Entrevista. Feist: “Sinto-me muito orientada pela natureza”
Feist está de regresso aos lançamentos com Multitudes, o seu sexto álbum de estúdio, que saiu no passado dia 14 de Abril. Informado pela série de concertos intimistas com o mesmo nome que fez ao longo de 2021 e 2022, como resposta à alienação trazida pelo confinamento, o álbum demonstra diferentes facetas da artista ao longo de 12 canções que equilibram a tranquilidade e uma espécie de caos controlado que a canadiana tem vindo a dominar ao longo dos seus mais de 20 anos de carreira.
“Os últimos anos foram um período de enorme confronto para mim“, disse num comunicado, referindo-se não só ao partilhado período pandémico, mas também a dois acontecimentos pessoais: o nascimento da sua filha e a morte do seu pai. A seu ver, o repensar das interacções humanas que ocorreu ao longo dos últimos anos tornou-as mais honestas e menos avessas a conflito. Isto nota-se em Multitudes, um álbum directo e variado, que espelha a forma menos convencional e colaborativa seguida na sua génese.
Tivemos oportunidade de fazer algumas perguntas a Leslie Feist, que nos respondeu discorrendo sobre o novo álbum, os concertos intimistas que fez nos dois anos transactos, o regresso às digressões mais convencionais e a forma como os últimos anos a moldaram.
A sua série de concertos íntimos em 2021 e 2022 foi uma forma única e pessoal de conexão com os fãs durante a pandemia. De que forma influenciou a versão final do álbum?
Este projecto, que agora é um álbum chamado Multitudes, foi várias coisas ao longo do caminho e, a cada ponto, posso dizer sinceramente que estava apenas a pensar na peça à minha frente. Um espetáculo que transcende as ideias pré-concebidas de uma digressão, sendo essencialmente discreto e menos impressionante, era algo que eu queria fazer há muito tempo. Ou seja, não assumir que uma maior experiência apenas possa ser encontrada com uma produção maior, mas ver o que se pode encontrar ao focar-me na intimidade. Desmontar os diferentes papéis de público e artista deu, espero, algo de novo a ambos os lados da equação num momento em que todos nos sentíamos mudados. Trouxe esse sentimento para a minha escrita e a minha experiência nos concertos ainda o aprofundou mais ao longo da criação do álbum.
O álbum começou a tomar forma após algo bom (o nascimento da sua filha) e algo mau (a morte do seu pai). Como foi equilibrar esses sentimentos tão diferentes? Acha que o álbum se inclina mais para um lado do espectro feliz/triste?
A minha única esperança é que eu tenha gerado alguma curiosidade sobre o quão avassaladores ambos os sentimentos podem ser. O nascimento e a morte são ambos factos e um aponta para o outro, eu simplesmente acabei por me encontrar no meio de ambos, como acontece a muitas pessoas.
Por que decidiu lançar os primeiros três singles [“Hiding Out in the Open”, “In Lightning”, “Love Who We Are Meant To”] ao mesmo tempo?
Acho que não estou muito familiarizada com o que normalmente é feito. Simplesmente pareciam ser bons companheiros uns para os outros e abrangem mais ou menos toda a variedade do álbum.
De onde veio o conceito de multitudes e cópias repetidas de si mesma?
É difícil para mim descrever o tipo de eixo emocional, cronológico, de alcance de vida e maioridade que tenho vivido nos últimos anos. Quando o meu colaborador Colby Richardson sugeriu uma espécie de sequência de multiplicação enquanto ensaiávamos a produção teatral que fizemos durante o confinamento, isso ecoou — passo a expressão — as músicas. Por isso, diria que as músicas informaram a parte visual e vice-versa. E muito do que construímos para o espetáculo encontrou o seu caminho até à imagem do álbum. Foi um processo indutivo muito pouco convencional e, a longo prazo, diferente do que costumo fazer.
Os videoclipes que lançou até agora têm uma abordagem muito crua e DIY, mas também brincalhona. Qual é a ideia por trás deles?
O espectáculo que mencionei criou um tipo de vocabulário. É um mundo que conhece as suas próprias regras. Encontrámos muitas maneiras de nos imergirmos na ética que dita que a criação de algo também é esse próprio algo. Talvez o que vivi nos últimos anos tenha resultado nestas músicas, numa espécie de “colaboração de circunstância”. O que eu estava a viver mudou-me e essas mudanças foram a forma como estas músicas foram escritas. Não me pareceu certo esconder o mecanismo e os artifícios de criação destes vídeos.
Os seus vídeos e imagens são sempre muito visualmente impactantes. O quão importante é isso em cada lançamento?
Sempre foi uma piada que, depois de fazer um álbum e pensar que terminei, tenho de começar outra coisa na qual não sou necessariamente boa ou que certamente não acho fácil. Mas sim, é importante e geralmente encontro algo que encaixa, ao envolver-me com colaboradores que me podem orientar. Às vezes os vídeos ainda me fazem gostar mais das músicas, como se se tornassem ainda mais elas mesmas, como a “I Feel It All”. Desta vez senti isso com a “Borrow Trouble”.
Algo que sempre admirei na sua música é a sua abordagem naturalista à escrita de músicas, pois inserir muitas referências à Natureza (vento, água, fogo, relâmpagos…). Pode falar-me mais sobre a sua relação com a Natureza? Ela também permeia Multitudes?
Sinto-me muito orientada pela Natureza, posso sintonizar-me ao focar-me no céu. Consigo parar os meus pensamentos antes de entrar em espiral ao olhar em volta, encontrar a árvore mais próxima e trazer a minha consciência para ela. Sinto uma espécie de alívio, como se pudesse tornar minhas as suas raízes. Andar na floresta, fazer fogueiras e nadar na chuva são a minha ideia de bons planos, por isso sem dúvida permearam as músicas.
Está prestes a voltar às digressões. A série de concertos “Multitudes” mudou a sua abordagem às digressões?
Sim, foi uma rara oportunidade de reavaliar a noção de como os concertos devem fazer-me sentir. Tive a oportunidade de assistir a bastante teatro e sentir a mudança em mim quando se brinca com a forma, quando uma subtil mão me guia através de uma experiência ou conta uma história de uma forma que me apanha de surpresa. Já me tinha perguntado muitas vezes quando, como ou porque é que algum dia eu poderia tentar atravessar o espelho para imaginar uma nova forma de tocar ao vivo. Já tinha passado pela experiência de considerar como seria pertencer a um novo contexto quando, pela primeira vez, deixei de tocar em clubes de chãos pegajosos para passar a tocar em teatros. Desta vez foi muito mais intencional, para além de que tinha o elemento de dramaturgia e uma pandemia para abrir a minha imaginação.
Está na indústria da música há mais de 20 anos. Como é que a tem visto mudar ao longo desse tempo e como essas mudanças impactaram a sua carreira?
Já comparei notas com tantos amigos que começaram a fazer digressões por volta da mesma época que eu e, apesar de termos muito em comum, também tivemos experiências completamente únicas entre nós. Sim, talvez possamos comparar chuveiros de salas de concertos, histórias de couchsurfing, curas para o jet lag ou a tendência de romances de digressão surgirem entre casais totalmente improváveis, mas estávamos num tipo de isolamento em constante movimento, que difere de uns para os outros. É como se cada banda que entrasse numa carrinha fosse em direcção a um lugar desconhecido, exceto pelas pessoas que se encontram nessa mesma carrinha. Então, se isso pode ser verdade para pessoas que partiram do mesmo ponto no tempo, nem consigo imaginar como é agora. Talvez não haja tantas carrinhas ou talvez haja uma maneira completamente diferente de levar canções ao redor do mundo, que não seja fazê-lo com o próprio corpo.