Entrevista. Dino D’Santiago: “O Brasil tem-me dado o maior ensinamento de todos que é amar a pele que visto”
Dino D’Santiago falou com a Comunidade Cultura e Arte (CCA) sobre as fundações que vai erigir, o que o levou a ingressar no ensino superior para estudar Jazz e Música Moderna e o concerto que dará no Ageas Cool Jazz, no dia 19 de Julho, na primeira vez que o artista prepara e pensa um concerto para um festival em específico. Enquanto a CCA falava com Dino D’Santiago por Zoom, Dino fez uma panorâmica com a câmara e mostrou os imensos livros, perto de trezentos, que conseguiu adquirir no Brasil, explicando que o mercado editorial no outro lado do Atlântico não só é mais vasto e mais acessível, como também é mais rico em traduções de pensadores e filósofos afrodescendentes. A relação com o Brasil e, em especial, Salvador da Bahia, além de enriquecedora tem sido transformadora, ao ponto de confessar que “o mesmo que senti em Cabo Verde, que me dá a identidade de Dino D’Santiago, estou a sentir agora com o Brasil”. E é esse mesmo sentimento de liberdade, ritmo e leveza com sabor a praia que Dino mostra em Oh Bahia, em parceria com a artista brasileira Luedji Luna, além dos chamamentos das raízes e justiça expressos em Esperança, com os artistas brasileiros Criolo e Amaro Freitas, com muito ritmo, rap e jazz. Duas colaborações que encetou recentemente, depois de, no final de 2023, ter oferecido ao público novos arranjos e roupagens para “Eva”, álbum que já celebrou a sua primeira década.
Há um apelo em Dino D’Santiago por mais conhecimento, por isso mesmo, está a reunir uma biblioteca para deixar aos seus familiares, vai ingressar na faculdade para estudar Jazz e Música Moderna, e quer, acima de tudo, deixar um legado, também, para os que viveram as mesmas dificuldades pelas quais passou e para quem vem do mesmo ambiente. A fundação que vai nascer em Cabo Verde e a Mundu Nôbu, em Portugal, com grande lançamento em Setembro, espelham isso mesmo. Porque é 100% português, mas também 100% cabo-verdiano, estes constituem os marcos que vai deixar “no” mesmo Cabo Verde que o fez de D’Santiago mas, também, na Lisboa que, como o próprio diz, lhe deu muito.
“Queria ter dois marcos que me representassem para que, no momento em que partisse deste plano da vida, sentisse que deixei um testemunho do que é, para mim, estar vivo. Do que é, para mim, ser um cidadão e exercer o meu direito a esta cidadania, e em Lisboa, uma cidade que me deu muito”, explicou à CCA. Quanto à Mundu Nôbu, explicou que já estamos “quase em Setembro, o mês do grande lançamento da Mundu Nôbu. Vamos ter um espetáculo em frente à Praça do Município com vários artistas, como Kriolu e Mayra Andrade, que estão no cartaz. Vai ser um momento de celebração e as nossas portas vão abrir em Alvalade”. Esta associação tem como parceira a fundação americana Brotherwood Sister Sol e vai receber 160 jovens adolescentes, 80 raparigas e 80 rapazes, que durante três anos – podendo estender-se até aos seis anos – vão ser acompanhados 24 horas pelos monitores. Já a fundação que nascerá em Cabo Verde, será desenhada pelos alunos de arquitetura da Universidade Lusíada.
Para já, aguardemos pelo concerto que Dino D’Santiago vai dar no Ageas Cool Jazz, dia 19 de Julho, um concerto menos “sobre o Dino”, e mais “sobre o todo” da banda em si, com muito ritmo aumentado, batuque e Funaná. É primeira vez que o artista prepara um concerto para um festival em específico. E porque é que, afinal, esta “Nova Lisboa” já não é assim tão nova? Foi, exactamente, por esta pergunta que começámos esta conversa com Dino D’Santiago.
Numa entrevista à CCA em Abril, Kalaf Epalanga, ao falar sobre a “Nova Lisboa”, disse o seguinte: “É bastante interessante, porque eu fui um dos autores dessa canção do Dino D’Santiago. Geralmente quando a gente escreve uma coisa, não temos ideia de como é que vai ser interpretada. Longe de imaginarmos que essa canção iria cunhar uma ideia, uma estética, um posicionamento social. De repente, aquelas palavras e a ideia de uma Lisboa renascida couberam nas pessoas. Acho que o próprio Dino defende isso também. Para nós aquilo era uma continuidade. Essa “Nova Lisboa” não é assim tão nova.” Queres comentar esta ideia? Porque é que essa “Nova Lisboa” já não é assim tão nova?
No meu sentir, não é assim tão nova porque nasce dessa aculturação. Trata-se de uma Lisboa que, durante milhares de anos, teve 16 povos que passaram por este território e, desses povos, acabaram por renascer sempre novas culturas, novos hábitos, novos pontos de aculturação. Concordo, por isso, com o que o Kalaf diz. Não é assim tão nova porque se foi constantemente reinventando, tendo rostos novos, e quando pensamos na música, basta ver que já tivemos uma Lisboa do Bana, da Cesária Évora, do Bonga, do Tito Paris, do Dany Silva e da Sara Tavares que, para mim, consiste no ponto de viragem. A Sara Tavares é, para mim, o ponto de transição que nos conecta à nossa raiz tradicional. A meu ver, existe mesmo um antes e depois da Sara Tavares, no que diz respeito a esta Lisboa aculturada, a esta Lisboa misturada como sempre foi, mas traduzida em canção. Sinto que a Sara foi a pessoa que melhor traduziu essa intenção de ver essa Lisboa bonita.
“Já vivi no Porto, no Algarve, em Quarteira, e em Lisboa encontrei, realmente, o centro daquilo que é o meu desafio enquanto artista: beber dessas culturas e fazer delas o meu caminho, no qual me sinto um português a 100% mas, igualmente, um cabo-verdiano a 100%.”
Engraçado focares a Sara Tavares, uma vez que também teve de passar por um período de descoberta para aprofundar mais as suas raízes musicais, de raiz africana, que se calhar não conheceria tão bem no início. Houve uma mudança no percurso dela, passou por um processo de descoberta dessas raízes.
Foi um processo que nos contagiou a todos. Trata-se da coragem de uma pessoa que já estava afirmada no seu estilo mais conectado com música soul e R&B e, de repente, sentiu um chamamento para se conectar com o seu país de origem, Cabo Verde, e entendeu que, afinal, é um país que pertence ao continente africano. Ela foi beber mais de África fazendo parcerias com o Lokua Kanza, gravou um disco com ele no Congo, então foi um grande exemplo para todos nós e, hoje, vês a própria Mayra Andrade a sair de Cabo Verde e a ir ao Gana beber e trazer outros temperos para a música dela.
Há um regressar dos afrodescendentes ao continente africano para se reconectarem na projecção do que é o futuro. Quando chegamos à nossa Europa e desaguamos aqui em Lisboa e olhamos para ela com tanta gente, com tanta diversidade, e pensamos no quão potente isso é em termos de riqueza cultural, não olhar e não traduzir isso em música, sinto que é um desperdício. Decidi não desperdiçar essa oportunidade gigante que é viver cá. Já vivi no Porto, no Algarve, em Quarteira, e em Lisboa encontrei realmente o centro daquilo que é o meu desafio enquanto artista: beber dessas culturas e fazer delas o meu caminho, no qual me sinto um português a 100% mas, igualmente, um cabo-verdiano a 100%.
Mas apesar desta “Nova Lisboa”, achas que ainda faz falta representatividade nas produtoras? Ou seja, quem conheça melhor, de raiz, este tipo de música e não vá só atrás daquilo que acaba por ter mais divulgação?
Sim. Nunca, talvez, na história da música contemporânea, a música africana reverberasse em tantos países como está a acontecer desde há cinco anos para cá, pelo menos. Vês mesmo que a Nigéria toma a linha da frente, torna-se no país que expande mais estes ritmos, trazendo esta modernidade e mudando, de vez, o que víamos como a world music, com a pop nigeriana. Todos os artistas afrodescendentes modernos começaram a olhar para a música pop com uma matriz africana, já não querendo replicar o que se faz nos Estados Unidos e em Inglaterra. Começaram a querer ter a sua própria identidade, os seus próprios ritmos, a serem traduzidos para a cena mais electrónica, mais pop. Mas, no entanto, chegas às nossas grandes produtoras e não tens uma representatividade, porque a Kizomba foi, sempre, muito marginalizada durante muito tempo.
Ou seja, havia quem ouvisse Kizomba às escondidas; algumas pessoas, sem ouvir, diziam logo que não gostavam; outras ouviam no carro aos berros e, ainda outras, aproveitavam o facto da Kizomba ser tão dançante para tirarem as pessoas de casa e dançar. Em toda a Europa e nas Américas há festivais de Kizomba, é só pesquisar e encontras muitos. Escreves festivais de Kizomba e vais encontrar na Rússia, em Miami, no Brasil, em França, na Bélgica, na Suíça, na Polónia, tudo por conta da dança. Já em Portugal, vês que não tens um festival de Kizomba. Isso mostra o nosso preconceito, mas depois metes Calema, Djodje, Soraia Ramos, Neyna, Nelson Freitas, Loony Johnson, Dynamo, a própria Ana Moura com o tema que tem com o Pedro Mafama, a Marisa com o tema que tem com Calema e o Nuno, e vês que o povo grita e dança estas canções. No entanto, o preconceito na indústria é de tal forma, que não tens pessoas que conheçam o género e que o representem nas grandes produtoras.
Seria elegante e benéfico para a nossa indústria se tivéssemos mais pessoas que entendessem o género, que não fossem tão reactivos e que começassem a encontrar estas pessoas: descobrir talentos e, depois, dar o poder de uma máquina, de uma estrutura para que esse talento seja ainda mais ouvido e mais representado na sociedade sem reagirmos, só, a vídeos do YouTube, a visualizações, às redes sociais, em que já só pegas no que o artista já construiu e metes um pouco do teu peso. É bonito que se construa ainda, que se dêem ferramentas a artistas utilizando a máquina que tens para elevar essa cultura: de uma vez por todas, o género que é mais tocado, mais abraçado por todas as culturas que se expressam em língua portuguesa é o género Kizomba.
Admiro muito, por isso, a coragem do Kalaf por ter levado o tópico para o Brasil, por ter feito académicos pensarem sobre o assunto, quererem pesquisar, e o sonho dele de um dia ver nascer um “Museu da Kizomba” que trará as histórias de todos aqueles que vieram antes de nós: de um Eduardo Paím, de um Dom Kikas, de um Grace Évora, Johnny Ramos, Livity, Gil Semedo, Juka, de São Tomé, e Tabanka DJaz. Há tanta gente que veio antes de nós, mas que alegrou as nossas famílias, as nossas histórias. Eram as únicas canções que conseguiam tirar o cimento das mãos enrugadas dos homens que iam para a construção civil, e as mãos enrugadas das mulheres que trabalhavam nas copas dos restaurantes. Isso acontecia, somente, quando chegava aquele momento de dança no qual se podiam conectar. Era o único manifesto de amor que tinham, era graças a essa música. Merece ser celebrada, sim, merece ser homenageada e penso que nós, esta nova geração, já está a abraçar esses lugares. Falo de uma Nenny, que talvez seja a artista mais nova, até a uma Mayra Andrade, que abraçaram estes ritmos e fazem com que seja o nosso manifesto de agradecimento.
Numa entrevista à Timeout, disseste que vais licenciar-te em Jazz e Música Moderna na Universidade Lusíada. Podes falar um pouco mais sobre esta nova etapa e porque é que é tão importante para ti esta formação?
Imagina, sempre amei estudar, sempre tive um fascínio pelo conhecimento. Antes da música queria ser professor de História de Arte, mas é pelo amor que tenho pelo conhecimento, pela história da humanidade, e tento sempre traduzir isso nas minhas canções e viagens. O que escrevo é um retrato fotográfico do que está a acontecer no mundo e ao meu redor. A minha intenção em estudar e de voltar a ser um aluno é, precisamente, porque já tenho tanto mundo, já faço o que as pessoas querem exercer quando estudam — um artista reconhecido que viaje por esse mundo fora para levar a sua música — isso tudo já me calhou a mim. Nunca me aconteceu, no entanto, a parte académica, o envolvimento com o voltar a ser aluno, o conhecimento, ter contacto com professores que me possam acrescentar algo.
Para mim, o momento de transição, determinante, foi quando recebi um caderno com as pautas da orquestra que tocou comigo, em Santa Maria da Feira: a Banda Sinfónica de Jovens de Santa Maria da Feira. Recebi as pautas de todas as canções que trabalhei com eles, entregues pelo maestro Paulo Martins, e só entendi o título. Foi aí que disse para mim mesmo que já tinha isso na minha mente há muito tempo, mas que tinha de passar da mente para a acção. Então, como estou na Lusíada, fui o convidado pelo curso de Arquitetura para ser o cliente VIP. Eles fazem sempre isso, há sempre um cliente para quem, no último ano do curso, fazem um projecto de uma casa ou do que o cliente quiser, mas depois, normalmente, as obras não vão para a frente, fica ali para o circuito académico. Então desafiei-os: sou convidado, mas o desafio é que todos os alunos desenhem a minha fundação Dino D’Santiago, que ainda vai nascer. Eles foram visitar Cabo Verde, o terreno que comprei, e quis lançar a proposta porque tive um problema de saúde e comecei a perceber que, afinal, a vida é mesmo efémera. Pode acontecer-me algo sem estar preparado para deixar o que acho que é um bom legado, a forma como vejo o mundo. Como posso ajudar pessoas como eu, que vieram de ambientes como o meu, a seguirem o seu sonho, mesmo que venham de condições muito vulneráveis.
Felizmente, consegui esse terreno, envolvi-me muito com a faculdade, com aquela paixão, e comecei a beber daquele ambiente académico outra vez, a nutrir a vontade. E qual é a minha surpresa quando noto que têm o curso de Jazz e Música Moderna? Isso já é muita coincidência, estava na hora de me chegar à frente. Foi sair de um concerto de Fafe, e na semana seguinte fui fazer a minha prova de admissão e só perguntei: “Posso ser o Dino D’Santiago? Eles: “Não, tu és o Dino D’Santiago. Não é se podes ser, tu és o Dino D’Santiago.” O aluno podia levar uma banda para acompanhar e perguntei se podia levar a minha. Eles disseram que sim, claro que podia. Expliquei que para o meu som preciso de levar os meus técnicos e tudo mais. Eles responderam: “Nunca ninguém fez isso, mas podes fazer”.
Não tenho de me reduzir a uma condição que não tenho para prestar uma prova, vou no máximo de mim, como qualquer outra pessoa iria. Fui e levei o Batuque e o Funaná, dois ritmos que nunca entraram, desta forma, na academia para prestarem provas. São duas canções que são minhas e há, também, o significado de estar a ver os dois ritmos que foram mais censurados pelo Estado Novo, a ser a música que me leva a ingressar num curso, nos 50 anos do 25 de Abril. Estou na fase final, a fase das palestras e, como 40% da avaliação é o currículo também, sinto que vai ser uma redescoberta minha. Para mim, é muito importante a questão de não ser analfabeto da minha própria arte.
Há muita gente que é autodidacta, está tudo certo e se essas pessoas se sentem bem com isso, fico muito feliz, mas para mim já não é suficiente, principalmente porque lido com muitos músicos que admiro e respeito imenso. Estar a vê-los a falar sobre notas que cantei e não saber dar o nome àquelas notas, agora já me incomoda. A minha sobrinha, a Eva, já está a estudar piano, a Helena está a estudar viola. Elas admiram o tio e quero que o tio saiba falar a linguagem delas quando forem para um Dó Sustenido ou forem para outras notas. Não quero falar de cor, quero entender e amo desenho também, então, quando vir o desenho daquelas notas na pauta, quero saber que a interpretação que foi feita pela minha melodia está correcta.
Já vamos falar das fundações, mas como referiste, atuaste em Santa Maria da Feira com 67 músicos da Banda Sinfónica de Jovens de Santa Maria da Feira. Como foi a experiência da junção destes dois universos musicais e de atuares com estes 67 músicos?
Foi uma experiência incrível. Já toquei com várias orquestras à volta do país, a Orquestra Clássica do Sul, a Orquestra das Beiras, a Orquestra do Norte e a Orquestra Geração, com quem toquei no 25 de Abril em Almada. Aqui, em Santa Maria da Feira, com estes jovens, foi muito bonito porque, para já, foi a maior formação com a qual toquei e depois vi a envolvência deles, que tocavam e cantavam as minhas músicas ao mesmo tempo. Ver aquela envolvência estimulou-me muito a pensar que tenho de ter um disco gravado assim, quero fazer uma tour inteira à volta do mundo só com as grandes orquestras e quero começar por Portugal.
Faltam-me orquestras, como a Orquestra da Gulbenkian, a Metropolitana, mas quero mesmo explorar esse espaço, esse lugar, porque é bonito quando vês a música electrónica a casar assim com o universo clássico e aquilo soar a um encontro que faz todo o sentido. Isso é que me fascina, estar a ouvir aquilo e sentir que faz todo o sentido. Nem consigo chamar de fusão, parece que nasceu para ser assim, são lugares que deviam sempre encontrar-se porque eleva a história, eleva o número de pessoas que estão a abraçar aquelas notas e eleva a experiência do público.
É bonito porque levo o beat e a orquestra reproduz e toca por cima do beat. Mas contei com uma ajuda preciosíssima, a do meu produtor, e a do arranjador, o João Martins, meu irmão já de longa data desde os Expensive Soul e que é um maestro inacreditável e um músico incrível que trabalha muito com o Miguel Araújo e fez os arranjos todos para os vários formatos que fiz com orquestras. Consigo, então, imaginar o Dino, nos últimos momentos da sua vida, só a caminhar assim com orquestras por esse país fora, e levar as pautas que hoje já sei ler para viver a música dessa forma.
“O que escrevo é um retrato fotográfico do que está a acontecer no mundo e ao meu redor.”
Numa entrevista no Maluco Beleza referiste a grande diferença entre o mercado editorial do Brasil e de Portugal. Como, por exemplo, o mercado de livros, no Brasil, é mais vasto e como há traduções de pensadores e filósofos afrodescendentes que não temos cá. Queres falar um pouco mais sobre estas diferenças?
Vou filmar aqui em volta, para teres a noção. [Dino faz uma panorâmica em redor e mostra as suas estantes cheias de livros]. Todos estes livros comprei no Brasil, foram perto de trezentos, porque o país tem uma indústria enorme. Para já, as pessoas leem muito, o ambiente académico é gigantesco e há uma indústria editorial muito grande. Os livros são baratos, qualquer pessoa tem acesso e, depois, há algo que me interessou bastante: a diversidade de autores e autoras afrodescendentes que escrevem sobre o que é ser um afrodescendente, o que é ser um filho com herança do continente africano e como é viver, nos dias de hoje, vestindo esta pele.
É algo que não tinha cá, infelizmente, quase nada, era residual e o que havia, havia dos Estados Unidos, mas muitos deles não estavam traduzidos para português. Já no Brasil, encontrei grande parte dos livros traduzidos para português e, sempre que vou lá, tenho de ir com uma mala vazia para trazer muitos livros. Quero construir a minha biblioteca também, para que os meus filhos, os meus sobrinhos, os meus irmãos e os meus pais possam ter mais contacto com a nossa cultura, mas não da forma como vejo nos nossos países que se expressam na língua portuguesa, que é seguindo um currículo feito por Portugal. Não, é um currículo feito por pessoas africanas que entendem o que é ser africano.
Como curiosidade, numa conversa com Mia Couto, ele dizia assim: “Vocês, aqui, falam muito da Guerra Colonial, nós falamos sobre a Guerra da Libertação e não estamos presos no tempo. Não falamos sobre racismo, falamos sobre o que é ser africano.” É importante entender que existem várias perspectivas, não só a nossa. Nós é que estamos aqui muito embebidos nas questões do racismo. Em Cabo Verde, o pessoal não fala sobre racismo, em Angola, o pessoal não fala sobre racismo. As pessoas falam sobre a vida, sobre o quotidiano, sobre o querer crescer, sobre os sonhos, as pessoas dançam.
É uma herança belíssima demais para ficarmos tão presos a narrativas em que constatamos, realmente, que aqui, neste território, onde estamos, é muito importante falarmos sobre a questão do racismo porque existe o criador do racismo. Estamos na Europa onde temos os grandes exploradores a nível mundial no que diz respeito à colonização. Temos a Inglaterra, temos a Espanha, temos Portugal, temos a França, temos a Holanda, temos a Bélgica. São países que têm uma herança colonial muito dura, carregam muito sangue nas costas e precisam de visitar estes lugares, precisam de curar estes lugares, precisam de se redimir com a história para que esta não se volte a repetir. É importante que isso venha, que isso aconteça. É importante esse pedido de perdão genuíno a estes países e, claro, o reconhecimento dessa mesma importância.
Quando assistimos a estes corpos que chegam a estes países e continuam a sofrer, ainda, com a violência de serem quase humanos de segunda categoria, isso é problemático. Hoje, a grande diferença é que vês pessoas negras em lugares de fala que lhes permite dizer o que acontece. A história já não é contada só por pessoas que não são negras, mas que têm o lugar de fala e, por isso, é que agora as pessoas dizem: “Mas agora tudo é racismo.” Não é, “agora tudo é racismo”, não é, “agora tudo é preconceito.” O que acontece é que já não são, só, as mesmas pessoas a falarem sobre estas questões. Neste momento, a pessoa que é agredida pode testemunhar a agressão por ela própria, já não é na segunda pessoa. Tal nunca foi tão possível na história, como o é agora, e isso choca-nos. Por isso é que vês o mundo inteiro a parar, depois de ver o asfixiamento do George Floyd ali ao vivo. Por ser nos Estados Unidos, torna-se tão pop que o mundo todo grita injustiça, “Black Lives Matter”, mas meses depois o Bruno Candé morre com seis tiros, em plena luz do dia, disparados por um civil, e não passa dos nossos quintais. Estás a ver?
“Para mim, é muito importante a questão de não ser analfabeto da minha própria arte.”
O que estou a entender pelo explicas é que, talvez, agora haja essa perplexidade e as pessoas digam, “ah, mas agora é tudo racismo”, porque pela primeira vez na história estamos a ter o impacto da perspectiva do outro lado.
É isso mesmo. Por isso, o que o Mia Couto diz é lindo, para nós é a Guerra da Libertação. É muito importante porque, quando falamos em Guerra Colonial, parece que há um lado certo, mas o colonizador nunca esteve do lado certo. Ele esteve do lado da invasão, do furto, da violação dos direitos humanos. O colonizador nunca foi fazer algo bom.
A história que deve ser enaltecida é a da pessoa libertada, ou seja, a pessoa que lutou pela sua própria liberdade como nós lutámos pela nossa liberdade no 25 de Abril. Esses heróis é que têm de ser lembrados, não é o opressor ser mais enaltecido do que o oprimido. O que aconteceu com os nossos livros de história, à volta da Europa, é que, realmente, com os monumentos houve muito enaltecimento de quem veio trazer a discórdia, o maltrato, trazer muita coisa que não nos foi revelada e, hoje, é-nos revelada porque há muita gente formada.
O Brasil tem sido muito responsável por isso e os Estados Unidos também. São países que estão a trazer o outro lado da história, mas com filósofos, professores, académicos, alunos que, depois, desenvolvem inúmeras teses sobre a verdadeira história do continente africano, onde não tens só pessoas escravizadas. Tens grandes imperadores a nível mundial, tens grandes matemáticos, tens grandes cientistas e, essas histórias, nunca nos chegaram dessa forma.
Como tem evoluído a tua relação com o Brasil e que ensinamentos o Brasil te tem dado?
O Brasil tem-me dado o maior ensinamento de todos que é amar a pele que visto. Nunca gostei tanto de mim como a partir do momento em que comecei a ter contacto com o Brasil, com o candomblé. Tirei, finalmente, o preconceito que trazia fruto de um crescimento muito rígido dentro da Igreja Católica e que me bloqueava a percepção, a interacção com outras religiões. Para mim, foi importante, foi a primeira vez que tive contacto com uma religião afrodescendente. Quanto às coisas que via estereotipadas em filmes, como a questão do vudu, a magia negra, ou seja, todo o lado castrador que vinha do outro lado, percebi que não era assim.
Cheguei ali e vi que eram lugares de luz, e os orixás têm defeitos, ou seja, são mais humanizados. Há tanta humanização que fez com que percebesse que não tenho de ser impecável. Uma pessoa impecável deixa de ser humana, porque erras e falhas para aprender, crescer e evoluir. Esse espaço foi-me dado pelas histórias que me foram contadas e que não conhecia: quantas viagens foram feitas, na altura do tráfico negreiro, quantas pessoas foram realmente privadas da sua liberdade. São coisas das quais não tinha noção porque cresci de outra forma, cresci dentro de uma perspectiva muito eurocêntrica. O facto de atravessar o oceano para ter contacto com África, mais do que eu já tenho deste lado, foi impressionante.
Com isso, aproximei-me muito dos Estados Unidos, também, mas o Brasil tem sido muito regenerador. O contacto com os artistas que lá conheci, ver tantos corpos com os quais me identifico e o não me sentir um alien, o Brasil tem-me dado isso. O contacto com Salvador da Bahia está a ser muito transformador. O mesmo que senti em Cabo Verde, que me dá a identidade de Dino D’Santiago, estou a sentir agora com o Brasil. Sinto que há um novo eu a renascer e aqueles preconceitos todos, do Brasil ser perigoso, ser isto e aquilo, desmistifiquei-os a todos. Desde Salvador ao Rio de Janeiro, desde Belo Horizonte a São Paulo, senti-me em casa, sempre. Senti-me em paz. É verdade que há muitos contrastes sociais, muitos perigos, mas não são muito diferentes daqueles que um miúdo da Cova da Moura ou da Damaia enfrenta. Trata-se do facto do preconceito e do crime terem sempre a mesma cor, quando tens pessoas a decidirem furtar milhões aos cofres do Estado e estão em casa, ilesas, a responderem pelos seus crimes.
“O Brasil tem-me dado o maior ensinamento de todos que é amar a pele que visto.”
No início da entrevista falámos da Sara Tavares, como ela teve de fazer um percurso para reencontrar as suas raízes de Cabo Verde, reencontrar as suas raízes musicais. Sentes que também tiveste de passar por esse percurso?
Fiz questão de passar por todo este percurso porque não conseguia entender o porquê do meu pai querer reconstruir a sua casa — já tinha uma, mas no mesmo lugar edificou uma nova casa — e não conseguia perceber o porquê: “Mas sais de Cabo Verde e, agora, queres viver a tua reforma em Cabo Verde?” Quis entender isso. Fiz a viagem com o meu pai, em 2010, porque na minha infância não foi uma viagem muito boa. O lugar é um vale, não tinha luz nem água potável. Em Portugal, também não tínhamos luz nem água potável, mas a determinada altura, durante a minha infância, tivemos luz. Só tive água potável em casa quando já tinha 15 anos. E uma criança com 15 anos já vive muita coisa que não esquece mais.
Precisei de visitar esse lugar para entender o porquê de ele querer voltar. Quando regresso, já um jovem de 22 anos, apercebo-me que, realmente, era livre ali. Andava, chegava a um café ou supermercado, e ninguém ia atrás de mim. Entrava dentro de uma loja de roupa e ninguém ia atrás de mim, para ver se ia levar alguma coisa. Micro-agressões que ia aceitando na minha vida porque era normal. Ali, não, nada disso acontecia.
Comecei a pensar que, afinal, não vivi, sobrevivi. Afinal, viver é isto, é teres o direito de circular sem o teu corpo ser uma ameaça, o teu corpo não ser sinónimo de furto, não ser sinónimo de alguém que está ali para provocar alguma coisa que não lhe pertence. Isso mudou, radicalmente, a minha forma de olhar para a vida. Daí ter-me convertido mesmo a Dino D’Santiago e de querer aprofundar mais as minhas raízes. Era um corpo a vestir uma pele negra, mas numa mente totalmente eurocêntrica e caucasiana que não amava o que era. Não aprendi a amar o que era. Não havia representatividade quer na televisão, quer na publicidade, quer na indústria da música ou do cinema que me permitisse amar, a não ser o sonho americano.
O que podemos esperar para o concerto no Ageas Cool Jazz?
Para o Ageas Cool Jazz, posso dizer-te que preparei um concerto especialmente para o festival. É a primeira vez que o faço, preparar um concerto, em especial, para aquele festival. Preparo um concerto para a tour, mas nunca para um festival em específico. Para este, preparei porque são 20 anos do festival que mais visitei e fui mais vezes, para ver artistas que admiro como o Kanye West, Erykah Badu, Sharon Jones, Charles Bradley, para além de outros concertos que também vi.
Senti que merecia esse meu lugar de observador e aumentei, então, os BPM das músicas que vou levar, vou ter muito batuque e funaná, precisamente para dar este contraste percussivo ao espectáculo. Talvez pegue nesse modelo e faça o resto da tour assim, porque sinto que sou mais feliz em palco, há mais momentos de improvisação, os músicos podem improvisar mais, também têm mais tempo e sinto que vai ser menos sobre o Dino, em si, mas mais sobre nós, a banda. O quão felizes e realizados nos sentimos, porque todos os meus músicos têm formação jazzística e, por isso, é como que estejamos em casa. É mais por haver uma unanimidade, nessa felicidade em estarmos todos, agora, não como público, mas como músicos activos em cima do palco. Isso faz toda a diferença.
Em Maio foi lançada a ONG Mundu Nôbu, queres falar um pouco sobre a associação e os seus objetivos?
A Mundu Nôbu é um projecto que nasceu de um encontro meu com a Liliana Valpaços, a vice-presidente da associação, que trabalhava anteriormente na FLAD (Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento). Quando lhe apresentei o projecto que estava a desenvolver no Estabelecimento Prisional do Linhó, que se chama “De Dentro Para Fora”, ela identificou-se muito com o projecto e fomos falando, mais vezes, sobre os meus sonhos, as minhas intenções, e tinha o sonho de criar a fundação. Já a criei, já a fundei em Cabo Verde, mas também queria deixar esse legado em Portugal porque são esses os dois territórios que também me definem enquanto ser.
Queria ter dois marcos que me representassem para que, no momento em que partisse deste plano da vida, sentisse que deixei um testemunho do que é, para mim, estar vivo. Do que é, para mim, ser um cidadão e exercer o meu direito a esta cidadania, e em Lisboa, uma cidade que me deu muito. Decidi retribuir com a Mundu Nôbu e fiz uma viagem longa, para os Estados Unidos, juntamente com a Liliana. Fomos conhecer espaços e ONG que trabalhavam, já, nesta área social com jovens adolescentes, a área que queria para a Mundu Nôbu. Estivemos em Nova Iorque, Chicago e Boston, e o projeto com que mais nos identificámos foi o da Brotherwood Sister Sol, que já existe há mais de 30 anos no Harlem, financiado pela Oprah e já muito distinguido.
Tirou muitos jovens da rua e faz com que a gravidez precoce reduzisse em 95% naquela área de Harlem, porque as jovens adolescentes começavam a ter perspectivas de vida, uma vez que é uma associação que trabalha muito a questão do sonho. Conseguimos, então, trazer para Portugal este projecto e fazer essa parceria com a Brotherwood Sister Sol. Eles formaram os nossos monitores e agora vamos receber 160 jovens adolescentes, 80 raparigas e 80 rapazes, que durante três anos — pode-se estender até aos seis anos — vão ser acompanhados 24 horas pelos nossos monitores, que vão ser quatro, dois rapazes e duas raparigas.
Fomos, então, para os mesmos locais, os bairros sociais, numa parceria com a Gebalis, e neste caso com a Câmara Municipal de Lisboa, o grande investidor no projeto que, juntamente com a Gebalis, identificou os bairros da Grande Lisboa onde poderíamos encontrar esses jovens: conhecemos, então, todas as associações e estamos, agora, num contacto mais directo com todas. Já estamos quase em Setembro, o mês do grande lançamento da Mundu Nôbu. Vamos ter um espetáculo em frente à Praça do Município com vários artistas, como Kriolu e Mayra Andrade, que estão no cartaz. Vai ser um momento de celebração e as nossas portas vão abrir em Alvalade.
Conseguimos um espaço lindíssimo e estamos a contar com o apoio de muita gente que se tem disponibilizado, voluntariamente e com os seus recursos, para que a Mundu Nôbu, realmente, seja muito bem recebida. Temos de agradecer muito, também, o envolvimento da Presidência da República, no nome do nosso Presidente, e à Câmara Municipal de Lisboa por acreditar no projecto.