso ainda não respondi, já devia ter respondido — mandou-me um mail sobre essa reportagem e gostava de saber o que aconteceu àquele homem e àquela filha. Essa preocupação, muitas vezes, persegue-nos durante muito tempo. Às vezes, demora muitos anos a passar, mas não há nada a fazer, não se pode, não se consegue. Isso é frustrante, a parte mais frustrante do nosso trabalho é, precisamente, essa. 

Esta entrevista foi realizada em Março de 2022 por Ana Isabel Fernandes e Rui André Soares.

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