Entrevista. André Gil Mata: a arte “não é uma procura por dinheiro, é uma procura interior”
André Gil Mata já se movimentava pelas salas de cinema do país antes de chegar à projeção nos ecrãs. Arca d’Água é a curta-metragem de estreia e chegou em 2009; foi exibida em vários países e iniciou a coleção de prémios ganhos pelo cineasta. Apesar de estes já serem bastantes, comentou, nessa tarde de verão em Espinho, que não vê grande interesse em ganhar prémios. “Acho que os filmes devem existir por si mesmos. E a competição entre filmes faz-me alguma confusão, é-me difícil de entender. Não se consegue comparar filmes.” Casa, O Coveiro e Num Globo de Neve são outros dos seus trabalhos no mundo das curtas. Em 2012, começaram a chegar as longas: Cativeiro e Como Me Apaixonei Por Eva Ras (ou Kako Sam Se Zaljubio U Evu Ras). A Árvore (ou DRVO) estreou em 2018. Tendo percorrido várias vezes o circuito nacional de festivais e passado por Cannes e pelo Berlinale, desenvolvido o seu doutoramento sob orientação de Béla Tarr, este é um realizador que escreve os próprios filmes e que continua a ser discreto, algo misterioso e invulgar.
Tens ganho prémios e destaque dentro do meio e até do público. No entanto, és uma figura um pouco misteriosa ainda. Para percebermos quem és e o teu trabalho, consegues apresentar-te?
Interessa-me mais o meu trabalho do que propriamente quem eu sou. Sou um homem que faz filmes. O meu trabalho, por força das circunstâncias, ou por uma certa naturalidade, passou a não se basear só aqui em Portugal, mas também na Bósnia. Mas pode dizer-se que sou um realizador de cinema.
Trabalhas em diversões funções. O que preferes fazer?
Gosto de escrever nos meus próprios filmes, não os consigo entender de outra forma. Isto nasce um bocado da necessidade, realmente, de, não sei se é de falar sobre alguma coisa, mas é alguma coisa que vai crescendo dentro de mim. Tenho uma certa necessidade de a transferir para algo físico em filme.
Tens feito trabalhos com similaridades, mas diferentes entre si. Qual é a mensagem que tentas passar, a ideia por trás de?
Não vejo muito o cinema como uma forma de passar mensagens, mas mais como uma arte que pode questionar a nossa própria existência. Acho que tem muito a ver com o que estamos cá a fazer, com o que é que, enquanto seres humanos, realmente nos move ou nos faz fazer alguma coisa. É bastante por aí que eu acho que penso no cinema em si – tanto a arte em geral, como o cinema em particular.
Pareces cair sempre em temas sombrios. Há alguma intenção nisso, ou foi apenas o acaso?
Não, não há uma intenção nisso. Se caio é porque a vida, ou a nossa existência, também é sombria. E, se calhar, uma das poucas formas que nós temos de assumir, hoje em dia, na sociedade, ou de pensar, pelo menos, que a vida é só um dia sem ter uma conotação errada acho que é através do cinema, ou de outras formas de expressão. Não é nada premeditado ou propositado. Se calhar, são só coisas em que eu penso, ou pela minha forma de sentir. Mas, antes pelo contrário, tento preservar uma certa esperança, não sei se ela se mantém. Mas esforço-me porque acho que, pelo menos até hoje ainda acredito um bocadinho que há – pode ser uma réstia só – sempre uma ligeira esperança nas coisas.
Como nasceu A Árvore?
Foi um filme que nasceu, entre aspas, da minha experiência de viver na Bósnia – em Sarajevo em específico. Nasceu de uma série de questões que começaram, de certa forma, a tornarem-se obsessivas em mim enquanto vivia lá. A questão de encarar uma outra realidade, de certa forma, daquela que eu tinha vivido. E nasceu muito das pessoas dali de Sarajevo e dessa questão de ‘como é que alguém consegue passar por duas guerras distintas durante a vida e como é que ainda tem esperança e força para continuar’. Mas também não é um filme sobre as guerras específicas que se passaram nos Balcãs, mas mais sobre essa questão do ‘como é que uma pessoa consegue encarar uma guerra e como é que uma pessoa consegue encarar duas num ciclo de vida’. E é um pouco acerca dessa repetição, desses ciclos que o Homem tende a repetir e a repetir. Nasce bastante, para mim, do rosto das pessoas, da própria arquitetura e da própria natureza daquele país.
O som tem um papel importante no filme. Como foi pensado, gravado, tratado?
Quando escrevo, eu escrevo tanto a imagem como o som. O som no cinema tende muito a apenas ilustrar a imagem e eu acho que o som deva ser algo mais. E o som foi pensado dessa forma, não como uma ferramenta ilustrativa da imagem, mas como uma coisa que nos conseguisse colocar noutro estado enquanto experienciamos o filme. Como algo que nos leve para outro lado, quase que nos faça entrar no filme e nos proporcione algo mais pessoal e mais interno enquanto espectadores. Pensei o som mais nesse sentido, de proporcionar quase uma introspeção a quem o vê.
Todos os criadores acabam por deixar uma parte de si nas obras que criam. Que parte de ti é que está n’A Árvore?
A Árvore nasceu da circunstância de eu ir viver para um outro país – em particular, um país com uma história e com questões intrínsecas à vida das pessoas nas quais eu nunca tinha vivido ou experienciado de perto. Acho que é mais um assunto de como reagimos a essas questões e de como essas questões de certa forma passam a ser nossas também, num certo sentido. Não é por osmose [risos], mas é óbvio que as questões das pessoas que nos rodeiam passam a fazer parte de nós também. E acho que é uma responsabilidade que uma pessoa tem enquanto ser humano – e enquanto realizador, também. Acho que há uma certa responsabilidade no questionarmo-nos a nós mesmos sobre certos assuntos e pormo-nos naquilo que estamos a fazer, senão nada do que fazemos tem grande sentido. Embora conseguir entender que parte de mim está lá ser algo difícil de responder de uma forma concreta. Estão várias. O cinema funciona muito como um espelho e um filme acaba sempre por ser parcialmente um espelho de quem o fez. E eu espero que também se torne um espelho para quem o está a ver (mas isso também depende do espectador).
Quais as principais dificuldades – a nível técnico, pessoal, de ambiente – que encontraste neste filme?
A nível técnico, foi um filme bastante complicado, porque é um filme filmado à noite (à exceção de um plano ou dois) e em condições climatéricas desafiantes e com temperaturas bastante baixas. Isso, em termos físicos, para a equipa, foi uma grande luta. Depois, tínhamos a questão de ser um filme no qual há uma presença muito forte de rios. Como não tínhamos capacidade para filmar em rios – nunca me passou sequer pela cabeça fazê-lo, pela segurança da equipa e dos atores -, tínhamos de o fazer em lagos e fingir que eram rios. E devido à temperatura, os lagos congelavam. Como o filme se passa na neve, precisávamos de ter neve, mas, a partir de um certo ponto, os lagos congelavam e não podíamos filmar. Então estávamos em constante mudança e movimento, para tentar encontrar esses locais, e tudo isso provocava imensas dificuldades em manter a coerência das cenas. Depois, o facto de metade do filme ser filmado com uma criança, que, na altura, tinha 7 anos, era algo que também se tornava difícil. Mais a presença do cão, também. Dificuldades técnicas foram várias, mas acho que felizmente conseguimos sempre superá-las. Mais complicadas foram as meteorológicas.
De que forma este filme representa uma crítica polícia ou à forma como a sociedade vê as questões da saúde mental?
Eu, particularmente, acho que a nossa sociedade sofre de uma doença mental generalizada muito grande, mas acho que o cinema não deve ser político. As nossas ações são, já, por si só, políticas e, como tal, há um reflexo dessas nossas ações políticas naquilo que fazemos, sim. Mas não é um filme que eu considere político. Eu evito fazê-lo, porque não é assim que eu penso a arte. Evito pensar em questões políticas, para isso, há outros lugares e outros meios. Agora, que tudo o que fazemos acaba por ser, intrinsecamente, um ato político, sim. Acho que é por isso que pode haver a construção de um discurso político; nunca é uma fonte de luz direcionada, mas pode ser um reflexo dessa fonte.
Começaste por estudar uma área completamente diferente da área em que trabalhas. Como se sucedeu essa passagem e de que forma estão ligadas?
Eu sempre quis estudar cinema. Acabei por estudar matemática, porque não me deixaram entrar no Conservatório de Cinema. Mas também gostei sempre muito de matemática, então também houve algum gosto pessoal no estudo. O cinema, tanto como a fotografia, tem um lado técnico muito presente e não se consegue fazer sem certos aparelhos que nascem da ciência e da ótica. O próprio cinema tem estruturas bastante lógicas – ou que se baseiam na lógica. Atualmente, tendemos a ver as coisas de uma forma muito dividida por áreas, mas tudo isto é muito mais uma só coisa. Tudo se interceta naturalmente. As coisas confluem e coabitam no mesmo universo. Para mim, é difícil separar os domínios da realidade, não sei se estou a ser matemático ou não. Sempre quis fazer cinema, nunca pensei fazer nada profissional (não gosto nada desta palavra) na área da matemática, era mais uma questão académica.
Quais são as principais que dificuldades que vês no cinema em Portugal e o que se poderia fazer para as diminuir?
As dificuldades estão todas ligadas à falta de apoios – ou aos apoios serem poucos e completamente desajustados em relação ao resto da realidade social. Um filme é algo que é caro por si mesmo. Esta coisa do digital veio iludir um pouco as pessoas, dá a ideia de que o cinema agora que é digital é barato. Mas não. Pode haver tipos de cinema que possam ser feitos de uma forma mais barata, mas deixa de fazer sentido se não houver a liberdade criativa de se poder fazer cinema com equipas grandes e escolhas criativas livres de questões económicas. Se as pessoas trabalham, devem receber. E eu acho que não há grande noção de que o cinema é complicado. Deixou de se usar tanto a película e passou a usar-se mais o digital, mas uma pessoa que faz a direção artística não deixa de ter de trabalhar e de, com ela, trabalharem carpinteiros e uma data de outras pessoas que têm experiência a desempenhar uma determinada função. Ou seja, não é por agora se filmar em digital que as pessoas vão deixar de ser necessárias. Acho que se perdeu um bocado a noção da realidade. E há um problema sério – que eu considero global a tudo no mundo – que é o facto de as pessoas verem o cinema de uma forma única, ou só num sentido, porque lhes é imposto que vejam apenas um género de cinema que é feito com um propósito economicista – e o cinema não é isso. Tal como a pintura, ninguém o faz assim. O Bach não compunha música a pensar no dinheiro que ia receber.
A arte não é isso, não é uma busca por dinheiro, é uma busca interior. E enquanto as pessoas continuarem a achar que o cinema tem de ser rentável… não sei, não vejo grande maneira neste momento de mudar mentalidades ou políticas ou incentivos. E, enquanto as operadoras de televisão tiverem palavra na questão dos financiamentos do cinema, não há muito a fazer, não há muito que se possa mudar. Tem de haver muito mais uma questão quase de educação, de as pessoas realmente entenderem que quanto estão a ouvir Bach, é algo que sentes e não entendes que não estás a comprar um produto. Não é uma troca monetária. É como quando estás a ter uma conversa com uma pessoa: estamos a falar de coisas que não se podem valorizar em termos de capital e as pessoas tendem a querer capitalizar tudo. Querem colocar valor de mercado em tudo, e, enquanto continuarem a pensar assim, não vale a pena estarmos aqui a lutar por apoios ao cinema. As pessoas precisam de pensar nas coisas de uma outra maneira. Tanto para o cinema, como para todas as artes. É impossível e não tem sentido absolutamente nenhum estarmos a dar um valor monetário aos Painéis de São Vicente, por exemplo. O valor está na obra em si, no que nos transmite e na sua importância.
Sentiste diferenças relativas ao valor que se dá à arte entre Portugal e Bósnia?
A Bósnia é um país ainda muito massacrado e que vive muito envolvido nos problemas que uma guerra deixa. São realidades completamente diferentes. Não sei, nunca vivi uma guerra, mas os efeitos que ela provoca são tremendos. E, neste momento, acho que a Bósnia é um país com uma produção artística realmente quase nula, o que é preocupante. Mas também tem muito a ver com a questão de que estávamos a falar: é uma questão educacional e cultural e tem a ver com a maneira como uma sociedade está a viver o seu presente. Não sinto que seja uma coisa de lá fora haver mais oportunidades e cá dentro existirem menos, acho que é algo muito mais global, todo este pensamento do capitalismo. É uma coisa muito mais global do que de uma região em particular, e os problemas que advêm disso são enormes e são gerais. Principalmente com estas políticas fascistas, que estão cada vez mais a instaurar-se pelo mundo, parece-me que não há muita esperança. Não é cá que é diferente. Pode haver mais dinheiro e mais apoios noutros países, mas é uma coisa que advém da política e das maneiras de pensar e ver o mundo.
Estás a trabalhar em algum projeto?
Tenho três projetos, filmes que gostava de fazer. Um deles já tenho parte do orçamento mas não a totalidade, os outros dois não tenho parte nenhuma ainda.