Entrevista. Adriano Miranda: “Não cedo ou vendo fotografias minhas para publicitar partidos políticos ou empresas”

por Comunidade Cultura e Arte,    1 Maio, 2022
Entrevista. Adriano Miranda: “Não cedo ou vendo fotografias minhas para publicitar partidos políticos ou empresas”
Adriano Miranda – Público
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Estava longe da ideia de Adriano Miranda vir a ser fotojornalista, mas uma ida casual à Rua do Carmo, na Baixa de Lisboa, já quando leccionava na escola de fotografia ARCO, mudou-lhe o destino e, timidamente, tentou a sua sorte porque, na altura, havia uma vaga disponível no jornal Público — por isso mesmo, já é fotojornalista há 25 anos, sempre no mesmo jornal. A Comunidade Cultura e Arte teve uma longa conversa com o fotojornalista que esteve, recentemente, na Ucrânia.

Nesta primeira parte (lê aqui a segunda parte), abordou-se a evolução do jornalismo e fotojornalismo desde os anos 90 até aos dias hoje, a importância das redacções descentralizadas, as crises e os momentos de prosperidade do jornalismo, a imagem e a sua banalização contemporânea, sem esquecer a questão dos créditos a fotojornalistas. Não se deixou de parte, igualmente, a questão da separação que tem de existir entre política, o mundo empresarial e publicitário, do fotojornalismo.

Sobre isso mesmo, Adriano Miranda afirma, “há pessoas que nos telefonam e que, realmente, querem comprar ou, nós próprios, fornecemos fotografias feitas no âmbito do jornal, de âmbito jornalístico, em que nós podemos ceder a estudantes, a universidades ou a editoras. Agora, eu não vou ceder ou vender uma fotografia minha para fazer publicidade a um partido político ou a uma empresa.” A segunda parte da entrevista, publicada brevemente, será, em específico, sobre a guerra da Ucrânia e a sua experiência enquanto fotojornalista, no teatro de guerra.

Ana Isabel Fernandes [AIF] – Quando é que o Adriano percebeu que gostaria de fazer fotojornalismo e não fotografia de autor? Queria que me explicasse como é que descobriu o fotojornalismo!
Andei, como costumo dizer, na melhor escola de fotografia do país, a ARCO, em Lisboa. Não tinha vocação nenhuma para fotojornalismo, para fotojornalista. Gostava, aprendi a apreciar os gurus do fotojornalismo internacional que, também, dávamos na escola, mas nunca tive a pretensão de querer ser fotojornalista. Lembro-me, em criança, de ter o hábito de ver os bonecos no “Jornal de Notícias”, que era o jornal que o meu avô assinava e, todos os dias, via o jornal. Recordo-me de chegar às fotografias do futebol e pensar, “eu gostava de ser fotógrafo de futebol.” Na minha ideia de criança, os fotógrafos viam os jogos de borla e era, portanto, uma forma de ir à bola de borla. Hoje, sei que os fotógrafos não vêem jogo nenhum de borla, bem pelo contrário, não vêem o jogo. Mas o fotojornalismo aconteceu como um mero acaso da vida, assim como estar no “Público”, o meu único jornal até hoje, desde há 25 anos — vai fazer em Dezembro 25 anos. 

Rui André Soares [RAS] Está lá desde o início do Público?
Não, o “Público” tem 32 anos, salvo erro, e entrei passados uns cinco anos depois da fundação. Acabei o curso, comecei a trabalhar nos meus projectos e convidaram-me para dar aulas na ARCO, ou seja, acabei o curso e passei do estatuto de aluno para o estatuto de professor. Almoçava todos os dias na ARCO mas, naquele dia, apeteceu-me ir até à baixa de Lisboa e, na Rua do Carmo, a famosa “Rua do Carmo” que os UHF imortalizaram, encontrei um grande amigo, o Luís Filipe Catarino — era fotógrafo, na altura, do Expresso, depois foi fotógrafo da “Volta ao Mundo”, foi o fotógrafo oficial durante os 10 anos do Cavaco Silva enquanto presidente e foi fotógrafo oficial do presidente da Câmara de Lisboa, o Medina, que perdeu agora as últimas eleições — portanto, o Catarino encontrou-me e disse-me que ia abrir uma vaga. Isto é impressionante, hoje já não se aplica este termo nos jornais, mas que vaga era essa?

A fotógrafa Luísa Ferreira ia sair do “Público” e ia para a AP. O Luís disse-me, “vai lá mostrar o teu portfólio”. Respondi-lhe, “não vou nada, estás maluco? Até tenho medo de ir ao “Público.” Mas acabei por ficar com o telefone da redacção do jornal, o editor era o Luís Vasconcelos — nem sabia quem era — liguei-lhe e, ao outro dia, fui lá mostrar o meu trabalho. O meu trabalho era, portanto, todo um trabalho académico —o que fiz durante os três anos do curso, mais propriamente o último ano, foi esse o mais forte — e foi esse trabalho que mostrei ao Vasconcelos. Na altura disse-me, “mas não vieste cá há mais tempo, porquê?” Respondi-lhe, “por que sou tímido, não acho que tenha muita apetência para ser fotojornalista.” Mas ele ficou com o meu número de telefone e, passado alguns meses, em Dezembro, telefonou-me para me perguntar se queria ir para lá e fui — estou lá até hoje. Foi assim, portanto, que aprendi. Não sabia nada de fotojornalismo, nem de jornalismo, só sabia ler o JN e apreciar as fotografias de futebol, não sabia mais nada. Digamos que, para mim, o “Público” foi a minha segunda escola. Tudo o que sei, hoje, aprendi no “Público”.

Incêndios de Pedrógão Grande / Fotografia de Adriano Miranda – Público

AIF – Acontecia com os fotojornalistas de antes o mesmo que acontecia com os jornalistas — não havia formação específica e muitos profissionais vinham de outras áreas. 
Sim, muitos jornalistas vinham da área do Direito e das letras. Hoje, felizmente, há cursos da especialidade e, também, vocacionados para a fotografia e, em concreto, para o fotojornalismo. 

AIF – Mas agora, olhando para trás, gostaria de ter tido essa formação desde o início? Pode tornar as coisas mais fáceis para quem começa? 
Não, não acho, e vou-te responder o porquê. A faca vai-se virar contra mim porque, ao longo destes anos todos, continuei, sempre, a dar aulas. Lecciono no IPCI, no Instituto de Produção Cultural & Imagem, no Porto — abriu, agora, em Lisboa, também — e dou, realmente, a cadeira de fotojornalismo. Mas não acredito, e por isso é que sou fã da ARCO, num ensino de fotografia espartilhado e fragmentado, do género, “50 horas fotografia de casamentos, 20 horas de fotografia de baptizados, 10 horas de fotografias de funerais”. Estou a brincar, mas não acredito num método de, por exemplo, agora são 50 horas de fotojornalismo e agora outras tantas de publicidade, por exemplo. Não acredito em nada disso. 

Acredito no ensino da fotografia como um todo. A fotografia é um todo e vai desde o casamento, funeral ou, até, fotografia documental, até ao fotojornalismo, ciência e medicina. Há um grande leque e, nós, devemos, na nossa aprendizagem, sermos o mais abrangentes possível. Nunca mais me esqueci das palavras do director do curso de fotografia da ARCO, o Manuel Silveira Ramos. Quando soube que ia para o “Público”, ele disse, “Oh Adriano, tu vais ser um bom fotojornalista. Vais, porque tens uma abrangência estética da fotografia que não irias ter se te especializasses num determinado assunto. Tens uma visão lata da fotografia.” 

Noto isso. Tive a sorte de trabalhar num jornal que assim, também, o exigia e, aliás, é curioso que a maior parte ou a totalidade dos fotógrafos que estavam no “Público”, na altura, tinham passado pela mesma escola que eu e tinham, portanto, essa abrangência. O que tive de fazer foi encaixar a parte estética e técnica, que sabia, e aplicar essas duas componentes na parte jornalística, que era o que eu não dominava — aí tive de aprender. Depois, foi aplicar essas duas componentes que, para mim, são muito importantes numa foto e no fotojornalismo — que não é fazer só chapa cinco — tem que ter lá essa dimensão estética, humana e técnica, também. 

Foi só adaptar-me, portanto, juntar dois mais cinco e fotografar. Para mim, foi muito fácil porque ia com horizontes, não ia espartilhado e, isso tudo, também se notou ao longo destes 25 anos. Durante esse tempo nunca deixei de fazer os meus trabalhos de autor e fazer as minhas brincadeiras. E, aí, só posso agradecer ao ARCO, não posso agradecer a mais ninguém.

Presidente da República Cavaco Silva desmaia durante discurso do 10 de Junho de 2014 / Fotografia de Adriano Miranda – Público

AIF – Pegando na deixa da sua resposta acha, então, que um fotojornalista com essa formação de raiz, que comece agora, poderá ter uma percepção diferente da fotografia, por lhe faltar essa abrangência?
Falta mundo! Como em tudo na vida, não podemos pôr umas palas como os cavalos e só olharmos para um lado e não sairmos dali. Temos de ter abrangência, mas acho que os cursos como estão, hoje, montados — conheço alguns, tanto profissionais como do ensino superior — permitem essa abrangência. No IPCI, por exemplo, no curso profissional, tu não sais de lá fotojornalista ou especialista em casamentos ou publicidade, sais de lá com uma abrangência total. A partir daí, depois, o caminho é teu. O teu caminho é escolhido porque foste almoçar, naquele dia, à Baixa de Lisboa, ou não tens oferta de emprego e tens de ir fotografar para um hipermercado, mas isso, depois, depende de muitos factores e o mercado de trabalho, hoje em dia, na área do jornalismo e do fotojornalismo, não tem nada a ver com a área de mercado de há 25 anos. Hoje é impensável abrirem-se, assim vagas. Isso é impensável. Acabaram-se com as vagas.

AIF – Já focou, na sua resposta, a questão da criatividade que o “Público” exigia quando começou. Que lugar a criatividade deve ocupar no fotojornalismo? É fácil encontrar, sempre, esse novo ângulo? 
Não é fácil, não é nada fácil, mas nós, no “Público”, sempre fomos educados neste sentido — tanto faz fotografar a guerra, como fotografar o Presidente da República, o ministro ou, até, o buraco que está na rua, tens é de trazer, sempre, uma boa fotografia, nem que seja só uma. Quanto a nós, para fotografar o buraco da rua ou o Presidente da República, temos de ter o mesmo desempenho.

É lógico que fotografar um buraco na rua é diferente do que fotografar o Marcelo Rebelo de Sousa, mas a questão estética tem de estar lá. Nós não podemos ir fotografar o buraco na rua e pensar, “Oh pá, isto não tem interesse nenhum.” Não, é para chegar ao sítio e perceber onde é que o buraco está inserido, o que é que há à volta do buraco e, depois, jogar com os enquadramentos, com as linhas, com as pessoas a passar e, depois, também posso dizer que começa a ser receita. 

Estou a falar do buraco na rua porque foi o primeiro serviço que tive, foi nas obras na rua da Pampulha — nunca mais me esqueço — em Lisboa, e, na altura, ainda era película e eu fiz, para aí, dois rolos de 36 fotografias, porque era a minha insegurança de ir fotografar o raio do buraco, umas obras, portanto. É lógico que se me mandarem fotografar umas obras, fotografo completamente diferente do que há 25 anos, vou completamente descontraído. Se mandarem fotografar o Marcelo Rebelo de Sousa, também vou completamente descontraído, coisa que não acontecia há 25 anos. Até tremia quando me diziam, “olha que a foto do buraco ou do Marcelo podem ser foto de primeira página.” Então, aí, era uma coisa tremenda, ficávamos a tremer. Outra coisa, ainda era a película e não sabias o que é que levavas. Hoje, nós olhamos e temos logo a percepção de como fica. 

Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – E a película tinha custos.
Tinha custos, sim, e era um exagero gastar-se dois filmes no raio de um buraco. Fazia isso por insegurança, pronto. Se gastasse dois filmes no Marcelo, se calhar até podia ser mais, mas no raio de um buraco? Ou seja, nós temos de olhar e sermos o mais criativos possível, para dalí trazermos uma fotografia bonita.

Estava à conversa com o meu colega Miguel Manso, que me foi substituir para a Ucrânia, e estávamos a falar, precisamente, do nosso trabalho e do trabalho dos outros colegas. Felizmente, estão alguns portugueses, e bem bons, na Ucrânia e estávamos, precisamente, a falar disso. Não estávamos a falar de questões técnicas, nem se usamos a máquina tal, nós estávamos a falar, precisamente, das questões da abordagem, como é que se aborda uma guerra, e como o Manso, eu e os outros colegas que lá estiveram têm olhares, completamente, diferentes. Isso é muito curioso ver porque, se calhar, andámos todos na mesma escola, lemos todos os mesmos livros mas, depois, temos uma outra coisa que é muito importante, a nossa formação enquanto indivíduos.

A nossa formação enquanto indivíduos é a nossa formação cultural, é uma formação de valores dados pela família e amigos. É uma formação política e ideológica, até pode ser uma formação clubista, religiosa e, parecendo que não, o jornalista não é imune a essas coisas. Somos seres-humanos e é bom que tenhamos as nossas ideias, as nossas opiniões e nós, por vezes — falo para mim — transmito muito, isso, às minhas fotografias. Às vezes, há pormenores que as pessoas não percebem mas, acho eu, sinto que eles estão lá.

RAS – Também, por isso, é que é importante haver portugueses a fazer o registo da guerra. É sempre o ponto de vista de um português a fazer o registo da guerra da Ucrânia, por exemplo. 
Claro, claro!

RAS – É completamente diferente.
É completamente diferente e, depois, tens outra coisa que é muito importante. Na altura da primeira guerra do Iraque, era editor de fotografia e aconteceu, muitas vezes, termos fotografias de capa entre nós e o DN — que éramos os concorrentes mais acérrimos — iguais, do mesmo fotógrafo. Calhou, não foi nada combinado. A fotografia era boa, o director do DN escolheu, o director do Público escolheu e pronto. 

Não estavam lá fotógrafos nem do Público nem no DN naquela guerra. Hoje, com esta guerra, e é curioso porque é aqui na Europa e tal, toca-nos de outra forma, não há jornal nenhum que não tenha lá fotógrafo. O DN já não consegue ter uma fotografia igual à do Público e vice-versa. 

As histórias também são completamente diferentes. Podemos partir da mesma história, mas os ângulos são completamente diferentes e, isso, é uma mais valia para o jornalismo. É um investimento, claro que o jornal está a investir, mas é um investimento para os leitores, porque estamos a dar histórias e visões diferentes aos nossos leitores. Isso é muito importante.

AIF – Mas nesse caso da criatividade e visões diferentes, se calhar é o que se pede a um fotojornalista, mas não a um jornalista. Nesse prisma, o trabalho de um jornalista acaba por ser diferente do trabalho de um fotojornalista de raiz. 
Entendo o que queres dizer, mas no fotógrafo, se calhar, é mais imediata a sua leitura porque estamos a lidar com um momento visual, não é? Eu sou capaz de ver as fotografias todas de um jornal sem ler nem uma notícia. Vejo as fotografias e não leio nada. Mas o jornalista também tem o poder da criatividade, com a sua criatividade na escrita. Há jornalistas que adoro ler e há outros que detesto — não é uma questão de opinião, é a forma como escrevem. Por exemplo, nós já tivemos três jornalistas, três relatos diferentes da guerra da Ucrânia e, todos eles, é curioso, escrevem completamente diferente e trabalham no mesmo jornal.

Eu também fotografo de forma completamente diferente do Miguel Manso. Aí está a criatividade também. Quando digo criatividade, não é a criatividade de irmos ao imaginário, como, por exemplo, o soldado ucraniano estar de amarelo mas, para ficar bem, dizemos que está de cor-de-rosa, às bolinhas azuis. Isso é outra coisa, certo? A criatividade é a forma como tu amassas a massa e, depois, constróis o bolo. Eu leio os textos do Luciano Alvarez e a sensação é a de que estamos lá. Não é aquela coisa crua e dura da reportagem.

Mário Cesariny / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – É quase literário, não é?
É isso, mas a informação está lá. Ele não vai deixar de dar a informação, é jornalista, mas não vai deixar de dar informação nem está a inventá-la, no mau sentido, só que consegue cozinhá-la de uma forma prazerosa para a leitura. Isso é fundamental porque não consigo ler jornais económicos. Quando ouço as bolsas na Antena 1 desligo porque, para mim, aquilo é uma fábrica, é encher chouriços, pronto, é o que é. Mas tanto os redactores como os fotógrafos, até mesmo na televisão, os câmaras e tudo, quando digo criatividade, é dar alma, dares alguma coisa de ti, sem ser aquela radiografia pura e dura e acabou. Mas, por exemplo, se formos falar de uma Agência Lusa, acho que aí a escrita e, até, a maneira de fotografar já é diferente porque, nesse contexto, as tuas palavras e a tua imagem vão para vários jornais do mundo e, depois, vão ser repescados por outros jornalistas — aí tem de ser uma coisa mais limpa, digamos assim.

RAS – Os alunos de Comunicação Social/Ciências da Comunicação da área de jornalismo são, muitas vezes, confrontados com o facto de terem de ser canivetes suíços porque o mundo do trabalho assim o exige, embora não tenha sido sempre assim — muitas redações, falo principalmente das pequenas, nem sempre têm jornalistas, fotojornalistas e pessoas encarregues da edição do vídeo, discriminadamente. Pode acontecer ser o jornalista em si a tratar dessas questões. Tem essa percepção da realidade? Como olha para este facto?
Costumo dizer que o saber não ocupa lugar, quantas mais ferramentas souberes tocar, melhor. Agora, não me podem exigir a mim que toque as ferramentas todas porque eu não tive formação para isso. Há dez anos, mais coisa menos coisa, criou-se aí uma onda — que era a grande moda que vinha dos Estados Unidos, nós vamos muito com o vento dos Estados Unidos — que era a do jornalista mochila. O que é que era isso? Era o jornalista que escrevia, filmava o vídeo e, também, através dos frames do vídeo, retirava uma, duas ou três fotografias — o que quisesse. Fazia tudo, pronto! Isso, numa lógica de mercado, numa lógica mercantilista e capitalista, é do caraças. Deixei de ter três gajos e passei a ter um.

Não é por acaso que sou eu que tenho de pagar e sou eu que atesto o carro porque deixou de haver um funcionário para o atestar. Não é por acaso que, nas portagens, já não há portageiros — agora temos máquinas e acabaram-se com postos de trabalho. As coisas, portanto, não são tão inocentes. Claro que tendo, nós, os órgãos de comunicação social nas mãos dos grandes grupos económicos, que são empresas, empresas privadas, claro que se começou a esfregar as mãos, de contentamento: “ Eh pá, em vez de pagar a 3, pago a um. Em vez de ter uma redacção com 100 pessoas, tenho uma redacção de 20. Isto é uma maravilha.” Essa moda começou a chegar a Portugal com a entrada do online, com as novas plataformas digitais – nos dias de hoje, fazer um jornal é completamente diferente do que era há 20 anos — o vídeo começou a ganhar muita importância. Isso fez com que, por exemplo, em alguns jornais os fotógrafos tivessem deixado, praticamente, de fotografar e passaram a fazer vídeo. 

Começaram a pedir aos redactores, também, para fazerem vídeos e começaram a comprar telemóveis para se fazerem filmagens por telemóvel, mas sem formações. Não havia formação e, depois, havia fotógrafos que faziam vídeo e fotografavam, pronto, era uma grande confusão. Só para dar um exemplo, lembro-me da Agência Lusa ter posto fotógrafos a filmar. Iam a uma conferência de imprensa, que é uma coisa que eles fazem muito, e filmavam e fotografavam — aquilo deu logo problemas. No Público, felizmente, ainda houve umas tentativas mas houve, também, algumas resistência e fizeram o que devia ser feito — tu tens equipas de redactores, equipas de fotógrafos e equipas de videógrafos. Quando há uma reportagem em que se entende que deve ter fotografia e vídeo, vão três pessoas — vai o redactor, o fotógrafo e o videógrafo. 

Sophia de Mello Breyner Andresen / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – Foi o que aconteceu agora com o concerto de despedida da Simone de Oliveira, não foi?
A malta diz, “ah, mas os fotógrafos desenrascam-se no vídeo.” Não é bem assim. Podemos ter noções de enquadramento e tal, mas nem sei editar vídeo. Não tenho formação em vídeo, a minha formação é em fotografia, e sempre disse que eu não faço porque não tenho formação e acho que se exigem aos fotógrafos boas fotografias, também têm de exigir bons vídeos. Não basta ter vídeos no online só por ter, porque é giro e bonito, têm de ter qualidade senão a malta não vê.

Há, ainda, outra questão, estou a tirar um posto de trabalho. Há pessoas que têm formação em vídeo, em boas universidades e escolas profissionais e estou a tirar postos de trabalho. Ainda agora entrou mais uma colega para vídeo para a redacção, agora, não faço vídeo nenhum? Faço! Ainda agora, na Ucrânia, pediram-me. Não foi um videógrafo, era mais um custo, e disse que sim, que fazia. Fiz com um Iphone, gravei uma série de vídeos, depois mandava os vídeos todos e alguém, na redacção de Lisboa, montava e editava. São coisas curtas, pequenas. 

AIF – Mas o vídeo e a fotografia apresentam linguagens diferentes, também há esse factor. 
Depois, começaste a ter coisas muito más, conteúdos muito maus. As pessoas, assim, não vão ver. Depois, se estás num segmento alto, num tipo elevado de referência e começas a ter conteúdo sem qualidade, os leitores não gostam, os leitores não são burros. 

RAS – O leitor pode não perceber bem do que é que não está a gostar, mas sabe que não gosta. 
Isso é verdade. Isso acontece muito porque o leitor nota e não sabe como é que as coisas são feitas. Mas o leitor também não tem de saber, tem de gostar ou não gostar, não é? Isso leva-nos a outra coisa, que é o chamado repórter cidadão, porque todos nós, hoje, andamos com uma máquina fotográfica e uma máquina de vídeo no bolso que é o telemóvel. Isso começou há uns anos, até com imagens do 11 de Setembro, com as imagens do atentado na estação da Atocha, em Madrid. 

Lembro-me da morte do Jonas Savimbi, as fotografias que haviam eram fotografias de telemóvel, foi algum soldado angolano, portanto, que fotografou. Na morte do Saddam, supostamente, ninguém iria ver o enforcamento, mas alguém pegou no telemóvel, filmou e, depois, não resistiu e difundiu o vídeo — basta dar aquilo a uma agência internacional e, depois, aquilo espalha-se, torna-se viral. Basta, até, pôr no Facebook e pronto. E, hoje, vai-se buscar muitos conteúdos às redes sociais. 

A guerra da Ucrânia está cheia disso. Nós vimos, muitas vezes, imagens da frente de batalha, que os próprios soldados fazem, os próprios cidadãos, e esses conteúdos são muito usados, hoje em dia e, às vezes, estão no pico de audiência. Por exemplo, alguém espetou, no passeio, a faca no peito da namorada — é claro que estou a exagerar — mas há jornais que iriam publicar, outros que não iriam publicar, certamente. Mas há uns que adoram essas coisas e o que é certo é que o público, o espectador, também gosta. Gosta e tem de clicar para ver. 

Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – Vivemos na era da imagem e as fotos abundam nas redes sociais, isso pode levar à banalização da imagem. Estou a pensar no caso em que é muito fácil fotos oficiais de fotojornalistas circularem em vários sítios sem ser referido, até, o nome do autor. Como olha para esta questão? Há até jornais que nem sempre referenciam os créditos das imagens ou fotos.
Pois, isso sempre foi uma velha questão. As fotografias têm autor e, antigamente, nem sequer eram assinadas. Os fotógrafos eram tratados abaixo de cão, aliás, começaram a ter carteira profissional após o 25 de Abril. Os fotógrafos e os câmaras da RTP — só havia um canal de televisão — não eram equiparados a jornalista, isso só começou a acontecer depois do 25 de Abril. Posteriormente, digamos que a outra luta pautou-se, precisamente, pelos créditos. 

Os jornais começaram, realmente, a assinar, e o Público foi dos primeiros jornais que começou a assinar as fotografias dos seus fotógrafos. Ainda hoje há jornais que não assinam, raramente o fazem ou só de vez em quando. Hoje em dia, com as redes sociais, banalizou-se, completamente, a fotografia e os seus direitos de autor. Nós temos, e já me aconteceu a mim 500 mil vezes, chegar a ser insultado por causa de cartazes de um partido político qualquer. Alguém me chama atenção, “olha, já viste a tua fotografia que está aqui?” Ou, então, eu próprio encontro e contacto o partido político e sou insultado com o argumento de que se está na internet, é público.

RAS – Isso aconteceu com a fotografia do Alfredo Cunha ao Salgueiro Maia. Foi o CDS, acho eu. [Em 2017, a Juventude Popular colocou um filtro azul na foto icónica de Salgueiro Maia, da autoria de Alfredo Cunha, com o intento de celebrar o 25 de Abril]

Foi a Juventude Popular. Qualquer pessoa vai à internet, encontra uma fotografia de que gosta e pronto. Aconteceu agora, quando estava na Ucrânia, com uma fotografia minha que foi capa — uma colega minha mandou-me a publicidade de um letreiro, que estava a angariar dinheiro, com a fotografia. Na altura estava na Ucrânia, não estava cá para tratar disso, e deixei andar. Mas é uma falta de respeito pelo trabalho do fotógrafo mas, muitas vezes, também fazem bom uso, com a devida identificação. 

Muitas vezes, cedo muitas fotografias minhas e só peço que ponham o crédito, pronto. E tem acontecido isso, são pessoas que eu conheço. Nas redes sociais, por qualquer motivo, quando vão buscar uma fotografia minha, também têm o cuidado de colocar, “fotografia de Adriano Miranda.” Também não sou inocente e já o fiz, com colegas meus. Agora, há pessoas que nos telefonam e que, realmente, querem comprar ou, nós próprios, fornecemos fotografias feitas no âmbito do jornal, de âmbito jornalístico, em que nós podemos ceder a estudantes, a universidades ou a editoras. Agora, eu não vou ceder ou vender uma fotografia minha para fazer publicidade a um partido político ou a uma empresa.

Mário Soares em 1999 / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – No caso do Salgueiro Maia, é engraçado, do ponto de vista negativo, claro. Toda a gente sabe de quem é a fotografia, à partida. É caricato porque é um partido político a usá-la. Sabem que sendo um partido político, têm de pedir autorização, pelo menos. 
Claro, claro! Aconteceu há pouco tempo comigo, com um partido político — não te vou dizer qual é — mas contactaram-me para ver se fornecia uma fotografia. Era a pagar, faziam questão de reforçar muito isso, para fazer os outdoors para a campanha eleitoral. Eu respondi, “nem que pedisse 10 milhões de euros, não posso vender porque sou jornalista. Não posso ver a minha fotografia num cartaz de publicidade ou de propaganda política, não posso.

RAS – Pode não se rever nesse partido ou nessa lógica. 
Até podia ser o meu partido, mas há uma coisa, antes do cartão de militante do partido tenho outro cartão, até tenho dois — tenho a carteira profissional de jornalista e tenho o código deontológico do jornalista, que se sobrepõe a isso tudo. Em última análise, não consigo perceber — também podem dizer, este gajo é chato como o raio — mas eu não entendo como é que jornalistas gritam a todos os pulmões e dão saltos quando Portugal marca um golo. É um extremo, eu percebo, mas se, então, eu for do PCP, do Chega ou do CDS, também não me ponho aos saltos. Estou ali, não como militante ou adepto, mas estou a trabalhar como jornalista. No futebol, isso é um clássico. É impressionante como os jornalistas se manifestam perante um jogo de futebol. 

RAS – Manifestam-se e, se calhar, também não têm consequências. 
São promiscuidades que não são saudáveis, que não deviam existir, mas existem. 

Yasser Arafat em 2000 / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – Indo a outro extremo, já não me lembro da fotografia, mas sei que há pouco tempo saiu uma notícia de um músico muito conhecido nos Estados Unidos, relativamente a uma fotografia mítica desse artista. Houve um tatuador que tatuou a fotografia do músico num cliente, o fotógrafo não gostou e processou o tatuador. [A foto em questão era de Miles Davis, da autoria do fotógrafo Jeffrey Sedlik. O fotógrafo processou Kat Von D, a tatuadora, por ter tatuado a fotografia de Miles Davis num cliente]
Mas isso foi nos Estados Unidos, onde os advogados estão à porta das urgências dos hospitais. Se o gesso ficar um bocadinho torto, levas logo um processo. Mas vou-te dar um exemplo clássico — trata-se da fotografia mais mercantilizada da história da fotografia mundial — é o caso da fotografia do Che Guevara. Essa fotografia está em todo o lado — nas canecas, nas bandeiras, nas tatuagens, nos autocolantes e por aí em diante. O fotógrafo que a fez já morreu e era o fotógrafo oficial do Fidel Castro, o Alberto Korda. O Alberto Korda ganhou algum dinheiro com os direitos de imagem dessa fotografia, mas se fosse americano seria podre de rico — milionário. Aquilo foi a um ritmo tal, que ele também não tinha capacidade, nem não havia forma de levantar autos, digamos assim, desde o gajo que faz a bandeira, até ao gajo faz a caneca. Aquela é a imagem mais reproduzida da história da fotografia. É aquela fotografia do Alberto Korda. 

RAS – Quanto a fotografias a políticos, que também já fez, é normal, por exemplo, quando se dá uma notícia positiva sobre um político — seja uma vitória ou feito conseguido — colocar-se uma foto do político em questão mais confiante ou a rir. Se for o contrário, geralmente a edição escolhe uma foto em que o político surge mais cabisbaixo. Nesses casos, pensa na expressão certa a captar quando fotografa um político? (Ou seja, a questão é que, talvez mais do que um texto, notícia, que deve ser sempre imparcial, se o Adriano captar um político com uma determinada expressão, isso vai ser sempre susceptível a leituras!)
Penso, sim. É lógico que se tenho o António Costa com maioria absoluta numas eleições e tenho de fotografar a noite eleitoral de António Costa, é lógico que não vou pôr o António Costa a chorar — só se for de alegria – mas tem de ter a vitória. Em contraponto, tenho de ter o Rui Rio, que por acaso fui eu que fotografei durante a campanha eleitoral toda, tenho de ter o Rui Rio mais cabisbaixo. Isso é assim, não há volta a dar — a bota tem de bater com a perdigota. Muitas vezes — uma coisa muito importante nos jornais, que é o arquivo, neste caso o arquivo de fotografia — muitas vezes, a fotografia é escolhida em função desses detalhes. Se eu tenho o Sócrates, por exemplo, que vai ser indiciado por crimes, é lógico que não vou puxar para primeira página uma foto do Sócrates, todo contente, na praia, a rir-se. Vou pôr uma expressão carregada, um gesto, tem de haver ali qualquer coisa que nos avisa, “este gajo está tramado.”

Alvaro Cunhal em 2001 / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – Mas quando está no processo de fotografar no local, também está a pensar no factor arquivo?
Ainda bem que falaste, que já me estava a esquecer. Era aí que queria chegar. Claro que sim, quando nós estamos a fotografar o António Costa na noite eleitoral, eu não fotografo só o António Costa. Se calhar, fotografo o Medina, que já se pensa que vai ser o futuro Ministro das Finanças — e foi — ou o abraço do Medina ao António Costa. Um fotojornalista tem de ser uma pessoa bem formada. Depois, claro, que pode haver colegas que gostem mais futebol, de natureza, há colegas que gostam mais de política, de economia, pronto. Mas temos de estar minimamente informados, como saber quem são as pessoas. Vou dar um pequeno exemplo: quando o Sócrates foi Primeiro Ministro e o Cavaco Silva era Presidente da República, havia muita fricção entre os dois. Houve um 10 de Junho, no Porto, que fui eu que fui fazer, e tenho uma fotografia que se tornou, entre aspas, célebre porque na altura em que se cumprimentam os dois – parecia mal não se cumprimentarem — foi um cumprimento de trombas, assim a mãozinha muito ao de leve, e eu consegui apanhar isso. Quando estava naquele sítio, sabia das picardias entre eles — tinha havido umas picardias um dia ou dois antes — tinha de ter uma fotografia deles os dois, tinha de captar esse momento. 

RAS – É saber ler o contexto e o momento e o contexto, certo?
Ora bem! E depois na fotografia, enquanto leitor, também podes ler nas entrelinhas, ali, muita coisa. Há coisas que te saltam e que te fazem transportar. 

RAS – Era o que estávamos a dizer há bocado. O fotojornalista, se calhar, tem mais essa liberdade do que o próprio jornalista, não é? Porque o texto é aquilo mesmo, um fotojornalista pode jogar com as leituras. 
Com as subtilezas. Vou-te dar um exemplo, há fotos que me marcaram. Há uma fotografia de Daniel Rocha, do Público — já não me lembro do resultado, mas foi um Porto-Benfica, em que o Benfica deu uma abada ao Porto — mas a fotografia é linda porque é muito simples e é o Baía a ir buscar a bola, agachado, ao fundo da baliza, nas redes, mas a ir buscar a bola. Aquela fotografia é de uma subtileza e de uma simbologia do caraças. Não é nenhum golo, não é ninguém a festejar o golo, não. O peso da derrota foi de tal maneira, que aquela fotografia é quase humilhante para um guarda-redes, ainda por cima um guarda-redes de topo nacional, a ir buscar a bola ao fundo das malhas, como se costuma dizer. Houve ali duas almas inteligentes, em primeiro lugar o Daniel Rocha, que teve a capacidade de ler o jogo e, se calhar, enquanto os outros fotógrafos estavam a fotografar os gajos do Benfica a festejar, o Daniel Rocha, em vez de fotografar os festejos, seria mais um, fotografou o humilhado, o Baía a ir buscar a bola ao fundo da baliza. Depois houve outra inteligência, que foi a de pegar nessa fotografia, e pôr a fotografia na capa do jornal. São essas pequenas subtilezas e essas pequenas atenções que fazem toda a diferença. 

AIF – Mas voltando ao assunto das fotografias a políticos, pode haver uma apropriação indevida por parte dos partidos para fins promocionais?
Isso pode acontecer, mas é muito raro! Sabemos aquele exemplo da Juventude do CDS, mas é muito raro. Já vi, no entanto, em panfletos de propaganda, imagens que eu conheço de colegas, conheço histórias de colegas, mas também já acontece uma coisa, todos os partidos, pelo menos os que têm representação parlamentar, já têm os seus fotógrafos e videógrafos. Têm mesmo de ter porque, hoje em dia, a campanha faz-se nas redes sociais. Eu andei a fazer a cobertura da campanha do Rui Rio e eles tinham fotógrafo e videógrafo. Eles publicavam no site do PSD todos os dias, faziam os diários de campanha. Hoje em dia, os partidos têm de ter essa máquina montada para as campanhas. Pode haver um caso ou outro, mas já não acontece como acontecia há uns anos. 

RAS – A profissão dos profissionais da comunicação sempre foi pautada por um ritmo que pode ser desgastante. Como olha para a evolução do ritmo do trabalho quando começou, para agora? 
Costumo dizer que, agora, é como limpar cu a meninos. É mais fácil do que era.

Sabem porquê? O digital veio revolucionar isto para muito melhor. Tem coisas negativas, como é óbvio, mas em termos de stress de trabalho melhorou imenso. Hoje tudo é tempo, tudo é velocidade e era impraticável fazer um online se não tivéssemos máquinas digitais, era impensável. Antigamente as coisas tinham o seu ritmo, as redacções, os jornais fechavam muito mais tarde. Havia jornais que fechavam às cinco da manhã, aliás, os jornalistas eram conhecidos por grandes boémios porque trabalhavam noite adentro, ainda iam para as tascas e, depois, é que iam para a cama. Hoje em dia não, os jornais, às 10.30, 11 horas, já estão na gráfica a serem impressos.

O que é que acontece? O volume de trabalho e o que tu fazes continua a ser stressante — não tens horário e, se calhar, não tens uma vida familiar tão estável como acontece com outras profissões que existem. Mas, em termos de funcionalidades e ferramentas as coisas melhoraram a 500 por cento. Posso-te dizer que nós tínhamos um laboratório que pesava 30 quilos, tipo emergência médica, sempre montado, preparado para alguma saída do momento. Imaginas que agora tínhamos de ir aos Açores, levávamos o laboratório — tinha tesoura, corda, mola, espirais, um kit press, secador para secar a película e scanner portátil para digitalizar o negativo.

Tudo isso era um stress porque, depois, não havia e-mails como há hoje, não havia internet como há hoje. Tinhas, portanto, sistemas de telefone, sistemas de envio em que, muitas vezes, a primeira coisa que fazias o chegar aos hotéis era descarnar a ficha do telefone da parede para fazer lá umas ligações malucas e pôr uma vela à Nossa Senhora de Fátima para ver se a fotografia chegava. Vou-te dar um exemplo, há um bocado falei no terramoto e agora lembrei-me, fui para um terramoto para os Açores e fui só com as máquinas, porque não havia maneira de enviar as fotografias. A maneira de enviar as fotografias era a seguinte: fotografava, ao final do dia ia pôr os filmes no aeroporto, iam no avião e, ao outro dia, estavam no jornal. 

Ou seja, alguém ia buscar aos vôos, revelava, editava e publicava no jornal. Tudo isso era uma angústia. Quando estive em Timor levei esse famoso laboratório e, só para te dar uma ideia, não tínhamos telecomunicações, tínhamos um telefone satélite.

Andávamos à procura do satélite, enviávamos o texto, que era rápido e, depois, enviávamos as fotos que, às vezes, demoravam 20 a 30 minutos de envio e que custavam, na altura, 40 contos cada foto. Quando nos diziam, “amanhã vais para França”, a primeira pergunta era, “fazer o quê”, “vais fazer as eleições francesas”, “então, isso, é para enviar todos os dias”, era terrível. Hoje, tens um portátil e, até, podes já enviar, diretamente, do telemóvel.

Incêndios de Pedrógão Grande / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – Isso acontecia, também, muito no cinema. Filmava-se em película e, depois, não se sabia bem como é que se tinham filmado as cenas. Só se sabia, depois, quando se revelasse e podia ficar sem ser como o realizador queria. 
Acontecia na fotografia, também. Vou-te dar um exemplo da fotografia de publicidade, em que há muita fotografia de estudo e de bancada, as coisas não eram desmanchadas — fotografavas, ias revelar e, depois, se vias se estava bem, é que desmanchavas. Os grandes estúdios de fotografia tinham o estudo de Geografia, mas também tinham logo o laboratório e tinham um assistente — o fotógrafo fazia os clientes, dava a película ao assistente que ia logo revelar e via se ficava bem ou não. Se houvesse alguma coisa para corrigir, corrigia-se, mas não se desmanchava nada. No digital, isso hoje não acontece. Tu podes ir para algum lado e, em princípio, há quase sempre internet. Hoje, estou em casa — agora com o teletrabalho isso tornou-se muito útil — e tenho ferramentas que me possibilitam estar na Ucrânia, em casa ou na redacção de um jornal, ou seja, é igual para mim. Agora com a pandemia e o teletrabalho vou acedendo ao backoffice e também fazemos como se estivesse no jornal.

RAS – Dos anos 90 para agora, muito mudou. Um novo tipo de imprensa surgiu, mas muitos jornais também findaram. A própria relação do jornalista/fotojornalista com a redacção também mudou, uma vez que com os novos meios tecnológicos o trabalho à distância é possível. Nesse prisma, como foi evoluindo a sua relação com a redacção do Público? Ao que consta, regressou a Aveiro há 13 anos, consegue fazer o seu trabalho, totalmente, a partir daí, ou tem de se deslocar à redacção do Público de tempos a tempos?
Isso é curioso porque pode, até, ser uma discussão lá no próprio jornal, que é o regresso. A redacção, todos os dias, tirando o fim-de-semana, estava cheia de gente. Apesar de termos todos internet, computadores e máquinas fotográficas digitais, a redacção estava cheia de gente, com a pandemia ficou a zero. Temos, agora, ordem para voltar ao normal e há, ali, umas certas resistências: há pessoas que ficaram adeptas do teletrabalho, há pessoas que são adeptas de um misto com o argumento de que se gasta mais dinheiro na gasolina e alimentação, pronto, há ali umas certas resistências. Sempre fui para a redacção.

RAS – Em Lisboa?
Em Lisboa e no Porto. Sempre tive grandes reservas acerca do teletrabalho porque, em primeiro lugar, há contas a pagar e a entidade patronal tem de me dar um local para trabalhar, tem de me pagar a água, a luz, o telefone e isso tudo. Se estou em casa sou eu que pago. Depois há, também, a questão da convivência com os outros. O ser humano humano não é nenhum bicho do mato, não é? Muitas vezes é a discutir ideias, é a beber um café, é a fumar um cigarro e zangarmo-nos uns com os outros que as ideias surgem, certo? 

Às vezes até ajuda. Quantas vezes na redacção se ouve, “olha, diz-se desta maneira ou escreve-se daquela maneira? Não, é daquela maneira.” Isso é fundamental para qualquer empresa, mas para um jornal, neste caso, é fundamental. Agora, vou todos os dias à redacção? No que diz respeito aos redactores há, infelizmente, cada vez mais redactores de redacção, de estarem sentados, mas um fotógrafo pouco ou nada fotografa na redacção, tem de andar na rua. Pode haver um dia ou outro que não vamos à redacção porque temos dois ou três serviços: vais para Braga, Guimarães ou para o Douro, aí estás a trabalhar, não tens de estar sempre na redacção. Mas, em princípio, temos essa cultura de redacção, de estarmos lá, porque é muito importante estarmos com as pessoas, sente-se essa falta.

Fotografia de Adriano Miranda – Público

AIF – Uma vez que também faz a cobertura de Aveiro para o Jornal, por exemplo, como fez com a linha do Vouga, é mais fácil ou mais difícil, actualmente, a seu ver, manter uma representatividade mais local nos jornais? 
A grande revolução do Público, quando nasceu, foi precisamente essa, descentralizar — não ser o jornal nem do norte, nem do sul, mas ser ambos. E conseguiu, naquela altura, sem os meios tecnológicos que há hoje — nem se sonhava com a internet — fazer, todos os dias, edições diferenciadas de Lisboa e do Porto. Até a capa, muitas vezes, em termos de fotografia, eram diferentes em Lisboa e no Porto. Uma coisa, no entanto, que era mesmo diferenciada, era o chamado “Caderno do Local.” Existiam notícias, por exemplo, que abrangiam a zona de Leiria até ao Algarve — que era o chamado “Local Lisboa” — já de Leiria até ao Minho era o “Local Norte”. Dava-se muita importância às notícias locais. O JN, também, sempre deu grande importância e muito foco às notícias locais. Isso foi-se perdendo, hoje em dia, e no Público igualmente. 

Uma colega minha disse uma coisa muito engraçada: o Público, qualquer dia, é um jornal regional de Lisboa. Houve, de facto, um desinvestimento tanto de pessoas como de meios de Aveiro, por exemplo, Viseu, Braga, Faro, Setúbal. O Público tinha correspondentes e chegou a ter redacções. Claro que, depois, financeiramente, se calhar, não foi rentável porque, muitas vezes, também era a pensar em angariar publicidade mais dessas zonas. Isso não funcionou e acabou tudo. Fecharam essas redacções, inclusive a de Aveiro. Foram todos despedidos e foram-se todos embora. Realmente, tem havido um grande desinvestimento. O jornalismo de proximidade faz-se com pessoas. Não é a pessoa que está em Lisboa que diz, “olha, amanhã vai a Guimarães”. Tem de haver correspondentes — os jornalistas da terra, lá da zona, é que sabem o que é que vai acontecer em Aveiro e é que podem fazer a ponte, depois, com os editores, para dizerem se acham aquilo interessante ou não. Essa cultura, infelizmente, perdeu-se e isso faz com que se percam leitores.

AIF – É preciso não esquecer que o Público não é vendido só em Lisboa, mas em todo o país.
É isso mesmo. É isso mesmo, pronto. 

RAS – Resta saber onde é que o público é mais comprado.
Acho que é mais comprado no norte do que no sul. Mais comprado na zona do Porto, digamos assim, do que em Lisboa, mas não tenho garantias do que estou a afirmar. 

RAS – Está a falar em jornal físico ou assinaturas digitais? 
Estava a falar em jornal físico. Não sei, mas é capaz de ser mais uniforme. Há, também, as Ilhas. Temos correspondente na madeira, nos Açores já não. Na Madeira sempre teve e ainda tem, até pela política, por causa do Alberto João Jardim. Os jornais, incluindo o Público, até tinham correspondências internacionais no Brasil, Espanha, em Bruxelas, nos Estados Unidos, mas tudo isso acabou.

AIF – O Adriano teve, então, a experiência das duas redacções, tanto a de Lisboa como a do Porto. Nota que há diferenças na importância dada às duas?
Não, a importância é dada tanto à de Lisboa como à do Porto, é igual. O Porto sempre teve a figura do director adjunto, mas houve uma direcção, há uns anos, que deixou cair essa figura e não foi de bom tom — não se gostou na redacção do Porto que isso tivesse acontecido. Nunca tinha acontecido na história do jornal. A direcção, entretanto, mudou e essa figura do subdirector, neste momento, está no Porto, o David Pontes — esse cargo voltou. É lógico que, em Lisboa, a redacção é maior, trabalha mais gente do que no Porto, mas a importância é dada tanto a uma como a outra, até porque as secções têm sempre gente de Lisboa e do Porto: a sociedade tem gente em Lisboa e gente no Porto, a fotografia tem gente no Porto e gente em Lisboa. Todas as secções estão divididas pelas duas redacções — a importância é a mesma. 

AIF – Fiz esta questão porque houve uma grande vaga de despedimentos colectivos, há uns anos, no mundo do jornalismo. Houve delegações, depois, que ficaram extremamente desfalcadas, principalmente as do Porto. Isso não contribuiu para falhas na representatividade?
Isso é verdade, mas o Público, até nos despedimentos, foi transversal — tanto despediu em Lisboa como no Porto. Isso, também, foi igual. Mas, felizmente, essa onda já foi há uns anitos. Muita gente, infelizmente, foi despedida mas, por um lado, também é bom saber — e souberam-se há pouco tempo os resultados — que a empresa quebrou esse ciclo e está num ciclo ascendente. A prova, aliás, é que tem contratado imensa gente, agora. Depois da pandemia, até tiveram de pôr lá mais cadeiras — no Porto tiveram de pôr lá mais cadeiras e reformular a redacção, porque já não cabiam todos — fizeram novas contratações. O ciclo mudou, portanto, não é um ciclo para diminuir a massa trabalhadora, mas sim aumentar — isso é bom sinal.

AIF – Está a dizer uma coisa interessante. Acha que o ciclo da imprensa é ascendente, é isso?
Estou a falar no caso do Público, especificamente. Houve órgãos de informação, infelizmente, que aproveitaram a pandemia para despedir. Até colocaram colegas em layoff. Nós, felizmente, não sofremos desse mal. Mas os despedimentos continuam, isso continuam. 

AIF – Fez, também, um trabalho fotográfico tendo como foco o Bairro social Santiago. Neste caso, qual o papel da fotografia como forma de não deixar esquecer estas localidades? O que pretendeu com este projecto e de que forma ajudou este bairro social? 
Esse trabalho fotográfico não foi no âmbito do jornal, foi de cidadania. Foi no âmbito do “Laboratório Cívico” em que foram apresentadas várias propostas, só ganharam 10 e eu fui uma das 10 que ganhou. A proposta consistia, precisamente, em pegar na fotografia e aplicar os conceitos fotográficos — não digo no aspecto teórico — mas no aspecto lúdico que a fotografia poderá ter nas crianças daquele bairro. Chamava-se “fotojornalismo na redacção de Santiago.” De fotojornalismo não tinha nada, era mais o mote para aquelas crianças pegarem em máquinas descartáveis — é curioso que nunca tinham pegado numa máquina fotográfica — para elas a fotografia era no telemóvel. Nem sabiam que existiam máquinas fotográficas. 

Xanana Gusmão em 2000 / Fotografia de Adriano Miranda – Público

RAS – Quantos anos, mais ou menos, tinham as crianças?
O mais velho devia ter 15 anos e o mais novo 8 ou 9 anos. Nem imaginavam o que era película, nada, zero. Mas foi curioso. Explicámos, depois, como as máquinas descartáveis funcionavam, levaram as máquinas durante uma semana e só podiam fotografar dentro do bairro. A ideia culminou com a exposição, a céu aberto, das fotografias, o que foi muito gratificante. Em primeiro lugar, foram eles que escolheram as fotografias que fizeram — viram o que fizeram e, depois, escolheram — já não me lembro bem — duas ou três por cada um. Conseguimos arranjar dinheiro, mandámos imprimir as fotografias em mupis e fizemos questão que cada fotografia tivesse o nome do autor — dava auto-estima aos miúdos. Numa noite andámos, literalmente, a colar cartazes pelas paredes do bairro de Santiago – os próprios miúdos participaram.

Aquilo, para os miúdos, foi espectacular porque perceberam que o trabalho que fizeram foi bom. Sentiram-se vaidosos — ao outro dia o bairro acordou e viu os cartazes todos colados pelas paredes, com as fotografias deles. Esteve muito tempo assim, só há pouco tempo é que os tiraram do bairro de Santiago. A intenção não era que aqueles miúdos fossem fotógrafos — se calhar até já se esqueceram —mas há, sempre, qualquer coisa que fica. Naquelas horas, pelo menos, em que estivemos a trabalhar com aqueles meninos, eles tiveram a experiência de uma coisa que não dominavam, desconheciam completamente, o que lhes aumentou a auto-estima. 

O trabalho foi feito por eles e para eles — viram o resultado final. Não foi uma coisa académica, de estarem fechados numa sala de aula. Aqueles miúdos não querem estar fechados na sala, já estão fechados na sala durante o dia na escola — a parte lúdica da fotografia foi essa — como também fizemos, em Viseu, para crianças autistas. Conseguimos pô-los a fotografar mas, aí, foi com polaroids —viam logo o resultado de forma instantânea. 

AIF – E as crianças autistas gostaram?
Gostaram imenso. Havia autistas mais profundos, outros menos profundos, mas foi muito interessante. O local foi na Quinta da Cruz, fotografavam-se a si próprios e fotografavam a quinta. A grande novidade, para eles, era teres uma máquina, apontares para o teu amigo, para a árvore, para a professora ou para o arbusto, fazeres um click e, de repente, teres a imortalidade num bocado de polaroid, numa coisa instantânea, do género, “mas como isto é possível?” É a parte lúdica da fotografia que não tem de ser só comercial ou jornalística, também tem a sua parte lúdica. 

Armando Vara em 2009 / Fotografia de Adriano Miranda – Público

AIF – Mas esse interesse social que tem pelas coisas já vinha de sim ou foi algo que o fotojornalismo lhe deu?
Posso dizer, garantidamente, que já vinha de mim. Acho que vem da minha educação enquanto jovem e enquanto ser humano. Venho de uma família que, sempre, deu importância a essas questões, ao social e injustiças sociais, e isso foi-me acompanhando. Fui crescendo com esses factores e, é lógico, direcciono isso, neste caso, para a fotografia. Enquanto jornalista dou, sempre, este exemplo: houve um dia em que fui fotografar a pessoa mais rica de Portugal e, à tarde, fui fotografar as pessoas mais pobres de Portugal. 

A verdade é que fiz os dois trabalhos com o mesmo rigor e com o mesmo sentido de estado, ou seja, com a mesma dignidade. Um deles até era o meu patrão, o Belmiro de Azevedo que, na altura, era o homem mais rico de Portugal e passava o testemunho ao filho. Fotografei, com a mesma dignidade, o senhor cheio de dinheiro e, à tarde, fui para o Bairro das Fontainhas, do Porto, fotografar miseráveis —pessoas que não tinham dinheiro para comer. Se me perguntares, no entanto, “qual gostaste de fotografar mais?” Adorava não ter de fotografar as pessoas das Fontainhas porque era sinal que não era necessário. Por outro lado, também gostei de os fotografar porque foi uma forma de mostrar como aquelas pessoas viviam em situações extremamente precárias, na miséria. Não me deu tanto prazer fotografar o meu patrão, mas pronto, tive de o fazer com o mesmo rigor e isenção, sou obrigado a isso. 

AIF – Um jornalista pode, facilmente, perder o contacto com a realidade social popular? 
Perde-o se quiser, se não quiser, nunca o perde. Tudo bem que ser fotógrafo é diferente — não podemos fazer o nosso trabalho na redacção, temos de ir à rua. Mas, infelizmente, por parte dos jornalistas, dos redactores, há, cada vez mais, o chamado jornalismo de bancada: estão sentados no computador, a informação chega toda pela internet, pelos sites dos jornais, pelos telefones, liga-se às fontes e não se vai ao terreno. Imagina uma manifestação, por exemplo — os fotógrafos têm mesmo de ir, não podem fazer as fotos na redacção. O mesmo já não acontece com o repórter, que pode não ir. Depois pergunta, “olha estava muita gente?”, “se fosses lá ver.” Não há nada como estar, como estar próximo das pessoas, saber ler nas entrelinhas, falar com as pessoas e saber ler os ambientes. O jornalista só perde contacto com a realidade se quiser e, quando isso acontece, é muito mau. 

AIF – Falou do jornalismo sedentário, acha que o jornalismo está muito dependente de agências noticiosas como Lusa?
Não! As agências sempre existiram e ainda bem que existem, têm uma importância fundamental. 

AIF – Mas não acha que em Portugal não há uma dependência dos takes da Lusa?
Não. Vou-te dar um pequeno exemplo: na Ucrânia, se vocês repararem, há notícias ao minuto, aquilo tem de ser alimentado e tem de ser por jornalistas que estão sentados, não fazem mais nada. Há os piquetes que, logo de manhã, estão no online, são os jornalistas que estão ali para fazer as notícias que estão nas agências, seja a Lusa ou outra qualquer. Fazem a ronda, telefonam para o polícia, para os bombeiros e estão ali agarrados ao computador, não fazem mais nada — dão em malucos, pronto. É quase como estar a trabalhar numa fábrica, oito horas, a coser botões e tem de se cozer, todos os dias, mil e quinhentos botões — se for possível até cozer mais, menos é que não. Ali é um bocado assim. Cada vez mais o jornalismo está assim. Claro que há outros que não. Detestam ter de fazer os piquetes, detestam estar no online, ao minuto, e querem é fazer grandes reportagens, andar na rua e pronto — também há desses — mas isso não quer dizer que haja uma dependência das agências. Elas são extremamente importantes e úteis. Sem elas não se consegue fazer jornalismo, não há matéria. 

AIF – Fiz a pergunta porque há a impressão generalizada de que quando a Lusa lança um take, todos os jornais acabam por replicar esse mesmo take, de forma igual e quase automática.
Às vezes é. Por vezes vais ver uma peça qualquer, vais ver a assinatura e diz lá Lusa. Mas isso, depois, tem a ver com vários factores. Tem a ver se tens uma redacção grande ou não, se tens meios humanos para teres notícias autónomas, assinadas por jornalistas da casa, ou não, se tens uma redacção mais pequena, pronto, isso depende de muita coisa. Tens muitas peças políticas, por exemplo, cuja a assinatura é a Lusa — é um take da Lusa e pronto. 

AIF – O seu livro “São Pessoas” pauta-se pelo retrato de 30 pessoas em situação de pobreza no país, devido à Troika, de Bragança até ao Algarve. Em primeiro lugar, sente que estas histórias ainda não têm a atenção devida, ou são susceptíveis de passarem despercebidas, principalmente em zonas como Trás-os-Montes outras que tais? 
São, não são sexys e não dão clicks. Se vocês começarem a ver quais são as notícias mais lidas de um jornal qualquer, coisas sobre pobreza ou exclusão social não aparecem. São mais as coisas cor-de-rosa, pipis e sexys, muitas vezes até fúteis, que estão nos rankings das notícias mais lidas. Quanto à exclusão social e miséria, as pessoas dizem que sempre vão existir e nada se faz para alterar essas situações que não deviam acontecer no nosso século XXI, nem em nenhum país europeu, mas existem e tem de haver alguém que lhes dê voz. 

Essas pessoas não têm voz nenhuma e não chegam aos jornais, não chegam. Só chegam às televisões se um dia a barraca lhes arder, aí sim, vai lá o “Correio da Manhã”, não porque aquela senhora era pobre, mas porque lhe ardeu a casa. O título da notícia é esse, não é? E não se vai ao fundo da questão de se saber porque é que lhes ardeu a casa. Se calhar não tinham luz e usavam velas, se calhar a rede elétrica da casa era deficiente, a casa estava cheia de humidade e eles não tinham dinheiro para arranjar — não se vai à raiz do problema.

É sempre bom haver fotógrafos — neste caso, foram duas pessoas, eu e o Paulo Pimenta — é sempre bom haver pessoas que dêem voz a essas pessoas e que as acompanhem. É lógico que perguntas assim, mas resolvem algum problema a alguém? Não! Por acaso houve uma situação que foi resolvida, mas não, na maior parte dos casos não foram resolvidas porque nós não temos esse poder. 

Não temos o poder de decisão nem o poder político, mas serve como chamada de atenção, alerta e, às vezes, conseguem-se resolver coisas, agora, não fazendo nada, é que não se resolve mesmo. Temos uma colega nossa cuja área dela é a prostituição, o racismo, a exclusão social e ela sofre imenso — cada vez que escreve qualquer coisa, vai ler os comentários e aquilo é de bradar aos céus. Sofre imenso, então, quando é o racismo e essas questões muito fracturantes, aquilo é de ir aos gritos. Ela não deixa de o fazer, no entanto, porque há uns palermas que escrevem umas coisas estúpidas, mas quanto a isso não há nada a fazer, não deixa de fazer o trabalho dela porque há mentecaptos. 

Esta entrevista foi realizada em Março de 2022 por Ana Isabel Fernandes e Rui André Soares.

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