Entrevista. Fatspoon: “A música portuguesa é paradoxal pois muitos a explicam mas poucos a compreendem”
A média de idades é de 25 anos, mas os oito membros do grupo encontram-se entre os 20 e os 30. Nascidos e criados no Porto, assumem que se conheceram de uma “forma paralela” pois a “relação da secção rítmica” começou numa outra banda, os Oh Honey. Todavia, a essência musical coletiva também se desenvolveu a partir das amizades travadas nas instituições de Ensino Superior que frequentaram, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo: foram/estão a ser realizados percursos académicos em áreas distintas como a Engenharia, o Design, a Produção Musical e a Medicina. Não escondem que “bebem da influência” de bandas e artistas como Snark Puppy, Vulgpeck, Electro Deluxe, John Schofield, James Brown, Stevie Wonder, Groove Quartet e Orelha Negra, mas o objetivo principal dos Fatspoon prende-se com o facto de ambicionarem “manter a originalidade” e explorarem a sua identidade própria. Em entrevista à Comunidade Cultura e Arte [CCA], a poucos dias do lançamento oficial do disco, Gonçalo Palmas, João Azeredo, João Hierro, Miguel Pinto e Pedro Nadais dão a conhecer a linha de pensamento da banda que “não sabe tocar jazz na sua forma tradicional”.
Como é que despertaram individual e coletivamente para o mundo da música?
De forma muito natural: o interesse pela música surgiu-nos de uma maneira espontânea. Todos estivemos envolvidos em bandas de rock, jazz e funk antes de virmos desaguar nos Fatspoon. Alguns dos nossos membros já participaram em bandas como Marta Ren & The Groovelvets, Fugly, Jesus the Snake e The Lazy Faithful. Criámos a banda sem grandes compromissos e expectativas com o azimute inicial de fazer música que nos realizasse. Hoje, mantemos essa mentalidade, embora de forma mais pensada.
Quais são as maiores dificuldades com as quais se têm deparado naquilo que diz respeito à formação do vosso grupo e ao crescimento do mesmo?
Temos feito um esforço acrescido para fazer chegar as nossas músicas ao público, sobretudo devido ao cancelamento de concertos, consequência – claro – da pandemia. A conciliação de horários para ensaiar tem sido algo difícil, mas temo-la ultrapassado, apesar do número de membros que compõe a banda e das diferentes ocupações que cada um tem para além da música. No entanto, tem sido desafiante e simultaneamente compensador, combater estas adversidades. Um exemplo deste esforço tem sido a orquestração de um grupo ainda maior, em particular um conjunto de sopros que planeamos ainda juntar.
O nome do grupo remete-nos para uma tradução literal: colher gorda. Escolheram essa designação por pretenderem oferecer aos ouvintes uma boa colherada de jazz fusão?
A tradução literal é de facto “colher gorda” e, em jeito de metáfora, remete para o cozinhado de influências, ideias e criações que pretendemos preparar. A verdade é que “ainda temos de comer muita sopinha” para ir ao encontro das nossas expectativas. Mas fome não nos falta!
Como é que decidiram combinar elementos do funk, do jazz, da dance music, do rock e do hip-hop nas vossas composições? É possível fazê-lo harmoniosamente?
O consumo coletivo e individual de música dentro da banda é bastante diverso, embora preso à mesma âncora. No início, com menos membros, as composições centravam-se em géneros como o funk, o rock e a fusão. A inclusão de novos músicos na banda, tal como a experiência acumulada, tem contribuído para apurar e alargar a nossa sonoridade. Gostamos de experimentar diferentes ambientes e fazemos por melhorar a nossa coesão colectiva, que é sustentada por uma interpretação comum de cada tema.
Na pequena descrição disponível no vosso Facebook, é possível ler “Desejamos servir-vos música instrumental nutritiva”. Tal como, através da roda dos alimentos, aprendemos que o segredo para um corpo são é uma alimentação variada, a finalidade da vossa obra é servir um jazz fusão equilibrado e nutritivo a quem vos ouve?
A variedade musical que pretendemos oferecer ao público não surgiu como objetivo pensado e consciente, mas sim como fruto daquilo que cada um de nós influiu na banda. Assim, o resultado final acaba por ser um produto causa sui que se encaixa numa larga gama de géneros musicais.
Existem alguns álbuns associados incontornavelmente ao panorama jazz português. Por exemplo, Fábula de Maria João e Mário Laginha, Motion de Bernardo Sassetti Trio ou You Taste Like a Song de Júlio Resende. Lançaram o vosso primeiro álbum de estúdio, Mushgrooves. O que podem acrescentar a um legado que tem vindo a ser construído desde a década de 1920?
O nosso disco já existe em formato físico e o concerto de apresentação será no dia 16 de Outubro, no Mr. Beans, no Porto. Estamos, neste momento, a preparar o lançamento online das faixas do disco e, além disso, a trabalhar na gravação e lançamento de duas versões ao vivo. Gostamos de fazer música com várias camadas e detalhes que a mantenham interessante, mesmo após dezenas de reproduções. Ao mesmo tempo, tentamos que a música seja facilmente cantável e que estimule o aparelho motor dos ouvinte. Nunca renegando o passado vanguardista deste género musical, ambicionamos atingir uma sonoridade fresca e atual, fundamentalmente baseada no groove [esta expressão é habitualmente utilizada para designar o encaixe e a combinação satisfatórios dos sons numa composição musical], com uma roupagem moderna.
Mushgrooves trata-se de uma combinação entre as propriedades alucinogéneas de certos cogumelos e a mudança do padrão dos ritmos que agregam na vossa música? Como se, através deste álbum, ambicionassem transportar os ouvintes para uma viagem que alterará, mais do que as suas perceções sensoriais, a forma através da qual encaram o jazz?
Mushgrooves é uma metáfora, que construímos à volta de diferentes pilares. Com esta música, homónima do nosso disco, queremos transmitir um mood agradável e recreativo, que poderia ser conferido por um cogumelo exótico mas, neste caso, é servido pela nossa música. Como dizia o grande Jimi Hendrix, music is a safe kind of high. A mudança de padrões rítmicos e texturais é uma das imagens de marca da banda, que exploramos não só nesta música, como nas restantes. Gostamos de escrever música com bastante variação, com um carácter progressivo e que se assemelhe a uma viagem com um princípio, meio e fim repletos de surpresas. Não pretendemos embarcar sozinhos nessa viagem e a nossa maior motivação é levar os nossos ouvintes a bordo connosco. Queremos surpreendê-los e acreditamos que existem poucas sensações melhores e mais verdadeiras do que desfrutar de uma música pela primeira vez!
Contaram com a colaboração de outros artistas neste álbum. Acreditam que este molde de criação é viável em Portugal e, acima de tudo, aquele que almejam seguir futuramente?
O concerto de estreia, há dois anos, contou com quatro membros, mas atualmente somos oito. Portanto, pode dizer-se que mais do que uma banda, somos um coletivo. Todos sabemos que parar é morrer. Ou seja, apesar das ocupações que cada membro tem além da música, e estando alguns dos membros a viver no estrangeiro neste momento, a banda não pode parar. Além disso, o facto de sermos muitos salvaguarda o seu constante desenvolvimento. Mais do que a ambição pessoal, regemo-nos pela vontade comum de criar música. A verdade é que, hoje em dia, temos muitas ferramentas a nosso favor. Graças às tecnologias de comunicação conseguimos sempre manter o contacto e organização à distância. A isto acresce o facto de, para além de colegas de banda, sermos grandes amigos.
Que estratégias têm de ser implementadas para conjugar o trabalho, os métodos de trabalho e as diversas preferências de várias pessoas e, por meio dessa heterogeneidade, obter um produto final homogéneo?
Acreditamos que o mais importante é levar a nossa música muito a sério, colocar dedicação e rigor em todos os momentos que fazer música implica.
Quando compomos, geralmente, a nossa estratégia passa por criar uma base num formato mais reduzido, com menos elementos. A primeira semente é lançada por um dos membros da banda, e os restantes vão nutrindo o tema, sem esquecer a sua identidade original, para que ele cresça da forma mais natural possível. Criar uma sonoridade própria é um objetivo muito presente para nós. É importante e instintivo que cada membro dos Fatspoon tenha os seus momentos de improvisação para que realmente se sinta o cunho pessoal de cada um. Ainda estamos para descobrir aquilo que o futuro nos reserva, pois acabámos de lançar o nosso primeiro disco, mas estamos focados no aprimoramento da nossa sonoridade.
Das sete músicas que fazem parte do álbum, já disponibilizaram online Mushgrooves, Scone Fields, Biscuits e Disco Sheet. Entre a dance music e a incursão pelo estilo do guitarrista John Scofield, é possível descortinar a vossa identidade musical. Existe alguma música com a qual tenham desenvolvido uma espécie de relação umbilical?
Tal como os pais amam os filhos de igual forma, consideramos que temos uma relação umbilical com todos os nossos temas. Cada música tem a sua personalidade e estilo distinto. Recentemente, fizemos uma gravação live session [na tradução literal, sessão ao vivo; um modelo que tem vindo a ser adotado pelos artistas, nas redes sociais, para divulgar, muitas das vezes, novas versões das músicas originais, com a integração de arranjos e instrumentos distintos] do primeiro tema do nosso disco, que alcançou as expectativas da sonoridade que pretendemos transmitir. Somos uma banda que vive de um som orgânico e, desta forma, sentimo-nos mais confortáveis a tocar em simultâneo, emulando o ambiente de concerto.
Estão a começar a trilhar o vosso caminho, contudo, já tiveram oportunidade de atuar em alguns eventos. Por exemplo, na Fábrica Nortada, no Selina Hotel e até no Sete Flores na Galiza. Algum concerto marcou-vos de modo particular?
O concerto no Sete Flores foi a nossa estreia internacional enquanto Fatspoon e, desde aí, tivemos a oportunidade de voltar a atuar na Galiza, no Festival de Jazz de Lugo e em Vigo. O concerto no Selina foi o primeiro com o nosso percussionista. Na Nortada sentimo-nos sempre em casa. Mas o concerto que até agora nos marcou mais foi no Festival ANIMA-TE, em Famalicão, pois foi o nosso primeiro após o confinamento e representa o regresso aos palcos nos tempos difíceis que correm. O público recebeu-nos muito bem e não se inibiu de deixar transparecer a saudade de ouvir música ao vivo. Há que referir também que foi o maior palco em que tocámos e com a maior formação, o que tornou a experiência ainda mais especial.
Os músicos têm vivido a pandemia de formas diferentes. Alguns produzem mais, outros menos e alguns até fizeram um hiato. Como é que têm lidado com este período conturbado? Acreditam que a primeira arte pode adaptar-se a condições adversas como o distanciamento social e até reinventar-se?
Durante o período de confinamento foi muito complicado sermos produtivos por não termos a possibilidade do contacto presencial. Concentrámo-nos em escrever música e em preparar a fase pós-quarentena que agora está a decorrer. Felizmente, tivemos a oportunidade de gravar e filmar duas live sessions, ficando assim com mais conteúdo para divulgar. Também nos foi possível tocar ao vivo, algo que neste período conturbado é uma bênção. A música há-de reinventar-se sempre, independentemente das circunstâncias.
O que falta fazer na música portuguesa?
A música portuguesa é paradoxal pois muitos a explicam mas poucos a compreendem. Na verdade, nós próprios não sabemos o que falta ainda fazer na música portuguesa. Existem uma enorme qualidade e talento, mas também um pouco de impotência naquilo que toca a levar a música portuguesa além fronteiras, bem como sustentá-la por cá. Consideramos que o primeiro problema é que, no nosso país, o circuito de música ao vivo é muito reduzido. Desta forma, as oportunidades para bandas emergentes são escassas em comparação com outros países europeus. Em boa verdade, ouve-se pouca música nacional, o que é uma pena, tendo em conta a quantidade de bandas e músicos excelentes que temos, em variadíssimos géneros. Talvez fosse necessário, antes de mais, oferecer condições ao público para uma escolha mais inclusiva e abrangente, o que teria necessariamente de começar por uma oferta educacional mais justa e consequente. Para explorarmos melhor este ponto precisaríamos, no mínimo, de dar outra entrevista!
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