Entrevista. Bernardo Pires de Lima: “Precisamos de anular o discurso “moralista” dos populistas”
Editado pela Tinta da China, “O Lado B da Europa” é o mais recente livro do analista político Bernardo Pires de Lima. Entre os seus livros anteriores temos por exemplo “Síria em Pedaços”, ou “Putinlândia”, resultados das suas investigações e opiniões sobre temas estruturantes da sociedade actual. “O Lado B da Europa” é mais um desses trabalhos. Após 11 meses de viagem sobre as 28 capitais europeias, o livro surge como ponto de vista pessoal do autor sobre os locais que visitou com o objectivo de analisar o momento geopolítico europeu através das nuances políticas, sociais, culturais e económicas de cada um dos seus países.
Os diferentes contextos numa Europa em constante mutação, o forte crescimento do populismo na política actual e as respostas que a União Europeia precisa de dar foram alguns dos temas que nos levaram à conversa com um pensador político que muito apreciamos.
Comecemos pelo início. Que lado “B” da Europa é este? Uma Europa aos olhos do Bernardo ou uma Europa que os media não nos fazem chegar?
Tem três significados: um, por ser uma análise testemunhal, presencial e enriquecida pelas mais de cem entrevistas feitas em 28 capitais europeias, ou seja, assumidamente minha, com as virtudes e os defeitos que contém; dois, por recuperar uma cultura musical na qual cresci, onde os lados B dos singles eram muitas vezes as melhores músicas, ou seja, apesar de escondidas tinham um lado solar a descoberto; três, igualmente através deste ângulo mais musical, podermos esbarrar com uma autêntica surpresa desagradável, com uma proposta desastrosa, com um lado negro do disco. Não tenho ilusões sobre a incapacidade dos media que lemos de chegar a todos os cantos da Europa, nem a presunção de os analisar ao detalhe. Até acho natural não nos interessarmos pelo que se passa na Letónia, ou noutro país distante, eles têm a mesma atitude com Portugal. O que digo é que o desconhecimento mútuo nos afasta, deslaça, dilui a coesão. E um projecto político de integração a vários níveis como a UE, mais cedo ou mais tarde não sobrevive a essa ignorância.
Que países o surpreenderam mais, de forma positiva e negativa, nesta sua viagem pelas capitais europeias?
Conhecia praticamente todas as capitais visitadas para o livro, o que nunca significa conhecer bem o país. Talvez o que conheça melhor seja Itália, porque lá vivi e viajei muito de norte a sul na última década e meia. E sei perfeitamente que as capitais são normalmente bolhas de cosmopolitismo e sofisticação. Mas eu precisava de seguir um critério realista e exequível para este livro e foi o que adoptei. Diria que, Lisboa e Roma à parte por menor distanciamento, encontrei Varsóvia bastante mais desenvolvida do que das últimas vezes; Berlim na linha da oferta cultural e artística que já tinha, mas com uma maior riqueza na produção de debate sobre a Europa; Valeta com uma sofisticação a mascarar os lados perversos de Malta; Paris mais uma vez estagnada apesar do furacão Macron; Estocolmo foi uma agradável surpresa, mas a Escandinávia tapa mais desalinhamento regional do que imaginei; os mitos de homogeneidade entre os quatro de Visegrado; lados novos de Amesterdão que me fariam mudar para lá amanhã; gostei bastante de Riga e Bucareste, por razões diferentes, mas com um enorme charme e massa crítica que precisava de ser melhor aproveitada; Sófia e Nicósia com pouca oferta cultural e verdadeiros entroncamentos de influências geopolíticas; uma Atenas vibrante em muitos aspectos que eu desconhecia; e Talin como exemplo da concretização de uma grande estratégia nacional num país saído do totalitarismo.
Podemos dizer que este Lado B da Europa é uma continuação lógica, em muitos aspectos, do Putinlândia, tendo em conta a expressão que muitos dos movimentos mencionados pelo Bernardo no livro anterior conseguiram um pouco por toda a Europa?
De certa maneira, os sete livros que publiquei nestes dez anos (2008-2018) seguem muitos elementos de continuidade. Como trabalho essencialmente política internacional pós-Guerra Fria, penso que cobri os grandes temas que marcaram a actualidade europeia, americana, portuguesa e do Médio Oriente. No livro do Blair tratei propositadamente de passagem a Cimeira das Lajes para escrever de seguida um sobre os seus bastidores e os debates americano, português, espanhol e britânico que levaram ao Iraque. Em oito anos de “Jogos sem Fronteiras” no Diário de Notícias, tratei quase diariamente a geopolítica do Médio Oriente a ponto de ter praticamente dois livros sobre o Iraque e a Síria em crónicas, passíveis de serem trabalhadas. Tenho dedicado muito tempo à Europa e ao que a rodeia, tentando furar a bolha, olhando muito para as tradições democratas e republicanas na política externa americana – o livro sobre a Hillary não foi mais do que isto – para perceber as relações transatlânticas, o core dos meus quinze anos como investigador universitário. Tal como o papel e a influência da Rússia de Putin nos vários quadrantes europeus. Neste sentido, o que escrevi no Putinlândia teve, em 2017, um desenvolvimento galopante em várias eleições na UE e é também esse risco que testemunho e analiso no Lado B. No meio disto, sempre um gancho para Portugal: o seu papel no Atlântico, na União Europeia e nos grandes debates que directamente lhe tocam. Toda a política internacional é nacional.
Na sua visita a Estocolmo aborda a ligação da Suécia a Trump, a extrema-direita que agora conseguiu um importante resultado eleitoral e refere ainda que a Suécia “apenas no papel se mantém neutral”. Em que medida é que este resultado da extrema-direita, além do alerta sobre a política de imigração da UE, é também a Suécia a despir o disfarce de neutralidade para o exterior?
Em primeiro lugar, não me parece que exista “uma política de imigração da UE”. E o que existe não tem resultado, nem no cumprimento das suas obrigações internacionais à luz de tratados de proteção de refugiados, nem na mínima coordenação logística perante fluxos repentinos, nem na integração em grandes cidades, nem sequer na política de asilo. Por seu lado, existe uma europeização dos problemas e uma nacionalização dos sucessos. Tem sido esta a estratégia adoptada ao longo dos anos por muitos eurocépticos, hoje mais anti-UE que outra coisa. Ora, nem tudo pode ser assacado a Bruxelas. Esse caminho é demagógico. No Reino Unido, por exemplo, a esmagadora maioria da legislação nasce em Westminster, não nas instituições europeias. O país nem sequer está em Schengen, o que nacionaliza a sua política de imigração/integração, considerada pelos brexiters culpa absoluta da UE. Um logro, portanto. No caso sueco, além do alargamento do debate de segurança interna e externa – sobretudo desde a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014 -, vemos a adesão à NATO e o papel das Forças Armadas muito mais central nas prioridades dos partidos do que a percepção de neutralidade exterior nos indica. A extrema-direita é contra a adesão. O que digo no livro é que, esteja Trump na Casa Branca ou não, o governo sueco em 2017 (período referido no capítulo) queria uma aproximação bilateral a Washington por dois motivos: enviar um sinal a Moscovo e aproveitar as debilidades da posição do Reino Unido durante o desgaste do brexit. Sobre o crescimento da extrema-direita, apesar de não estar no governo, é hoje o terceiro maior grupo parlamentar e condiciona a estabilidade da governação de centro-esquerda, nesta fase um executivo de gestão depois da moção de censura aprovada no rescaldo das legislativas do passado Setembro. Ou seja, ainda tem margem para crescer e certamente aproveitará as várias bolsas de rejeição a um sistema que não será tão idílico como o percepcionamos.
Estes fenómenos populistas, nacionalistas eurocépticos e fortemente baseados em políticas anti-imigração que se fazem sentir um pouco por toda a Europa, à boleia dos cacos da crise económica que inevitavelmente também leva a uma crise social e política (não exatamente por esta ordem), são passageiros ou vêm para ficar?
Julgo que ninguém sabe responder a essa pergunta. Depende de vários factores. Primeiro, de os ciclos eleitorais validarem mais ou menos as suas propostas e figuras. Nuns casos isso tem acontecido, noutros não. Segundo, depende da gestão política dos ciclos económicos. Prepararmo-nos para a próxima crise financeira é fundamental para não cometermos os erros recentes que levaram a clivagens graves e não saradas entre europeus. Terceiro, “vendemos” mal os méritos da integração, expomos pouco ou nada os lados solares espalhados pelos Estados-membros, damos uma exposição desmesurada a fenómenos extremistas sem expressão equivalente e não valorizamos no espaço público movimentos pró-UE e pró-democracia que vão, apesar de tudo, mantendo esse espaço político e social ainda maioritário. Quarto, precisamos de anular o discurso “moralista” dos populistas, criando uma ética na ação política e pública onde a corrupção não entre de uma vez por todas. Por fim, precisamos de lidar conjuntamente muito melhor com a integração de imigrantes. É aí que está hoje o dilema identitário que dá força aos nacionalistas. De qualquer forma, tudo isto não sobrevive sem qualidade política, líderes com alguma visão estratégica e sobretudo coragem. Não há muita na UE.
Itália neste momento está mais perto de ser “a pátria da sua alma”, como escreveu Gógol, ou o “último prego do caixão da UE”, como escreve o Bernardo na análise à sua Roma do coração? Qual é o futuro desta Itália na UE.
Vejo com tristeza o que está a acontecer, mas não me surpreende. Há muitos anos que existem inúmeras bolsas de descontentamento e até desespero de norte a sul, misturadas com uma classe política privilegiada, cristalizada e mergulhada em casos mais ou menos obscuros. Este ponto misturado com o congelamento económico por mais de uma década e o caos na gestão humana e logística da vaga de imigração, degradaram o olhar positivo dos italianos sobre a UE. Em dez anos, as sondagens dizem-nos que Itália passou do topo do euroentusiasmo para o fundo da tabela entre os 28. Veremos como agora se fará a gestão da relação entre a Comissão Europeia e o governo italiano em relação ao orçamento. Esta gestão vai ser fundamental no clima mais ou menos anti-UE até às europeias de 2019, eleições absolutamente decisivas para as condições de coesão e governabilidade na UE nos anos próximos. Vamos ter despique permanente entre Roma e Bruxelas nos próximos tempos.
Portugal é de facto este oásis político na UE ou os escândalos de corrupção ligados a políticos, a crise de liderança que se fala no PSD, um PS a lidar com várias crises (incêndios e consequente escândalo de Pedrógão ou Tancos, por exemplo) e um PCP pós-autárquicas a querer beliscar o actual Governo podem deitar isso a perder nas próximas legislativas dando cada vez mais espaço ao surgimento de movimentos populistas?
Num certo sentido, tivemos há quatro anos um ensaio de demagogia chamado Marinho Pinto, com algum sucesso eleitoral mas que não sobreviveu ao exercício das funções políticas. Ou seja, o moralista encartado não foi compatível com a exigência do cargo. Quer isto dizer que qualquer personagem ou movimento que surja agora em Portugal tem o mesmo destino? Não estou tão certo. Vivemos um tempo de legitimação ocidental a uma cartilha assente em violência narrativa, desrespeito pelo adversário político, sectarismo, incitamento ao ódio (EUA, Brasil, Hungria, Itália, Polónia, Espanha), por isso vejo como mais plausível que o mercado eleitoral possa absorver de outra forma essa linha. Dito isto, mantenho a análise feita para outras paragens: quem está comprometido com a democracia liberal, a separação de poderes, o estado de Direito e as liberdades inegociáveis, tem de fazer mais e melhor para as defender publicamente. Os partidos têm de melhorar e muito o seu comportamento ético, de transparência e o seu recrutamento; os media tradicionais têm de recuperar o seu papel central na democracia e de procura da verdade; os titulares de cargos públicos, políticos e não só, tem de seguir um código deontológico e ético onde a corrupção e a falta de transparência não entrem. Não há nenhuma boa razão para voltar ao nacionalismo identitário; há centenas de boas razões para defender e adoptar uma visão cosmopolita das democracias, a começar pela portuguesa, aberta ao mundo como é.
Pergunta inevitável: Na sua opinião que impactos tem trazido a administração Trump na União Europeia?
Mais divisões entre europeus. Há governos que se reforçaram e legitimaram com um presidente nacionalista na Casa Branca (Polónia e Hungria à cabeça), partidos que viram a sua agenda validada pelo sucesso eleitoral da receita Trump (Itália, República Checa, Eslovénia), e muitos outros governos e partidos comprometidos com a integração europeia que deixaram de ver em Washington um factor de agregação na Europa. Obriga-nos a dar prioridade a uma agenda mais autónoma (comércio externo e defesa, sobretudo) e traz um nível de desconfiança entre todos que só destrói a coesão europeia, em pleno brexit. A relação transatlântica está no nível mais baixo desde a Guerra do Iraque em 2003. Moscovo e Pequim são os grandes beneficiados desta erosão.
Há futuro para a União Europeia nos moldes actuais ou a crise identitária que se faz sentir obrigará a uma reforma interna? Se sim, a UE está capacitada ou mentalizada para a fazer?
Há reformas que são urgentes, a começar pela da zona euro, fundamental para preparar respostas a uma futura crise. As diferenças identitárias já levaram, nos últimos anos, à institucionalização de vários círculos da integração onde os Estados-membros optam por estar ou não. Esta tendência vai acentuar-se nos próximos tempos, com um epicentro de domínio político na zona euro, agora que o Reino Unido deixa de equilibrar objectivamente o eixo franco-alemão com a sua saída. Veremos o compromisso da Alemanha sem Merkel e a sustentabilidade de Macron em liderar alguns debates. O que temos de novo é um discurso negativo e destrutivo em relação à integração europeia que já não é sequer eurocéptico. É este nível de animosidade que é urgente derrotar. Para isso, quem está comprometido com a UE tem de fazer muito mais e melhor para fazer vingar as suas posições. Não pode ficar apenas pelo diagnóstico, tem de apontar saídas.
Que impactos terá para Portugal e para a União Europeia a eleição de Jair Bolsonaro como Presidente do Brasil?
Não é claro o posicionamento externo da administração Bolsonaro. A política externa esteve, sem surpresa, ausente da campanha. Nesse sentido, face a essa zona cinzenta, diria que Portugal vai tentar separar as relações de Estado das pessoais, dado que neste caso elas simplesmente não existem. Estamos, como no caso da administração Trump, perante pessoal político fora dos habituais círculos de proximidade dos partidos portugueses, o que dificulta as pontes. De qualquer forma, e mesmo o Brasil contando muito pouco nas nossas relações económicas externas (2%), há uma comunidade portuguesa que merece toda a atenção – sobretudo se uma crise de violência surgir. Nesse contexto, não podemos voltar a repetir o silêncio que imperou durante tanto tempo, por exemplo, com o que se vem passando na Venezuela, onde a nossa comunidade tem sido alvo de criminalidade constante. No caso da UE, há uma negociação com o Mercosul para um acordo de comércio, que tem estado no bom caminho e faz parte de uma agenda comercial global e ambiciosa da UE. Veremos como a nova presidência do Brasil deslinda a defesa dos interesses do seu eleitorado agrícola, o etnocentrismo político da campanha de Bolsonaro e o facto de ter um programa económico de privatizações em massa. As condições de governabilidade interna vão ditar em muito o carril das negociações com a UE.
Numa entrevista a C.J. Polychroniou, Noam Chomsky refere: “Podemos ser pessimistas, desistir e ajudar a garantir que o pior aconteça, ou podemos ser optimistas e aproveitar as oportunidades que certamente existem e talvez ajudar a tornar o mundo melhor.” Concorda com esta visão, ou a política actual leva-o a encarar os nossos tempos e os tempos futuros com maior descrença?
Sou um optimista na minha vida, mas considero o cepticismo uma virtude na análise política. Estamos num tempo-fronteira. As verdades do pós-Guerra Fria triunfalista estão em cheque, a democracia liberal já não é o destino inevitável das sociedades, há metamorfoses, há outras propostas a ganhar terreno. Quem defende os valores e os pilares das democracias liberais tem, hoje, uma responsabilidade acrescida em todas as suas esferas de intervenção e influência: defender os seus méritos, lutar pela sua regeneração, e derrotar em debate e em urna quem a quer destruir. O problema? Os primeiros são hoje menos do que há 20 anos, os segundos cada vez mais. É preciso reverter este declínio rapidamente. Da minha parte, sei muito bem de que lado estou.