Entrevista. Best Youth: “É realmente importante uma pessoa focar-se no momento e fazer um esforço para reconhecer o valor do presente”
O passado, presente e futuro e a forma como estes três tempos se encontram e confundem constitui o grande mote de inspiração para “Everywhen”, o recente álbum dos Best Youth, lançado em janeiro deste ano.
O disco começou a ser imaginado e preparado em plena pandemia e, como tal, a banda explicou à Comunidade Cultura e Arte (CCA) como foi a experiência da dilatação do tempo, do momento presente, numa altura que a sociedade parou para pensar “na questão do isolamento, do tempo, da introspeção, no facto de estarmos todos mais sozinhos“, explica Ed Rocha Gonçalves. Já Catarina Salinas refere como a sociedade voltou a correr outra vez, mas avisa que está contente por este trabalho emoldurar aquele período. Os concertos que a banda dará no Teatro Tivoli e na Casa da Música, nos dias 25 de Setembro e 2 de Outubro, respetivamente, vão contar com Marisa Liz, Moullinex, The Legendary Tigerman e Wolf Manhattan. Para já, no dia 8 de Junho, a banda atuará no festival Primavera Sound Porto.
O “Everywhen” foi lançado em janeiro deste ano, mas pelo que percebi já estava a ser imaginado durante a pandemia. De que forma a pandemia acabou por condicionar o vosso trabalho?
Ed Rocha Gonçalves [Ed] – A questão mais importante do que aconteceu relativamente a este disco, na pandemia, foi o nosso método, parte de encontrarmos sonicamente o caminho que queremos seguir, antes de encontrarmos, conceptualmente, o que é que vamos falar. Ou seja, a música é que nos sugere as temáticas. Quando a pandemia caiu em cima de nós, o processo em que estávamos era um processo desses, explorativo, sónico e, sem querer, a pandemia pôs-nos a pensar em coisas nas quais não tínhamos pensado antes, nomeadamente a questão do isolamento, do tempo, da introspeção, o facto de estarmos todos mais sozinhos.
Catarina Salinas [CS] – Mais isolados!
ED – Estávamos todos separados e começámos a trabalhar. Temos o privilégio de ter um estúdio próprio, então, antes do mundo abrir por completo, conseguimos vir trabalhar juntos para o estúdio. Era, no entanto, um processo muito isolado porque, basicamente, ou estávamos em casa, ou só existíamos aqui os dois. Isso resultou num processo de desenvolvimento do disco mais solitário do que nos discos anteriores. A questão do tempo, que é a temática global do disco, veio dessa relação diferente com o tempo que experimentámos com a pandemia, pelo isolamento, pelo afastamento do mundo exterior.
CS – Basicamente o tempo tinha parado, parou para toda a gente. Para nós também parou e concentrámos essa paragem num tentar andar com o tempo, através do disco. À medida que íamos acabando as canções e terminando aquilo que tínhamos de fazer, parecia que o tempo estava avançar. Parece um contrassenso, mas é uma coisa que está inerente a este disco, de facto.
Pelo que disseram posso depreender que foram as letras, então, que se ajustaram ao instrumental.
CS – Sim, neste caso, sim.
ED – Neste caso, uma das metodologias mais frequentes é essa: vamos buscar a emoção primeiro e, depois, vamos traduzir a emoção para palavras.
Já fizeram uma pequena abordagem a isso mas, mais especificamente, como foi assumirem, sozinhos, a produção e parte da mistura do álbum? Quais foram os desafios?
CS – Os desafios foram todos.
ED – Os desafios foram, sobretudo, técnicos. A parte da produção fazemos já desde os primeiros discos, porque gostamos de estar envolvidos nessa parte. A produção é uma das partes mais importantes para as coisas terem uma identidade própria. Gostamos muito que os nossos discos sejam muito identitários. A parte da mistura também é muito importante para isso, mas é uma parte mais técnica. A maior dificuldade foi ter confiança para nos atirarmos a essa parte técnica, estudá-la, aprender e ter a confiança para conseguir levar isso até à fasquia de qualidade que queremos que os nossos discos tenham. Isso foi a parte mais difícil, mais desafiante. Conseguir chegar aí foi mais desafiante também.
CS – Aprendemos muito os dois e acho que nos deu ferramentas, sem dúvida, para continuarmos a fazer discos cada vez mais próximos daquilo que queremos e imaginamos.
“A produção é uma das partes mais importantes para as coisas terem uma identidade própria. Gostamos muito que os nossos discos sejam muito identitários.”
Como já explicaram, o disco joga muito com as noções de tempo. Isso nota-se também pelo nome do álbum e pelos títulos de algumas canções. Mas conseguem explicar melhor esse conceito do presente, passado e futuro num todo? Isso está, então, intrinsecamente ligado à pandemia e como se vivia o tempo na altura.
CS – Sim, tudo se confunde. De certa forma, existe uma confusão, quase que há uma interligação constante sem nenhuma ordem propriamente específica entre os três tempos: o passado, o presente e o futuro. Basicamente, criámos um sítio em que estamos a levitar sobre todos esses time frames e a tentar navegá-los dentro da mensagem que queremos passar, dentro das emoções que estamos a sentir, e acho que dentro do nosso melhor conseguimos traduzir isso no disco.
ED – Uma das coisas que aconteceu com a pandemia é que baralhou, para muita gente, o sentido de presente. É uma temática muito importante nas vidas aceleradas que temos levado e estamos, constantemente, a ser lembrados para vivermos mais no momento e aproveitamos mais o momento, que é importantíssimo. De certa forma, na pandemia, acho que sentimos todos que esse momento não existia porque era sempre o mesmo: estávamos todos parados a fazer as mesmas coisas repetidamente, sem poder sair, no mesmo contexto e, de repente, o presente dilatou para uma coisa intemporal, meio amorfa, e esse foi um dos sentimentos que inspirou a temática do disco: estando numa fase de um presente meio amorfo, meio disforme, conseguimos ter uma visão mais externa do tempo, das nossas vidas, do que está para trás e do que poderá estar para a frente. Parece que durante a pandemia esse tempo foi posto em pausa e isso serviu-nos para pensar e para o quão importante é para todos fazer uma pausa, uma reflexão do que está para a frente e do que está para trás, o que as nossas vidas nem sempre permitem, pelo facto do ritmo de vida estar cada vez mais acelerado, por causa das evoluções tecnológicas e questões sociológicas. Mas, ao mesmo tempo que nos permitiu ver essa dilatação, também nos fez perceber que é realmente importante uma pessoa focar-se no momento e fazer um esforço para reconhecer o valor do presente.
Lá está. Isso foi uma das coisas que a pandemia ensinou, talvez o abrandar, o vivermos as coisas com mais tempo, dá-nos uma outra perspetiva sobre a nossa vida e sobre o que estamos a viver na nossa vida. Mas sentem que isso ajuda a lidar com as coisas com mais maturidade?
CS – Acho que sim, que quando as pessoas têm tempo para pensar e para refletir, normalmente, são mais sensatas mas, apesar de ter sido um desejo das pessoas e terem tido essa aprendizagem com a pandemia, sinto que acabámos outra vez por cair no ram ram dos tempos de antes. Aquilo que se aprendeu, falo em termos gerais, sentimos mais à flor da pele durante a pandemia mas, hoje em dia, passa um bocado mais despercebido. As pessoas voltaram a correr. Mas fico muito contente por termos feito um álbum que emoldurou a altura da pandemia.
Sendo do Porto, como é que olham para o panorama da cidade a nível musical, a nível do que se tem feito de novo, por exemplo, desde o momento em que começaram até agora têm notado alguma evolução ou algumas diferenças?
ED – Houve uma diferença muito positiva no acesso à música que aconteceu desde que começámos a trabalhar juntos, em 2003 ou 2004. Por isso, há cerca de 20 anos, foi a primeira vez que começámos os dois a trabalhar em música. Esses últimos 20 anos acompanharam uma democratização das ferramentas de fazer música. Há a grande vantagem de, atualmente, qualquer pessoa que tenha uma intuição musical e queira trabalhar em música, ter um trabalho muito facilitado nesse sentido porque as ferramentas e as ferramentas de aprendizagem são, algumas, gratuitas. Dá, por exemplo, para aprender no YouTube tudo o que uma pessoa quiser.
CS – Sim, e no telemóvel tens o Garageband, que vem gratuito.
ED – As ferramentas de acesso, os instrumentos estão mais baratos, há instrumentos de gravação, tudo está mais barato, por isso vemos uma explosão de criatividade que é espetacular. Do lado mais negativo — e isto é transversal à história da música, não é só no Porto — há 20 anos, como de facto as barreiras de acesso eram mais difíceis e éramos menos pessoas na área, penso que havia mais atenção àquilo que era feito. A quantidade era menor e existia muita mais fricção para uma pessoa tentar pôr um trabalho cá fora, ou seja, naturalmente havia mais atenção por parte do público, dos peers e das pessoas. Hoje em dia, uma consequência dessa democratização é que há muita coisa, há muita oferta, há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, as atenções estão todas dispersas.
CS – Há muito défice de atenção, nesse sentido.
ED – É uma coisa que sentimos mas, ao mesmo tempo, ficamos contentes porque estão a aparecer imensos talentos novos, espetaculares, e sinto que há muitos que não têm a atenção devida.
CS – É verdade.
ED – O que é uma pena.
Kate: Isso continua, infelizmente.
“Na nossa altura era mais difícil chegar a um grande público porque, basicamente, ou se estava na imprensa, nos meios que comunicavam para o público geral ou não havia hipótese de chegares às pessoas. Hoje em dia há imensas hipóteses, a Internet é livre, mas quem manda são, de facto, os detentores dos algoritmos das redes sociais onde está toda a gente.”
Mas acham que ainda é difícil para quem não está nos grandes centros, nos sítios certos à hora certa? Ainda se pode ter a vida dificultada nesse sentido?
CS – Pode, apesar de ter havido essa democratização, o que não deixa de ser um facto, com as redes sociais, com o streaming, e tudo mais. Isso realmente facilitou o acesso de artistas emergentes a um público, digamos assim. Mas, independentemente dessa democratização, ainda vives um tempo em que existem meios de distribuição que fazem parte, ainda, de uma indústria na qual nós e outras bandas atrás apareceram. Ainda estamos aqui numa corda meia bamba. Apesar de termos acesso a público, existem ainda veículos que não deixam esses artistas chegar ao público a que querem chegar. Tens, depois, a questão dos algoritmos, das redes sociais, ou seja, há sempre um middleman.
ED – Na nossa altura era mais difícil chegar a um grande público porque, basicamente, ou se estava na imprensa, nos meios que comunicavam para o público geral ou não havia hipótese de chegares às pessoas. Hoje em dia há imensas hipóteses, a Internet é livre, mas quem manda são, de facto, os detentores dos algoritmos das redes sociais onde está toda a gente. Antes era um bocado mais linear, do género: “este jornal não quis falar connosco, esta revista não nos quis entrevistar ou esta televisão não quis falar connosco”. Hoje, os artistas estão nas redes sociais todas mas, por algum motivo, não se consegue chegar às pessoas e ninguém diz porquê. É mais opaco.
Desde a Marisa Liz até ao Legendary Tigerman, vão juntar convidados de distintos universos musicais nos vossos concertos da Casa da Música e no Teatro Tivoli. Porquê esta opção de juntarem convidados de diferentes universos musicais?
CS – Gostamos essencialmente de desafios e somos bastante ecléticos no nosso gosto musical. Independentemente do Ed vir de um background mais rock e eu vir de uma base mais pop somos bastante transversais e gostamos de explorar essa transversalidade. Vimos nestes dois concertos uma oportunidade de o fazer. Pensámos em quem é que poderíamos ligar, que mundos é que poderíamos juntar aqui, e chegámos à conclusão que termos a Marisa, o Tigerman, o Moullinex e o Wolf Manhattan era um buquê espetacular de variedades florais que tínhamos que incluir nos concertos.
ED – Quando desenvolvemos este disco, uma das partes mais divertidas foi criar o imaginário todo à volta, desde o imaginário sonoro até ao estético, com a This is Pacifica, e à forma como interpretamos as músicas nos concertos. Para nós, essa é a parte criativa mais divertida. Como sentimos que este disco tinha uma identidade, uma série de códigos próprios e que lhe davam uma identidade muito marcada, tivemos curiosidade em perceber se estes códigos que desenvolvemos para o nosso disco se adaptam em diferentes territórios. No fundo, se trouxermos elementos externos de sítios que não são nossos e os trouxemos para aqui, o que é que acontece? Como é que este universo que nós criámos vai reagir a um input externo? Então, para isso, achámos que era interessante trazer inputs externos de diferentes meios. Conseguimos ter estes convidados para estes concertos e ficámos muito contentes por conseguir ter um leque de convidados de sítios diferentes. Por isso, vai ser interessante ver como é que esse input externo se vai adaptar ao universo que nós criámos e, de certa forma, como é que nos vamos adaptar ao universo deles. Isso é que vai ser rico.
O próprio design do álbum parece um caleidoscópio. Podem falar sobre essa opção? Pode estar ligado também a essa transversalidade de que falam!
ED – Quando discutimos com a This is Pacifica os conceitos do disco, o conceito do tempo, o conceito de espelho e o conceito de passado e futuro, tivemos várias interações, e ouve uma música em particular, a que dá o tema ao disco, a Everywhen, que criativamente foi muito interessante fazermos porque tem um espelho ao meio. Não nos preocupamos muito em explicar isto às pessoas, deixamos para quem quiser descobrir, mas é um easter egg que colocámos lá difícil de perceber, a música toca igual para a frente e para trás. Se uma pessoa inverter a música, ela toca exatamente igual. Esse desafio, a que nos impusemos musicalmente, ajudou a definir os conceitos gráficos e a fazer essa ligação entre os elementos gráficos e a música. Essa parte do desafio também foi muito engraçada, como é que conseguimos dar características à música que sejam interpretáveis na linguagem gráfica, que casem bem e façam um objeto completo.
Como é que têm sido os concertos até agora? Como é que o vosso trabalho tem sido recebido?
CS – Tem sido muito bom, estamos muito contentes, temos tido salas cheias. Tem acontecido uma coisa linda que até agora ainda não tinha acontecido, só acontecia com os singles que eram lançados. As pessoas cantavam os singles que saíam e conseguiam cantar os refrões mas, depois, as outras músicas não sabiam tão bem porque ouvem maioritariamente singles e, claro, ouvir o disco é uma digestão diferente. Mas neste disco reparei numa grande diferença, as pessoas estão a cantar as outras músicas. Temos realmente os singles, o “Cool Kids” e a “Rumba Nera”, à volta dos quais as pessoas gravitam, também gravitaram para as outras músicas do álbum que não são tão conhecidas. Fiquei mesmo feliz porque penso: “Então será que isto quer dizer que as pessoas não estão só a ouvir os singles? Estão a incidir-se mais no álbum?”. Isso é bom e é o que queremos, que as pessoas ouçam o álbum do início ao fim.
Faz parte do vosso crescimento.
CS – Sim, e gostamos. Gosto mesmo de ver as pessoas a crescerem connosco e a sentirem esse ímpeto. Senti mesmo que era um ímpeto das pessoas nos concertos, no sentido transmitirem: “Estamos com vocês, estamos a cantar todos juntos”. Foi mesmo lindo e ficámos mesmo muito felizes.
Também vão tocar no Primavera Sound Porto. Há expectativas quanto a esse concerto?
ED – Sim. Somos fãs do festival já desde a primeira edição. Fechámos a primeira edição do festival, fizemos a festa de encerramento, na Casa da Música, da primeira edição do Primavera Sound Porto. Estando na nossa cidade, é um festival a que temos ido e que gostamos muito, por isso é uma honra e um prazer muito grande tocar no palco do Parque da Cidade, e vai ser muito fixe fazer parte de um cartaz com imensos artistas que admiramos.