Entrevista. Eduardo Maragoto: “Todo o português é galego”

por David Lloberas Lafuente,    17 Agosto, 2021
Entrevista. Eduardo Maragoto: “Todo o português é galego”
Eduardo Maragot / DR
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Esta entrevista está escrita em Galego Reintegrado, ortografia Galega Moderna confluente com o Português no mundo.

Este ano a Associaçom Galega da Língua (AGAL), principal entidade reintegracionista, fez 40 anos. Um bom momento para chamar a atenção sobre a emergência linguística que atualmente vive o galego, mas também para conhecer melhor as oportunidades que representa para a sua sobrevivência a proposta de confluência ortográfica e lexical do galego para com os restantes dialetos portugueses.

Para introduzir esta entrevista, pessoalmente, é-me inevitável mencionar a questão que há uns anos constituiu o leitmotiv de umas férias de verão em família passadas entre o norte de Portugal e a Galiza: Portugueses e galegos ainda podem manter uma conversa em profundidade falando nos seus respetivos dialetos do galaico-português?

Por outras palavras, português e galego ainda são o mesmo idioma. No que diz respeito à origem comum das duas falas, o mapa da expansão longitudinal das línguas românicas na Península Ibérica refletiu uma resposta inequívoca, sim. Porém, a perceção de uma falta de consciência de unidade linguística numa margem e noutra do Minho criou-nos dúvidas sobre essa realidade. Não foi até vermos um grupo de escuteiros portugueses a falar tranquilamente com uma velhinha galega no Parque da Alameda, em Santiago de Compostela, que todas as nossas dúvidas se dissiparam rapidamente.

Eduardo Maragoto é presidente da AGAL desde 2015 e também é professor de línguas na Escola de Idiomas de Santiago de Compostela. Depois de o ter entrevistado, há uma coisa que fica clara: “O galego é mais um dos dialetos do que no mundo se conhece por português, e em consequência deveria escrever-se com a ortografia portuguesa, o que é uma oportunidade para os galegos estarmos plenamente integrados na Lusofonia, isso é, para nos comunicarmos com 250 milhões de pessoas do mundo inteiro”. Por outro lado, alerta para o quão semelhantes são — apesar da diversidade de contextos — os problemas que o século XXI coloca às diferentes línguas menorizadas do nosso âmbito regional, que é o da Europa dos estados.

Atualmente, o galego tem oficializada uma ortografia, regulada pela Real Academia Galega (RAG) e inspirada na ortografia castelhana. Desde as suas origens, o galeguismo tem tido o intuito de abandonar a esfera de influência castelhana, para mergulhar na esfera linguística que lhe é natural, a galaico-portuguesa. Esta intenção materializou-se há 40 anos atrás com o movimento Reintegracionista, pela mão da Associaçom Galega da Língua (AGAL), que trabalha para a normalização do galego e também para a sua plena integração na Lusofonia, comunidade formada por 250 milhões de falantes.

Este ano a AGAL faz 40 anos. O que mudou na sociedade galega neste tempo e o que está para vir?
Por um lado, com o fim da ditadura, uma mudança positiva para a língua foi a consolidação da presença do galego a nível institucional, a sua entrada no ensino (atualmente um terço das horas) e a criação de uma rádio e televisão públicas galegas. Neste sentido também contribuiu a aprovação de certas leis como a de Normalização Linguística ou a de Toponímia. Abriu-se a porta em muitos âmbitos em que a nossa língua tinha sido totalmente marginalizada. Com a passagem dos anos, fomos vendo que esta consolidação não tinha sido assim tão importante para a vitalidade da língua, que ela continuava a esmorecer no seu uso social. Mas não quero imaginar onde estaríamos já se o galego não tivesse visto este avanço chegar.

Por outro lado, a mudança que teve repercussões mais negativas para a vitalidade social da língua foi a mudança profunda do tecido socioeconómico do país. O mundo rural agrário que no início do século XX estruturava a nossa sociedade, encontra-se praticamente desaparecido nos dias de hoje. Continua a haver pequenos núcleos de população disseminados pelo território, mas praticamente sem gente nova, que se deslocou maciçamente para as cidades. O galego não resistiu a esse processo, claro. Em pouco tempo o castelhano, que só tinha sido a língua das elites, tornou-se a língua hegemónica nas cidades e vilas, mas nos dias de hoje também está a avançar imparavelmente nas aldeias rurais.

Qual é o estado atual do galego na Galiza? No que diz respeito à diglossia, a ruralização, castelhanização…
Está a cair muito o uso nas ruas. Tanto que a diglossia (segundo a qual as pessoas falavam o galego no âmbito doméstico e o castelhano nos âmbitos formais) deixou de ter praticamente valor na análise da situação sociolinguística galega. Em só três décadas, passamos de 80% para 50% de falantes. Ainda é um problema maior na faixa etária abaixo de dezasseis anos, já que essa percentagem se reduz a menos de 20%. Que importância tem que haja pessoas que mudam de língua para o castelhano em contextos formais se a esmagadora maioria dos nossos jovens está completamente instalada no castelhano? O futuro é preocupante para a língua.

O galego, que para nós é o mesmo que dizer o português da Galiza, nem sequer se mantém forte como língua familiar no mundo rural. No mundo urbano praticamente não se ouve nas ruas. Porém, em contrapartida, tem uma rede política e cultural de apoio muito coesa, muito forte, sendo usado por exemplo de forma quase exclusiva em certas associações e instituições, de um modo um bocadinho ritual, mas importante.

Considera a Globalização uma ameaça para a sobrevivência do galego?
Não é um segredo que a facilitação das comunicações a nível mundial está a ter um grande impacto nas línguas menorizadas; bem seja para as comunicações relacionadas com a circulação de informação impulsada pela net, bem seja pelas comunicações físicas e a consequente popularização do turismo como nova forma de consumo. O contacto com outras culturas e línguas tornou-se praticamente diário, e aqui sempre acaba por ganhar o castelhano ou até o inglês. Muitos referentes mediáticos das pessoas também passaram a estar fora da sociedade galega: estando dentro do país, praticamente acabamos por estar sempre fora. Nos últimos anos houve mais pessoas que repararam na importância de dar ao galego uma dimensão internacional, que por enquanto não tem. Portanto, não me atreveria a dizer que esta mudança seja completamente negativa para a língua.

Acha que também pode representar uma oportunidade?
A chegada da Internet permitiu termos uma interação muito mais fluida com outros territórios lusófonos, onde o português (o galego internacional) não está menorizado. É por isso que o Reintegracionismo representa uma oportunidade tão grande para o galego, que de maneira natural e lógica pode passar a formar parte da comunidade de 250 milhões de falantes, que é a Lusofonia, e não ficar restrita num universo de 3 milhões. Além do mais, a popularização das redes sociais não só nos liga com o exterior, como também com outras partes da Galiza. A facilidade de criar conteúdo na net pode ser muito positiva para a produção audiovisual e musical local; por exemplo, o facto de músicos ou cineastas conseguirem publicar o trabalho deles em galego sem necessidade de serem apadrinhados por médios de âmbito estatal.

O que é que se pode fazer como sociedade para reverter o atual declínio no uso social do galego?
O que eu expliquei na resposta anterior não nos deve levar a pensar que as pessoas não valorizam o seu património linguístico. Valorizam e gostariam de poder protegê-lo, mas na atualidade isso tornou-se difícil porque o galego tornou-se um elemento prescindível em termos económicos e laborais, e infelizmente só se mantém pelos afetos. E nós não podemos pedir ao povo galego que faça o esforço de preservar a língua só por afeto. A língua tem que ser útil à sociedade. Eis a razão porque o Reintegracionismo insiste há quarenta anos que devemos torná-lo apto para a comunicação com os outros países de língua portuguesa. Prescindível dentro do Estado Espanhol e sem utilidade fora, o galego tem pouco futuro.

O que é o Reintegracionismo?
O reintegracionismo é um movimento civil de normalização linguística -articulado a partir dos 70 e que tem na AGAL a associação mais antiga —, que entende que todo o português é galego, e que por tanto, o galego deveria escrever-se com a ortografia do português moderno, algo fundamental para a sua sobrevivência. Para isso tem umas normas publicadas (Ortografia Galega Moderna Confluente com o Português no Mundo, 2017) que orientam as pessoas para adotarem a ortografia portuguesa sem necessidade de renunciar aos particularismos galegos. Mas o movimento não só está restrito à ortografia, também nos focamos em utilizar um léxico integrado no resto da Lusofonia, principalmente no que diz respeito aos neologismos. Por exemplo, agora com a pandemia, entre galegofalantes, houve a dicotomia entre usar palavras de raíz portuguesa ou castelhana para nos referirmos a surto ou máscara.

Quais são os referentes intelectuais deste movimento de normalização linguística?
Quanto aos nossos referentes intelectuais, há muitos e não quero esquecer-me de nenhum, assim que vou reivindicar veementemente a figura de Carvalho Calero (1910-1990), a quem se dedicou no ano passado o Dia das Letras galegas depois de muitos anos castigado pela sua ligação ao Reintegracionismo. Carvalho foi um dos fundadores do Partido Galeguista em 1932, junto com Castelao e Bóveda. A sua figura foi transcendental na política galega do século XX, e posso afirmar que é o filólogo galego mais importante de todos os tempos. Externamente também foi muito importante a figura de filólogos de enorme prestígio de outros lados da Península Ibérica: Joan Corominas, da Catalunha; e Manuel Rodrigues Lapa, de Portugal.

Quais estão a ser as tarefas da AGAL na normalização linguística a partir do Reintegracionismo?
Quanto à AGAL, nós pensamos que a difusão da nossa posição é um contributo importante para corrigir este declínio do galego, e há anos que nesse sentido editam-se livros na Através Editora, fazem-se vídeos, temos uma larga oferta formativa de cursos em linha e presenciais, participamos do Dicionário Estraviz, e gerimos o Portal Galego da Língua (pgl.gal). Ultimamente criou-se um consultório linguístico em twitter (@emgalego). Nós não queremos impor o Reintegracionismo a ninguém, só queremos que a nossa solução também seja tida em conta, que esteja em cima da mesa. Há tempo que estamos a tentar estabelecer pontes com todos os setores envolvidos neste debate. Tenho a certeza de que cedo ou tarde esta nossa política dialogante vai dar os seus frutos.

Qual é a vossa relação com a RAG e a sua ortografia convergente com o castelhano?
Na atualidade temos relações cordiais. A RAG defende posições contrárias às nossas em relação ao standard que seria preciso utilizar. Nem que seja só por esse motivo, nós estamos disponíveis para conversar com eles as vezes que for preciso, da mesma forma que tem vindo a ser nos últimos anos. Sempre prontos para contrapor as nossas visões com eles as vezes que for preciso.

Na atualidade, defendem a coabitação entre ambas normas, a da RAG e a da AGAL. Porque não propõem adotar unicamente a Ortografia Galega Moderna Confluente com o Português no Mundo (AGAL), ou diretamente o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)?
Como reintegracionistas, nós faríamos isso sem problema, mas acontece que nem toda a gente pensa dessa forma. Se não for com o acordo de todos os agentes, de toda a sociedade, vai ser difícil aplicar uma proposta estável, seja qual for. É por isso que nos últimos anos temos defendido uma espécie de binormativismo como o que existe na Noruega. Quer dizer, estamos abertos a um convívio tolerante entre as duas ortografias (a castellana e a portuguesa) para aproveitar o que de melhor têm ambas.

Em que consistiria esta proposta de binormativismo ortográfico?
É uma proposta de política linguística que tem em conta que na Galiza há dois modelos de codificação para a escrita do galego, isto é, duas normativas. Pretende ter em conta ambas, dando-lhes algum estatuto legal para lhes tirar o maior proveito possível a cada uma delas, e mesmo pondo-as a colaborar em prol de um objetivo comum, que é o da nossa língua ficar mais forte. No final seriam os falantes a decidir qual norma é mais útil e prática para eles, não as academias.

Tradicionalmente as relações entre as duas nações luso-falantes da Península Ibérica foram mais estreitas. Na atualidade acha que há desconhecimento da realidade linguística galega entre os vossos vizinhos do sul?
Socialmente a relação foi sempre estreita, apesar de entre elas se interpor uma das fronteiras mais antigas da Europa. Linguísticamente, até ao século passado, galegos e portugueses que trabalhavam juntos usavam normalmente as suas variedades linguísticas de forma muito natural. E sim, atualmente há bastante desconhecimento da nossa realidade, mas eu não me sinto incompreendido. Ainda é muito forte o peso das divisões político-administrativas na perceção que as pessoas têm sobre as línguas. Aliás, é bastante comum que às pessoas que moram em estados monolíngues custe a entender a existência de outras línguas nacionais além da estatal, e ainda a possibilidade que haja territórios bilingues.

Como avaliam os novos projetos de cooperação transnacional? Produções conjuntas da RTP e a TVG, a ligação ferroviária entre o Porto e Vigo (o comboio Celta) e o compromisso de potenciá-la, a colaboração entre Galiza e o Norte de Portugal enquadradas na eurorregião… ou até a recém vontade do Liceo da Corunha querer integrar-se na Liga Portuguesa de hóquei patins!
São fundamentais. À medida que avançam, avança também a ideia da unidade linguística e cultural. Esses projetos derrubam mais fronteiras que 100 discursos. Depois da anterior crise económica, já não somos só nós quem vê potencialidades nisto, as elites dirigentes galegas também repararam na oportunidade para o desenvolvimento que representam estes projetos de cooperação transnacional, sem estar sempre a olhar só para o centro do Estado espanhol.

Qual gostaria que fosse situação do galego a médio prazo?
Por um lado, o galego não pode continuar resignado a ser uma língua prescindível na Galiza. Deve ser preparado para ser uma língua de comunicação com outras sociedades, principalmente Portugal e o Brasil, de maneira a poder ser interessante para a sociedade galega e não apenas para o galeguismo. Esta medida rebaixaria muito a pressão sobre as pessoas galego-falantes, pois a utilidade da língua não seria posta em questão a cada passo.

Tampouco a correção seria constantemente avaliada criticamente, como o está a ser na atualidade, em que mesmo entre galego-falantes basta usar um termo diferente ao castelhano, para que pareça que o fazemos para incomodar o nosso interlocutor. As pessoas entenderiam mais facilmente que o galego tem as suas palavras, úteis para comunicar entre nós mas também para comunicar com o resto do nosso espaço linguístico.

Por outro lado, uma vez que a transmissão intergeracional não está a funcionar na maioria dos núcleos urbanos, devem ser garantidos espaços onde as crianças que têm como língua familiar o galego, possam interagir e brincar na língua familiar com normalidade. E sobretudo que os que não têm o galego como língua materna, consigam aprender a língua do país, o ensino é fundamental para a sua sobrevivência. Atualmente só acaba por haver uma presença robusta da língua nas Escolas Semente*, e é importante que essa realidade consiga espalhar-se para o resto de estabelecimentos de ensino. As crianças têm direito a crescer sem que os seus usos linguísticos sejam postos em questão nem sejam obrigadas a abandonar a sua língua.

* Modelo de imersão linguística pelo qual o galego-português é a língua veicular e ambiental das escolas que o praticam. Há 5 escolas na Galiza, concentradas nos grandes núcleos urbanos: Lugo, Vigo, Santiago, Corunha e Ferrol.

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