Entrevista. Bruno dos Reis: “Aprendi tanto com as Tartarugas Ninja como com Deleuze ou Foucault”

por Comunidade Cultura e Arte,    15 Outubro, 2018
Entrevista. Bruno dos Reis: “Aprendi tanto com as Tartarugas Ninja como com Deleuze ou Foucault”
“Desvão” / Fotografia de João Pedro Cardoso
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À conversa com o Bruno dos Reis, director artístico do GrETUA, autor e co-encenador do Desvão, e com o João Tarrafa, Sheila Carneiro e Teresa Queirós, actores. Falámos sobre várias coisas, da evolução do GrETUA no contexto da cidade de Aveiro e da sua relação com o público, da peça “Desvão”, levada à cena no GrETUA no dia 17 de Outubro depois de um fim-de-semana de estreia no Teatro Aveirense em Setembro. Falámos de Tartarugas Ninja e Foucault, Thundercats e Deleuze, de nostalgia, de amor e de ideias. No final, a mensagem a reter é esta: vejam a peça – se já viram, revejam, será sempre diferente. Se ainda não viram, rectifiquem rapidamente uma péssima decisão na vossa vida.

Teresa Queirós, Sheila Carneiro, João Tarrafa e Bruno dos Reis

O facto de levarem a peça ao Teatro Aveirense acaba por ser o sintoma de algo que já era real há muito tempo e que é o facto de vocês esgotarem os vossos espectáculos e terem um reconhecimento do público. Isto desmonta muito os mitos que temos acerca da ausência de público na cultura e no teatro.
Bruno dos Reis: Primeiro, eu acho que isso é um mito – que não existe público. Sempre que eu tenho a possibilidade de assistir a um espectáculo fora de Aveiro, a maioria das salas que eu encontro estão, se não cheias, bastante plenas. Eu acho que isso é uma visão um pouco datada e que talvez faça algum sentido naquilo que é o contexto cultural de algumas cidades, na qual Aveiro naturalmente se inclui. E nem sequer penso que seja uma questão na cidade de Aveiro, porque agora parece que há muitas coisas a acontecer, mas a realidade é que há uns anos não havia nada. E parece-me difícil dizer que não há público, porque é como dizer que não há público para algo que não existe.

Em segundo lugar, é claro que, se me perguntares a mim se foi o nosso trabalho meritório que nos levou a uma co-produção com o teatro municipal, é claro que eu vou dizer que sim, porque eu sei a qualidade daquilo que nós temos vindo a fazer nos últimos três anos. Apesar de tudo, eu não sei se não é simplesmente uma mudança de política que acontece no município e na estrutura do Teatro Aveirense. Parece-me que há uma maior aposta, não só na estrutura do Teatro Aveirense pela autarquia, mas também uma aposta muitíssimo forte naquilo que é a sua programação, comparativamente a há uns anos. E além disso, a cidade de Aveiro pretende lançar-se como concorrente a capital europeia da cultura em 2027. Cada um pode tirar as ilações que quiser, mas a verdade é que nunca conseguirá chegar a ser concorrente sequer se não tiver criação, porque é a criação que forma tudo. Não há criação na área do teatro na região, não existe uma companhia profissional e, nesse sentido, é claro que o GrETUA se lança como o único e imediato candidato. É o único que está a trabalhar num regime semi-profissional e que se lança a metas um pouco diferentes.

Assim, não sei se é um reconhecimento da nossa qualidade, se é uma mudança nas políticas da autarquia, se são as duas coisas. Eu acho que são as duas coisas, evidentemente. E o público, acho que só reflecte o trabalho que nós temos feito, que não é só um trabalho dentro de palco, é um trabalho fora de palco também.

Para além da comunicação que vocês fazem e da forma como abordam o público, as temáticas das peças – dos textos – que não são, obviamente, juvenis, ressoam muito bem num público que é jovem e que é muito imbecilizado, habitualmente. O certo é que há uma série de questões fortes que são propostas ao público e que bate em algum sítio que as pessoas valorizam. Achas que o tipo de mensagens que são sugeridas nos textos é particularmente apelativo a pessoas mais jovens?
BdR: Sim e não. Sim, precisamente pelo efeito que os espectáculos estão a ter e que a temática dos espectáculos está a ter. E não, porque, por exemplo, nós temos trabalhado, pelo menos há três espectáculos, o tema da nostalgia. E estamos a falar de um universo que a maioria das vezes nem é particularmente conhecido pelos jovens dos 18 aos 23 anos. Quando eu falo, por exemplo, em Thundercats, a malta dos 35 ou 40 vai saber o que é, mas a malta…[dirige-se a João Tarrafa, 22 anos] «alguma vez viste Thundercats?»

João Tarrafa: Vi, para o espectáculo, mas antes não.
BdR: Mas a magia da coisa continua lá e continua a ressoar de certa forma com esses jovens.

Há três anos estava a trabalhar temas que não me interessavam tanto. Estava a escrever um espectáculo sobre seis heroinómanos durante a corrida às eleições de 2016. Porque eu achava que era importante ter essa voz política no mundo. A questão é que todas as acções são políticas e houve aqui um momento em que nós nos começámos a aperceber e a distanciar um pouco desse pretensiosismo e passámos a fazer aquilo que ressoa connosco e que nós queremos fazer. Falar sobre as coisas de que nos apetece falar. E aquilo de que me apetece falar é que eu tenho saudades de acordar às nove da manhã para ir ver o Buéréré. E isso é um problema existencial que, de uma forma ou outra, ressoa com todos, tenhamos noventa anos ou dez.

Há ainda outra coisa que é: a nossa linguagem é ainda uma linguagem jovem e fresca neste meio. E é uma linguagem com que os jovens se identificam muito mais porque é tremendamente visual, que vai buscar muitas referências ao cinema. E também temos a sorte de estar a trabalhar com muita gente jovem, que de certa forma acaba por rejuvenescer ou trazer muitas coisas jovens à nossa linguagem e à nossa forma de comunicar. Como os intérpretes, que têm a maldição e o privilégio de terem o espetáculo a ser escrito ao mesmo tempo em que estão a trabalhar nas primeiras cenas. E que têm o privilégio – e a maldição, mais uma vez – de poderem oferecer feedback em relação ao que está a ser criado.

Existe essa interacção entre a escrita e aquilo que os actores lêem da tua escrita?
Teresa Queirós (dirigindo-se a JT): Deste muito input neste espectáculo.

Não recebes um texto fechado para estudar e para representar, tens um papel activo também.
JT: Não, se tivesse recebido, neste espectáculo, acho que ele teria sido muito diferente a nível de interpretação. Porque há coisas que vão acontecer para a frente, no texto, que ele (BdR) ainda não sabe quando está a escrever as primeiras seis páginas. Eu, quando cheguei aqui, tinha seis páginas. E nós começámos a tomar decisões que depois se mostraram erradas, consoante as próximas que ele ia escrevendo.
BdR: Neste espectáculo aconteceu algo, para que cada vez mais estamos a caminhar, que é: eu cada vez menos estou na sala de ensaios. Estou sentado a escrever e o meu irmão está a dirigir os actores, e depois eu vejo o processo final. E o que aconteceu foi que houve muitas coisas que naturalmente foram ao lado daquilo que eu tinha previsto, mas que foram mágicas para mim, quanto mais não seja porque eu tenho um sentimento novo, de não estar à espera que aquilo fosse feito daquela maneira. Isso para mim foi muito bom. Mas o que acontece é que, quando já havia meia hora de espectáculo que estava muito bem, cheguei a um ponto em que tinha que tomar decisões muito concretas sobre para onde é que o espectáculo ia prosseguir. Para isso foi necessário que a Teresa e o João tivessem que rever totalmente essa meia hora, porque de repente ela tinha um significado completamente diferente.
JT: Sim, a partir de uma altura, sempre que havia uma página nova havia alguma coisa para trás que tinha que ser mudada. «Então, ele diz isto, mas não pode ser com esta conotação porque…», havia uma série de problemas que surgiram à medida que o texto foi aparecendo.

Para vocês, como actores, isso deve ser óptimo porque faz-vos ser mais co-criadores do espectáculo.
JT: Não propriamente, porque estamos a trabalhar com o autor.
Sheila Carneiro: Eu acho que isso facilita bastante o trabalho, ter alguém a conduzir. E eu sentir que tenho essa abertura para perguntar «afinal é isto ou é aquilo?», a mim ajuda-me bastante.
JT: Para mim, sinto que é um trabalho mais “fechado” do que quando se tem um autor que não conhecemos, ou com quem não estamos a trabalhar no momento. Porque isso dá aso a toda uma série de interpretações diferentes que depois podem ser…
TQ: Bem interpretadas ou não.
JT: Sim, e aqui não há esse espaço, mas é um privilégio noutros sentidos.
BdR: Quando pegas num texto em que um autor já morreu, ou com quem a comunicação não é possível, permites-te, acho eu, a quase todas as interpretações. A partir do momento em que tens a pessoa que escreveu aquilo na sala ao lado, que sabe exactamente o que aquilo é, às vezes é um pouco mais ditatorial porque há situações em que eu digo «não é nada disto, não quero isto». Depois, neste caso, o autor não só é autor mas é encenador, também. Além disso, é complicado porque acho que tenho um processo de comunicação um pouco difícil e há coisas que eu já sei que vão acontecer, mas eu não quero estar a contar ou a contaminar aquilo que é o processo de descoberta dos actores. Por isso, não posso dizer «não, não pode ser isto por causa disto», só posso dizer «não, não pode ser isto».

Portanto, tens as tuas balizas para que a tua voz de autor esteja lá.
TQ: Não deixa de ser ingrato porque, assim como o Tarrafa estava a dizer, é mais fechado, sempre. Porque, apesar de nós podermos sempre bater na porta ao lado e perguntar «afinal de contas, o que é que isto significa? Ajuda-nos» acontece que, enquanto intérpretes, temos um caminho e um processo individuais dentro da personagem, daquilo que é a nossa própria interpretação do texto e daquilo que a personagem nos diz, que deve ter espaço para acontecer por si. Numa estrutura como esta acaba por ser potencialmente castrado porque temos à mão a pessoa que sabe efectivamente o que é pretendido e que, se calhar, – e acho que o Bruno vai concordar comigo, aqui – também não está disposta a abrir mão de x ou y frase ou x ou y ideia.
JT: Mas, por outro lado, também é um privilégio…
TQ: Sim, é um privilégio e um desafio, sempre.
JT: Porque quando começámos os ensaios, e eu fiz a personagem pela primeira vez, eu tinha uma ideia da personagem (também só tinha seis páginas) que era completamente diferente do que a que ele (BdR) e o Nuno tinham. E eu dou graças por estar com o autor, porque a personagem tomou uma direcção muito mais gratificante para o espectáculo do que se eu tivesse levado avante a minha interpretação. Se calhar, se estivéssemos a trabalhar outro autor, mais inacessível para nós, teria acontecido isso, teria ido por esse caminho.
BdR: Mas também não sabes qual seria o resultado desse caminho…
JT: Mas imagino (ri).
BdR: Eu acho que neste contexto, em que tu és muito amigo das pessoas que estão a trabalhar contigo, às vezes criam-se situações complicadas em que as pessoas te sugerem uma coisa que vai totalmente contra aquilo que tu queres fazer e tu tens que dizer que não mas ao mesmo tempo é um caminho viável. Porque é muito raro – se estás a trabalhar com pessoas inteligentes – não ser um caminho viável. E emocionalmente é complicado gerir o facto de ter que dizer «não, desculpa mas aqui não consigo abdicar disto». E depois, claro que eu não sei dizer qual teria sido o resultado se eu tivesse aberto mão a várias sugestões que me deram, ou como seria se o Tarrafa tivesse seguido com a sua interpretação imediata da personagem, isso são contas que eu nunca saberei fazer
TQ: Mas a beleza da coisa é muito essa, também. Isto é o produto da colaboração destas pessoas em particular.

Claro, dessa negociação que vocês têm que fazer uns com os outros. Tenho agora outra questão: pode dizer-se que há uma trilogia que começa no “Perguntem ao Porteiro”, passando no “Peignoir” e culmina no “Desvão”?
BdR: Existe uma possibilidade.

Existe um fio condutor que é traçável, acho eu.
BdR: Sim é, do ponto de vista do universo, do ponto de vista do género de temática tratada, do ponto de vista do género de linguagem, em certos casos, de algumas personagens. E existe um caminho possível para que seja inclusivamente uma narrativa lógica e coerente. Eu gosto que exista essa possibilidade e que seja uma possibilidade escondida.

Pelo menos tematicamente há uma unidade.
BdR: Sim, tematicamente há uma unidade muitíssimo grande que é precisamente a nostalgia, parece-me, que está presente em tudo. Um pouco esta coisa daquilo que será o heroísmo na contemporaneidade ou a ideia do heroísmo na contemporaneidade. E, bom, isso está presente de facto nas três. Como é que o heroísmo que nos é legado, que aprendemos, e que aprendemos a amar é capaz de nos ajudar com os problemas que são os nossos problemas, que são os nossos vilões do nosso dia-a-dia – que é o existencialismo contemporâneo – que são uma série infinita de coisas que não têm propriamente um rosto. Não é propriamente um Joker. E aí penso que sim, que é de facto uma trilogia. Eu acho que agora vamos dar uma guinada muito grande para outro lado, mas era algo que me apetecia muito continuar a trabalhar.

Eu ia perguntar precisamente – no caso de a trilogia ser uma coisa mais assumida por ti – se isso teria sido um projecto que tu pensaste logo desde o início, trabalhar esse tema a partir de três ângulos diferentes, ou se foi acontecendo.
BdR: Antes de o Porteiro começar, não. No fim do espectáculo “Perguntem ao Porteiro”, começou a haver muita vontade de o fazer, até porque este espectáculo já estava agendado e já estávamos a pensar no que é que poderia ser. O Porteiro pertencia a um ramo estético completamente diferente do Peignoir e os dois completamente diferentes deste, que é um tema totalmente diferente e nisso eu tento que exista sempre alguma frescura. Eu não quero que ninguém se sente numa sala onde esteja a decorrer um espectáculo em que eu participo, seja enquanto actor, encenador ou autor, e que diga «já vi isto». Ao mesmo tempo, quero que se diga, passados cinco minutos, «isto é um espectáculo daquelas pessoas». E isso é uma linha muito difícil. É muito difícil saber quando é que te estás a repetir e, por outro lado, escolher o que vais repetir. Por exemplo: a linguagem, a forma de linguagem é muito repetida. Foi uma coisa descoberta no Porteiro, parece-me. A estética não, a estética nunca foi repetida, acho. Foram três espectáculos visualmente super interessantes para mim e mesmo muito distintos uns dos outros e isso também me dá algum prazer porque estamos a descobrir alguma coisa.

Relativamente a esse processo de criação. Tu fazes um esforço por te colocar num caminho mental para escrever determinadas coisas e consomes coisas nesse sentido – cinema, literatura, etc? Ou é o processo inverso?
BdR: Normalmente ando alguns meses, em que não estou a trabalhar tão a tempo inteiro para um espectáculo, a recolher coisas de vários sítios diferentes, que vou vendo e que vou lendo e penso «esta coisa era um bom trampolim para uma outra coisa (que ainda não sei bem o que é)». Normalmente isso acontece-me até quando estou com crianças, que é uma coisa que eu odeio [risos]. Quando estou com crianças, a sua forma de falar, a sua linguagem e as suas associações são bons trampolins e eu vou sempre apontar coisas depois de estar com elas.

Há um período em que eu ando a recolher coisas de vários lados, de filmes que vejo e de livros que leio, e depois há uma altura – e essa altura é uma altura muito diferente – em que estou fechado e estou a escrever para um espectáculo. E, para isso, é necessário eu encontrar uma música para esse espectáculo, que é a música que eu ouço vinte e quatro vezes por hora. E sei dizer exactamente todas as músicas que acompanharam todos os espectáculos. Isso para mim é o essencial.

Havia muitas coisas que eu já tinha definido para este espectáculo, mas havia muitas coisas que eu ainda não sabia, ainda estava completamente em aberto em algumas coisas. E nesse sentido eu vou procurar sempre. Mais filmografia do que literatura. Durante os espectáculos, normalmente, só leio poesia, porque é rápido, e de vez em quando há alguma coisa que me chama a atenção e eu parto daí para uma ideia qualquer. Romances ou filosofia, torna-se mais difícil porque requerem mais atenção. Filmografia é fácil, séries é mais ou menos fácil mas é preciso ter cuidado para não ficar dezasseis horas seguidas a ver a mesma série e depois não fazer nada. O mais imediato para mim são sempre os filmes. E a música para mim é super importante.

O texto está cheio de referências, e aponta para muitos lados. Existe um contraste, que eu acho divertido, entre cultura pop e alta cultura ou “clássica”. Lês isso como algo do género «para mim é tudo “igual”, tenho o mesmo carinho pelos Thundercats que pelo Dom Quixote” ou há mesmo essa intenção de jogar com o contraste?
BdR: Tenho mais carinho pelos Thundercats do que tenho pelo Dom Quixote. Mas há duas coisas a trabalhar nesse sentido. Sim, de facto para mim é tudo igual porque eu aprendi tanto com as Tartarugas Ninja como aprendi com o Deleuze ou com o Foucault. Porque se o Foucault, de uma certa maneira, mudou a minha vida e a minha forma de pensar sobre tudo aos vinte e três anos, as Tartarugas Ninja mudaram a minha vida aos meus cinco anos de idade. E também seria impossível para mim chegar ao Foucault daquela forma se não tivessem sido as Tartarugas Ninja, que me ensinaram uma quantidade infinita de coisas. Quanto mais não seja o sentimento que me passaram quando eu era criança. E, vamos ver uma coisa, quantas horas é que eu passei a fingir que era uma delas? Eu nunca passei horas a fingir que era o Foucault. Eu acho que é tudo igual, são todos constituintes de um universo que é a minha identidade. Depois há outra coisa que é ter cuidado com aquilo que tu comunicas. Se fizesse um espectáculo de uma ou duas horas só a falar do Foucault, nem eu teria paciência para uma coisa dessas. Ao mesmo tempo, há um limite de coisas em que consegues transformar as Tartarugas Ninja. Há um limite de pensamento que podem oferecer. Acho que é importante também haver um equilíbrio para um público que tu não queres reduzir, não queres seccionar assim tanto. Acho que é importante haver esse equilíbrio.

Pegando nessa questão, do imaginário, daquilo que nos faz. Esta peça é muito sobre a linha que separa a nossa imaginação do que é real. Depois, acaba por jogar muito também com a concepção do que é ficção e o que não é. O teatro é a fingir ou não é? Esse jogo é importante no Desvão.
BdR: Esse jogo é o Desvão. E eu acho que esse jogo é o Desvão porque esse jogo é a minha vida. E acho que esse jogo é a vida de nós todos. Simplesmente podemos estar mais ou menos atentos a isso. Às vezes perguntam-me porque é que as duas da manhã ainda estou aqui. É porque eu amo e estou, evidentemente, a trabalhar para uma ideia. Como é que é possível amar menos uma ideia do que é amar uma pessoa? Porque quando amas uma pessoa também é uma ideia que estás a amar, parece-me. A tua vida é essencialmente isto: é o conjunto de ideias que tu escolheste amar. Seja uma tartaruga ninja, seja a tua namorada.

Uma pessoa morre, uma pessoa da tua vida morre, um constituinte da tua personalidade morre. O teu pai morre, o teu padrinho morre, a tua mãe morre. Tu continuas a amar essas pessoas. E cada vez mais, se calhar. E para sempre. O que é que distingue o acto presencial dela, o que é que distingue o amor dela em relação ao amor que tens a um desenho animado ou a um videojogo que tu amaste profundamente em criança? Eu corria, literalmente, da escola para ter mais dois minutos a jogar um videojogo. E também corri para ter mais dois minutos com uma pessoa na minha vida. Claro que, de um certo ponto de vista, isto é muito estúpido. Mas para mim não é, porque a força daquilo que eu sinto não é medida pelo facto de uma coisa ter existido ou não. Aliás, acho que as coisas que eu amei com mais força na minha vida foram coisas que não existiram. Aliás a isso chama-se sonho, não é?

Todas as leituras são possíveis, mas acho que há melhores leituras ou piores leituras sobre o espectáculo. E às vezes as pessoas dizem-me que são espectáculos tristes mas que estão um pouco diferentes daquilo que eram antigamente. Já se riem muito mas ainda são muito tristes. Mas eu acho que não, acho que são hinos à vida, ao amor. Os três espectáculos são hinos ao amor. E, se calhar, por causa disso é que andamos sempre a trabalhar a nostalgia, porque não existe nenhum amor que não seja o seu próprio fim anunciado, não é? E sim, o Desvão é isso, é precisamente essa fronteira.

E depois há consequências disso. Um elemento muito interessante que é o estado de exaltação do protagonista. Esse estado de exaltação a que chamamos, convencionalmente, loucura, leva-o a dizer algumas verdades muito fundamentais sobre a vida. Esse universo dos “loucos iluminados” interessa-te? Parece-me que há algo disso nas três peças.
BdR: Acredito que são só formas de pensar diferentes, são só gramáticas de pensar diferentes. E acho que existe uma beleza muito grande nelas, porque pelo menos existe uma falha de entendimento minha em como é que aquilo existe completamente e com tanta sinergia no dia-a-dia. Como é que aquela pessoa consegue viver o seu dia-a-dia tendo aquela gramática de pensamento. Isso, de facto, é uma coisa super apaixonante. E é claro que encontro muito mais paixão ou muito mais interesse numa pessoa dessas do que numa pessoa que seja, para mim, fácil. Que eu conheço durante 20 minutos num café e é, para mim, fácil perceber como é o seu dia-a-dia. Acho que é por causa disso que as pessoas que passaram por grandes tragédias são tão interessantes, porque existe um interesse em perceber «como é que isto vive? Como é que isto sobrevive? Do que é que isto se ri? Do que é que isto não se ri?» Interessa-me muito perceber como é que uma pessoa de 35 anos está a chorar com um vídeo de um pinguim a ser devolvido ao mar e passados cinco minutos está na rua a passar por um café e à porta do café está uma cadeira de rodas sem ninguém – que é uma coisa… a pessoa aprendeu a andar de repente? – E, de repente, essa pessoa que estava a chorar com um pinguim há cinco minutos, está a escangalhar-se a rir. E interessa-me muito perceber como é que se chega a esta coisa de identidade através de uma gramática de pensamento que permite estas duas coisas.

Essa loucura faz parte desse drama psicológico do protagonista, que acaba por se relacionar muito com uma ideia de paraíso perdido, de nostalgia da infância. Uma vez que abordaste o tema do heroísmo na contemporaneidade, essa nostalgia é também algo específico do nosso tempo?
BdR: A única coisa que eu tenho para dizer sobre isso é: eu às vezes penso que se eu não tivesse isto, o acto de criação, de ver algo feito, criado, se não tivesse esse amor desmedido a isso, o que é que eu estava a fazer? A minha vida seria um poço de depressão. Se eu não tivesse várias ideias que amar, vários espectáculos, várias personagens, e amá-las a todas. E se eu não pudesse partilhar com eles…é isso que eu peço quando lhe digo (JT) – apesar de ele já ter essa vontade por ele próprio – para ver os filmes todos de que estamos a falar, ver os desenhos animados de que estamos a falar e permitir-se apaixonar por isso. Porque é um pouco ingrato para eles, no sentido em que lhes peço que se apaixonem por coisas que eu também adoro, e é super narcísico isso. Mas, se eu não tivesse essas personagens para partilhar esse amor desmedido comigo, seria muito complicado. E eu não sei o que é viver um dia-a-dia de uma pessoa comum sem ter que lidar com o acto de já ter perdido tão grandes amores como foram os desenhos animados ou o primeiro amor na escola. Porque, no dia-a-dia, as pessoas têm que saber lidar com isso, de uma forma ou de outra, têm que partir de alguma maneira.

Todas as pessoas têm que partir todos os dias de alguma maneira. Por isso é que acho que esse tema da nostalgia – que não é bem nostalgia – é algo que ressoa em toda a gente. E no caso dos jovens é curioso e particular, porque ressoa para a frente. É um sentimento que tu consegues compreender, tu sabes que vais ter, mas ainda não o dominas por completo. E isso é que é maravilhoso, isso é que eu ainda não descobri como é que funciona e porque é que funciona. Acho que há uma perceção genética grande de perceberes «este sentimento toca-me, embora eu ainda não tenha uma noção tão grande dele quanto isso». É algo que ainda tenho que abordar num espectáculo e que ainda não percebi totalmente.
JT: Não sei se é uma questão comum dos nossos tempos mas não conheço ninguém que não esteja de alguma maneira presa a algo que aconteceu. Alguém que viva somente no agora. Não, há sempre uma nostalgia. Quer seja uma pessoa de 22, como eu tenho, ou uma pessoa que esteja num estado mais à frente desse processo. Por isso acho que é comum a todos. Se eu vi os filmes de que a personagem fala na peça, não foi para eu me apaixonar pelos filmes e levar-me a sentir alguma coisa. Isso eu fiz a ver os filmes que eu via e a jogar os jogos que eu jogava, porque a isso é que eu estou ligado emocionalmente. Não estou ligado emocionalmente ao Super Homem de ’78 porque eu só o vi há um mês. Eu revi episódios dos desenhos animados que eu via antes.

Mas não há um processo de tu identificares a tua nostalgia com a de outra pessoa e sentires que isso é uma coisa comum a todos. Há algo que surge daí também…
TQ: Mas é menos real para ti. É menos palpável. E aqui resgatamos um bocadinho a questão daquilo que é real e do que é a fingir, no teatro. Enquanto actor, quando estás em palco, muita coisa – não posso dizer tudo, até porque é por isso que são comummente chamados de atletas emocionais (os actores), justamente porque há ali um lado técnico, de controlo – mas as emoções que tu tens que interpretar e as coisas que tu tens que dizer têm, sim, que estar pejadas de verdade. É, também, por isso que um actor que está a fazer um espectáculo tremendamente “pesado” nem sempre consegue sair desse estado de espírito com facilidade, e talvez precise de se retirar por uns tempos. Assim como acontece o contrário, um actor que está a interpretar uma personagem cómica, pode chegar ao espectáculo em baixo e sair de lá francamente bem disposto, porque nós somos permeáveis e porque existe verdade naquilo que está a acontecer.

Transformam-vos, os papéis que fazem?
TQ: Sem dúvida. Porque aprendemos com eles, tremendamente. Para este espectáculo, o João Tarrafa viu uma panóplia de coisas novas que nunca tinha visto e isso, obviamente, é conhecimento novo e ele vai criar ligações novas. No entanto, neste caso, ele vai criar novas ligações com as coisas que via quando era mais novo, que o levam a sentir essa nostalgia. Vai ser uma nova ligação. Não é a mesma. Quando vamos buscar ou resgatar coisas que nós amávamos, a ligação é uma nova ligação. Será sempre. Se ele as resgatar daqui a dez anos, a ligação emocional será renovada, novamente. Porque enquanto pessoa és diferente, e o mundo à tua volta é diferente, e tu és permeável a isso.
JT: Mas foi importante para mim ver tudo – ver os filmes, ler os livros – para criar um universo para a personagem, ou inserir-me no dela (não sei bem qual é a diferença). Isso tinha que acontecer. Mas não é aí que está a verdadeira ligação emocional, acho eu.

Já referimos o sucesso que as peças têm tido junto do público. Para além do retorno que recebem das pessoas, na rua, que é muito espontâneo e muito imediato, não há muita crítica, critica mesmo, na imprensa ou vinda do meio académico, de fazer continuar essa conversa que a peça propõe. Sentem que isso seria interessante, sentem falta de que alguém traga esse olhar para aquilo que vocês estão a fazer?
BdR: Em Aveiro é de facto muito complicado perceber exactamente onde é que estás. Qual é o teu nível qualitativo. Porque, vamos ser francos, existe um nível qualitativo de tudo, essa coisa de “vale tudo” não é uma coisa que faça muito sentido na minha cabeça. Tu não sabes, não te consegues medir porque não tens uma plataforma pública de pensamento, de oferta de opinião, de discussão de opinião, nem tens ainda massa humana suficiente e capaz para uma coisa dessas. E cria-se talvez uma gruta de opinião, nas pessoas que existem, porque andamos aqui dez, vinte, trinta pessoas, e estão todas a falar umas para as outras. A haver uma iniciativa nesse sentido [criar uma plataforma de opinião] teria que ser com pessoas de fora, mas para virem pessoas de fora seria necessário essas pessoas terem trabalho cá. Para isso é necessário haver condições para as acolher cá, criar locais de criação para estarem cá a criar e a trabalhar porque é na criação que isto é gerado, porque é na criação que há discussão. Esta discussão de que há pouco estávamos a falar, da partilha, entre os intérpretes e o autor, essa é a génese da discussão. E essa discussão será depois trazida pelos espectadores, pelo público, etc.

O espectáculo inclusivamente fala disso, «gostava que as pessoas fossem todas baralhadas cheias de vergonha para casa», e eu acho que isso [a falta de pensamento] é um sentimento que só pode pertencer a um público que ainda não está habituado a ir baralhado e cheio de vergonha para casa. E acho que isso é super necessário, que é importante, acho que esse é o melhor público. Porque é o público que, de uma forma ou de outra, estará a criar porque está a criar uma opinião. E é este sentimento que é importante, é este sentimento que interessa e é este público e esta meta que nós, enquanto agentes culturais, devíamos ter. Chegar a esse estado em que o público vai para casa a conversar.
TQ: Seria muito bem-vinda essa fricção. Haver alguém que conteste. Toda a superação vem de atrito e de fricção, por isso é que é tão importante na parte criativa. Pelo menos eu acho que é sempre mais rica quando tens com quem “bater bolas”. Quem conteste as tuas ideias ou quem lhes dê uma nova roupagem, ou quem te faça pensar na coisa de outra forma. Eu acho que a crítica nesse sentido seria bem-vinda, não só porque faria isso de alguma forma – contestaria – mas também porque criaria o barómetro que não existe.

Estamos a terminar, há alguma mensagem que queiram deixar?
BdR: Apareçam aqui.
TQ: Vale a pena vir. Eu acredito que vai ser interessante mesmo para as pessoas que já viram. Sinto que o espectáculo é muito diferente, no GrETUA pela intimidade que este espaço permite. Até porque não deixa de passar-se num consultório. Acredito que poderá ser um espectáculo melhor no sentido de ser mais justo de acordo com aquilo que é proposto e com a mensagem que quer passar.
SC: Até porque estamos em casa.
BdR: Eu só acho que de um lado [TA] ganha umas coisas e do outro [GrETUA] ganha outras.
TQ: Pessoalmente, dentro daquilo que acho ser a mensagem e o universo do espectáculo, sinto que este espaço o serve melhor. Nós ensaiámos aqui e depois estreámos no Aveirense, e, sim, obviamente que há cenas que ganharam outras proporções e outro encanto naquele palco. Apesar disso, estou certa de que vale a pena revisitá-lo aqui.

Entrevista de David Calão

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