Entrevista. Ana Moreira: “O Sombra é uma homenagem às mães que continuam todos os dias a lutar contra o esquecimento dos seus filhos e a sobreviver na sua ausência”
Estreia no dia 14 de outubro o filme “Sombra”, de Bruno Gascon.
Estivemos à conversa com a atriz Ana Moreira, que interpreta o papel principal de Isabel, uma mãe cujo filho de 11 anos desaparece. Ana, atriz de filmes como “Tabu” (Miguel Gomes), “Os Mutantes” (Teresa Villaverde) e “Os Maias” (João Botelho), falou-nos sobre “Sombra”, o seu papel de jurada na mais recente edição do MOTELX, os seus próximos projetos, e ainda nos recomendou irmos ao cinema ver um certo filme muito arrojado.
Como têm sido para ti estes últimos dois anos? Qual tem sido o impacto da COVID-19 a nível profissional?
Esta pandemia veio colocar-nos a todos num lugar muito frágil. Falando apenas da classe artística profissional, veio revelar fragilidades no setor que já sabíamos que existiam, mas de alguma maneira sublinhou ainda mais essas fragilidades e a urgência em tentarmos mudar muita coisa, mudar leis laborais que já não se adequam à nossa realidade laboral. Nesse sentido afetou-me. Vários espetáculos que eu tinha agendados para teatro foram adiados. Felizmente, não tive nenhum cancelado. Foi um momento, como para toda a gente, de espera, de incerteza, de reflexão também. Foi um pequeno carrossel de várias emoções: por vezes mais angustiantes, outras mais tranquilas. Sobretudo, foi um momento de espera em que tentei arranjar mecanismos para o passar o mais pacificamente possível, sem stressar, sem entrar em grande pânico com o que estava a acontecer.
Na antestreia do filme “Sombra” no Cinema São Jorge, viveu-se um ambiente de festa, de convívio. Imagino que para muitos dos convidados foi quase como um retornar à realidade pré-pandémica. Como é que viveste essa noite?
Filmámos o “Sombra” no final de 2019. Foram dois meses e terminámos no início de dezembro. Foi uma rodagem muito, muito feliz porque tínhamos uma equipa técnica fantástica, muitos atores, um elenco fabuloso e muito generoso. Houve uma grande proximidade entre as pessoas durante a rodagem, até porque filmámos todos nós fora de nossas casas. Estávamos a filmar em Viana do Castelo, então estávamos a viver aquela história e todo o ambiente de rodagem muito próximos uns dos outros. A seguir aconteceu a pandemia. Ficámos todos fechados em casa, a estreia do filme foi adiada várias vezes… Houve uma grande separação e distância entre as pessoas. No momento da estreia foi uma grande felicidade voltar a encontrar todas as pessoas que contribuíram para este filme. Foi um momento de grande felicidade que pudemos partilhar nessa noite.
E como é que correu a antestreia?
Acho que correu muito bem. Eu nunca tinha assistido a uma antestreia desta dimensão no cinema São Jorge, não só por todas as pessoas envolvidas no filme, mas por todos os convidados que apareceram e que, creio eu, estavam dispostos e com vontade de ver o filme e de ir ao cinema. Acho que foi uma estreia muito feliz.
Falemos então um pouco sobre o “Sombra”. A tua personagem, a Isabel, nas últimas cenas do filme é quinze anos mais velha do que a Isabel que abre o filme. Como foi representar uma personagem que atravessa tantos períodos de vida diferentes?
Foi uma aventura. O guião passa-se num arco de tempo de quinze anos sensivelmente, desde 1998 a 2013. Nas primeiras reuniões que tive com o Bruno Gascon, o realizador, ainda antes de me entregar o argumento, ele foi me explicando um pouco a história que queria contar, porque é que era importante para ele contar esta história urgente, partilhar a história desta mulher inspirada em várias mulheres e casos reais que aconteceram, sendo a inspiração maior a Filomena Teixeira. Creio que esses encontros foram mais ou menos uma preparação para eu não me assustar ao ler o guião [risos]. Depois é que ele me deu o guião para ler, que estava muito bem escrito logo desde a origem. Ao lê-lo, percebi muito rapidamente que ia ser uma grande aventura interpretar esta personagem. Faz um grande arco de tempo na história, passa por várias emoções, é uma personagem complexa e emocionalmente exigente. Ia ser uma grande viagem interpretar a Isabel. Depois foi todo um trabalho feito através de ensaios e partilha de ideias, tanto com o realizador, como com o resto do elenco nas várias leituras do guião. Através também de um grande trabalho dos figurinos, do guarda-roupa e de caracterização pela maquilhadora Olga José, que me ajudou muito e foi extremamente importante a construir esta personagem.
A propósito do filme, conheceste a Filomena Teixeira, a mãe do verdadeiro Rui Pedro. Como foi essa conversa? De que falaram?
Foi um encontro muito importante. Eu tive a oportunidade de falar com algumas mães que infelizmente os seus filhos desapareceram e ainda estão à procura deles. No caso da Filomena, que é a inspiração maior para o filme, foi uma reunião que marcámos. O Bruno já tinha tido várias conversas com ela e depois decidimos marcar uma reunião em que eu, o Bruno e a produtora Joana Domingues fomos visitá-la a Lousada.
Isto foi antes da rodagem, correto?
Sim, bastante antes. Fomos visitá-la a Lousada e passar uma tarde com ela, em que a Filomena teve a generosidade de contar toda a sua história outra vez, que é uma história bastante cruel, brutal. Nesse dia voltámos a relembrar todo o caso, todas as memórias que tinha sobre o que saiu na imprensa. Foi um caso muito mediatizado na altura. Havia coisas que eu já não me lembrava e houve coisas que a Filomena só nos contou a nós de alguma maneira. Foi um momento muito especial e fiquei com a sensação de ter conhecido uma mulher incrível. Nunca mais me vou esquecer dela. É uma mulher cheia de força, com muita coragem e há dentro dela uma luz enorme, uma esperança de ainda poder encontrar o filho. Essa esperança nunca morreu dentro dela.
Nos créditos finais, o filme é dedicado ao Rui Pedro e a outras crianças portuguesas desaparecidas ao longo dos anos. Sentes que o “Sombra” é uma forma da ficção comunicar com a realidade? Da ficção relembrar estes casos que nunca chegaram a ser resolvidos.
Eu acho que sim. Isto podia ser um documentário sobre o drama destas mães, mas no entanto é um trabalho de ficção, é um objeto cinematográfico. O cinema também pode servir, neste caso, para alertar, para dar conhecimento, não de uma forma de propaganda ou panfletária, mas uma forma de nos dar a conhecer realidades que de alguma maneira nos são tão distantes mas ao mesmo tempo tão próximas. Então em especial o caso do Rui Pedro e da Filomena, que habitam o nosso imaginário coletivo. Nós crescemos a ouvir esta história, que é passada a outras gerações. Apesar de ser uma história concentrada geograficamente em Portugal, é uma história que se reflete noutras partes do mundo, em outros países onde acontecem infelizmente casos semelhantes. Por isso, é uma história que se abre ao mundo e é fácil, seja cá em Portugal ou noutro país qualquer, as pessoas reconhecerem estas histórias. Nesse sentido acho que sim, o cinema também pode servir como um despertar de consciência, de alerta, de dar a conhecer este tipo de situações. Ao mesmo tempo, o “Sombra” é uma homenagem às mães que continuam todos os dias a lutar contra o esquecimento dos seus filhos e a sobreviver na sua ausência.
Ainda há umas semanas fizeste parte do júri do MOTELX, o festival de cinema de terror de Lisboa. Como foi essa experiência?
Foi ótima. Não é a primeira vez que colaboro como júri em festivais. Já colaborei em vários, até mesmo estrangeiros. Mas o MOTELX, tenho um carinho muito, muito grande pelo festival. Lembro-me de mais jovem ir às primeiras edições do festival e de o ver a crescer com o João Monteiro e com o Pedro Souto. Há já três anos que o Pedro me estava a convidar para ir ao festival para colaborar como júri, só que eu não podia porque estava sempre a fazer outra coisa qualquer. E eu insistia em querer ir ao festival presencialmente e não estar a ver os filmes no computador em casa. Finalmente este ano conseguimos! Havia tempo e disponibilidade e eu aceitei. Sou fã de filmes de terror. Foi uma ótima experiência.
Nos últimos anos, escreveste e realizaste os teus primeiros filmes: as curtas-metragens “Aquaparque” e “Cassandra Bitter Tongue”. Como tem sido a experiência de estar atrás da câmara para variar?
Realizar era uma vontade que eu tinha há muito tempo. Assim como eu não estudei artes dramáticas ou teatro, também não estudei realização. Estudei, desde o liceu, artes. Depois fui para o ArCo, que ainda era ali ao pé da Costa do Castelo, estudar Design Gráfico. Achava que queria ser designer gráfica, mas afinal também não era nada disso [risos]. Depois comecei a fazer cinema e teatro ao mesmo tempo. Uns anos mais tarde, acabei por fazer o Mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas na Faculdade de Belas Artes no Porto. A vontade de realizar ou de ser eu a criadora das minhas histórias e não ser apenas intérprete – “apenas” no bom sentido – era algo que eu já tinha há muito tempo. Passados cerca de vinte anos de carreira como intérprete, a trabalhar com vários realizadores que filmam de maneiras tão diferentes, com vários realizadores que escrevem guiões de cinema tão diferentes, deu-me de alguma maneira as ferramentas para começar também eu a escrever e a realizar. Obviamente essas ferramentas são muito importantes, no entanto acho que estou a tentar construir a minha própria linguagem. Ao mesmo tempo, ter tido enquanto atriz a possibilidade de ler tantos guiões e tantas formas de escrever cinema, que é o início de tudo, acho que é quase um pequeno privilégio que muita gente não tem. Até os próprios realizadores: à partida só leem os seus próprios guiões, por isso não têm conhecimento de outras maneiras de escrever para cinema. É muito diferente de escrever literatura ou escrita para teatro. É uma escrita diferente escreveres a imagem em movimento. Foi uma experiência muito feliz e senti que ocorreu de uma forma muito natural.
E é uma experiência para continuar?
É uma experiência para continuar, sim!
Que projetos tens no futuro próximo? Tanto no papel de realizadora, como no papel de atriz. Tanto no cinema, como no teatro.
Como realizadora, continuo a desenvolver projetos com a minha produtora, com quem tenho estado a desenvolver algumas coisas. Vou começar a desenvolver a minha primeira longa-metragem, para a qual tive apoio do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual]. Como atriz, ainda faltam estrear alguns filmes que foram filmados em 2019 e início de 2020, mesmo ali resvés pandemia. Falta estrear um filme do Gonçalo Galvão Teles [“Nothing Ever Happened”]. Falta estrear se calhar o filme do Júlio Alves [“A Arte de Morrer Longe”]. O filme do Hugo Vieira da Silva, que é uma curta [“A Perfeição”]. Um filme que esteve agora em competição no Festival de Locarno, da Salomé Lamas, que se chama “Hotel Royal”. E neste momento estou a desenvolver mais projetos em teatro, a estrear ainda este ano.
Tens estado muito ocupada.
Sim! [risos]
Para terminar, gostava de te perguntar sobre filmes que tenhas visto recentemente. Lembras-te de algum filme que viste nos últimos tempos, que tenhas gostado muito e que recomendarias aos nossos leitores?
Confesso que ultimamente têm sido mais séries… Vou recomendar o “Titane”, de uma realizadora, a Julia Ducournau. Venceu agora a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Parece-me um filme muito curioso e com um olhar muito feminista, muito arrojado, que ao mesmo tempo faz lembrar outros filmes, como o “Crash” (1996) do David Cronenberg. Estou muito curiosa com o filme, que [estreou] dia 7 de outubro. Aconselho as pessoas irem ver.