Entrevista. Filipa Amaro: “Escrever sobre identidade é escrever sobre as complexidades e contradições de que todos somos feitos”
Emília, protagonista que dá nome à série, faz 25 anos e trabalha numa bomba de gasolina, no entanto, sonha, um dia, tornar-se na melhor bailarina do mundo, motivo que a leva a participar na audição de uma companhia de dança contemporânea. Apesar deste ser o ponto de partida ao enredo de “Emília”, é importante notar que “apesar de existir esta temática da dança, a história não é sobre isso”, garante Filipa Amaro, realizadora, argumentista e atriz, com quem a Comunidade Cultura e Arte se juntou, nos jardins da Gulbenkian (local que tanto tem de cinematográfico, como de indicado para se falar de dança contemporânea), para tentar perceber do que se trata, afinal, esta nova aposta da RTP e da produtora Maria & Mayer.
Partindo de um alinhamento temático semelhante a “Frágil” (2019), última série da realizadora, “Emília” propõe uma reformulação parcial da premissa de uma série que, de certa forma, reinventou e libertou uma parte do audiovisual em Portugal.
O fenómeno “Frágil”
Com “Frágil”, uma geração inteira pôde, finalmente, rever-se na televisão pública nacional sem tramas múltiplas de adolescentes descompensados, introduzidos por genéricos ainda mais descompensados, em séries que rimam o formato de telenovela com frutas adocicadas. “Frágil” era diferente, subtil, atual e condizia-nos porque apelava através de um humor metodicamente pensado e executado. Podemos argumentar que “Odisseia”, de Tiago Guedes, abriu o precedente neste sentido, mas é certo que “Frágil” trouxe uma nova perspetiva formal ao audiovisual português, um novo olhar sobre a ficção de jovens adultos e um novo ângulo para a escrita de argumento em séries nacionais. A paleta de cores sugeria uma obscuridade urbana, uma atualidade iluminada de néons vibrantes, a direção de fotografia e a tela baça sublinhavam um tom ainda por decifrar na televisão nacional, mas que, lá fora, começava a anunciar-se com séries como “Big Little Lies”, “Euphoria” e “Atlanta”. Era a comédia de ficção a levar-se, finalmente, a sério em Portugal. A série arrancava risos e o cerrar dos dentes em momentos pontuados pelo constrangimento e por um humor acídico afinado. Cada cena possuía um build up, resultava numa punchline e as sequências marcava-nos através de uma comédia consciente e audaz que, até então, desconhecíamos no panorama televisivo português.
Aproximadamente três anos depois, Filipa Amaro explica-nos, a propósito de “Emília”, como conseguiu: “O humor em séries contemporâneas, como o “Fleabag”, “Atlanta” ou o “White Lotus”, resultam porque as personagens se estão a levar extremamente a sério”. Segundo a realizadora, para que este humor funcione, é fundamental que as personagens “não se vejam de fora a rir” e, talvez, a melhor forma de uma personagem ter graça, surge quando quem a interpreta não tenta tê-la. “Não podes estar dentro da piada, nunca. A situação só pode tornar-se hilariante quando vista de fora”, diz-nos a autora.
Em “Emília” parece existir um (re)despertar desta ambiguidade temática e estética inserida num tom completamente original que, feito pêndulo, oscila entre a comédia e o drama. Então, sobre o que é, afinal “Emília”? É uma comédia ou um drama? E em que medida constitui, à semelhança de “Frágil”, uma série sobre “alguém paralisado pelo medo de falhar”?
As promessas de “Emília”
Como foi referido inicialmente, um dos temas centrais da série é a dança, mas este não foi o ponto de partida que levou Filipa Amaro a escrever a série. “A Emília é uma rapariga que quer ser bailarina, entra numa companhia e tem que ganhar o espetáculo final. Há sempre um espetáculo final, certo?”. Neste aspeto, a realizadora garante que os elementos característicos do género narrativo estão assegurados, vai haver dança, mas esta não é uma série só sobre dança. “Eu concordo com o Tarantino, que diz algo como ‘se se trata de um genre movie, então devias ter o genre no final’. Se é um filme de cowboys, vais ter um standoff entre cowboys, por exemplo”, explica a realizadora, “(…) no entanto, apesar de existir esta temática da dança, a história não é sobre isso. A “Emília” surge porque, a minha avó, que era a pessoa mais importante para mim, faleceu. Esta é uma série sobre um luto e sobre ultrapassá-lo de forma positiva, mas também de como lidar com esse luto acaba por ser uma coisa muito estranha e contraditória (…) É uma série sobre lidar com o luto, mas também sobre outro tipo de questões… por exemplo, se tu não tens uma pessoa cá que fique orgulhoso de ti, será que vale a pena fazer alguma coisa? É muito duro pensar que alguém nunca vai saber que tu fizeste uma coisa importante!”. Neste sentido, “A ‘Emília’, tal como o ‘Frágil’, aborda o medo de nunca ser ninguém, de ser só uma ‘versão inferior da pessoa que eu imaginei que me ia tornar’. É engraçado porque é uma preocupação um pouco narcisista, cada vez menos a tenho, mas são temáticas que me interessam: o ego, morrer uma promessa, ‘o que é que eu estou aqui a fazer?’.“, explica-nos a realizadora.
“À medida que vais ficando mais velho, cada vez menos és uma promessa e acabas por tornar-te só na pessoa que és.”
Filipa Amaro
“A Emília tem pânico de ser só uma pessoa normal”, continua Filipa Amaro, “então ela encontra-se, agora, com 25 anos, a trabalhar numa bomba de gasolina e começa a sentir que o seu trabalho é muito urgente, mas não é muito importante e que qualquer pessoa faria aquele trabalho. Ela começa a pensar: ‘será que eu também sou só uma pessoa qualquer?’”. É esta inquietação que desperta a motivação da protagonista para tomar as rédeas ao seu futuro, movida, não tanto pelo incentivo, mas pelo medo. “Um dos maiores temas da série é o facto das pessoas não serem movidas pela motivação, mas pelo medo”, diz-nos a autora, “até nas coisas mais pequenas coisas, mesmo no trabalho artístico, é algo que acontece bastante (…) O inciting incident [incidente desencadeador] que faz com que ela se aperceba disto é o momento em que ela está a falar com o Joel [Luís Araújo], que também trabalha na bomba, e ele refere ‘Ah! Mas não preocupes, também ninguém ficar aqui para sempre’, e ela pergunta ‘tu estás aqui há quantos anos?’. Ou seja, ninguém fica ali para sempre, exceto ele e, talvez, ela seja a seguir”, afirma a realizadora portuguesa.
O humor com tragédia e a tragédia com humor
Nos seus argumentos, Filipa Amaro prefere partir da especificidade das ocasiões e do individual para alcançar temáticas e sentimentos universais, comuns a todos, precisamente, pelo quão específicos são. Os contextos das personagens, as temáticas do enredo estão construídos para mostrar ocasiões e sentimentos extremamente específicos e pessoais, nomeadamente através do humor. “O princípio é sempre a personagem e qual será o seu dilema interior, o resto vem por consequência. Só depois é que entra a pesquisa e na parte mais divertida”, refere, “(…) só depois surge a questão: ‘como é que posso construir um mundo para encaixar este problema?.”, acrescenta.
“Um dos maiores temas da série é o facto das pessoas não serem movidas pela motivação, mas pelo medo.”
Filipa Amaro
Ainda que o ponto de partida seja sempre o dilema interior da personagem, existe, durante o processo de escrita de argumento, uma tendência para centrar muita da ação narrativa nos conflitos externos. Segundo a autora, durante as primeiras versões do argumento de “Emília”, o enredo encontrava-se repleto de obstáculos externos que impediam a protagonista de alcançar os seus objetivos. “A primeira versão da ‘Emília’ estava repleta de conflitos externos. Era o by the book ‘Story’, do Robert Mckee, (…) repleto de obstáculos concretos, baseados em factos, percentagens e estudos e, de repente, a história não era nada (…) Tinha montes de enredo, mas zero coração, sentia que não existia qualquer verosimilhança, era só plot, plot, plot. Então, fui subtraindo esses obstáculos, retirei problemas até deixá-la somente com os seus conflitos interiores, que resultam, no fundo, na ideia de que ‘eu tenho tudo, mas não estou a ir’ (…) É um medo muito mais cru, ‘ninguém te impede, e agora?’ (…) a história tornou-se sobre isso, ao passo que antes era mais sobre questões de classe (…) ela estava a tornar-se uma vítima e isso era algo que eu queria evitar, ela não é vítima nenhuma! (…) Foi preciso dar um passo atrás, respirar e confiar que as pequenas coisas também são interessantes e constituem problemas reais.”, diz-nos Filipa Amaro.
No entanto, transpor um sentimento altamente específico e individual nem sempre é uma tarefa fácil, especialmente na escrita do guião, como explica a realizadora: “Durante o primeiro episódio, antes de ir para a companhia, ela vê no Instagram como é que as pessoas de lá se vestem, então esforça-se, põe um batom, que ela noutra ocasião nunca usaria, veste um casaco de peles e vai demasiado bem vestida. Ao chegar lá, repara que está toda a gente muito casual… Não há sensação pior que ver que te esforçaste demasiado e mais ninguém o fez… Visto de dentro, se estiver bem feito, tu sentes o constrangimento. É engraçado quando visto de fora, mas da perspetiva da Emília não. Confiar que estes problemas, que toda a gente já sentiu, são suficientes [para passar a ideia] é uma batalha constante.”
Entender o humor de uma situação trágica não é tarefa fácil, especialmente para os atores, que se encontram, frequentemente, agarrados às convenções de género narrativo e cujas referências nem sempre vão ao encontro do tom pretendido pelos argumentistas. “Durante o casting, enviei um monólogo em que a Emília fala com a urna da avó, com quem ela conversa casualmente, e a esmagadora maioria das atrizes fez aquilo a chorar. A Beatriz e a Catarina viram humor na situação e tu acabas por chorar a rir com o monólogo delas na audição porque elas encontraram vários tons engraçados. Claro que a leitura mais óbvia daquele texto é chorar de uma ponta à outra, mas isso não é uma escolha tão interessante.”, afirma a realizadora.
A protagonista da série é interpretada por Beatriz Maia. A jovem atriz, que tem vindo a mostrar o seu enorme talento e dedicação no teatro (“A Matança Ritual de Gorge Mastromas”, “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, “Sopro”, entre outras), será, certamente, um dos grandes nomes da representação desta geração. Durante o evento de apresentação de “Emília”, em que também estivemos presentes, Maia agradeceu à realizadora por “não olhar somente aos números” e a escolher para representar o papel principal da série.
“Vi a Beatriz Maia pela primeira vez em 2019”, conta a realizadora. “Na peça de teatro ‘A Matança Ritual de Gorge Mastromas’, do Tiago Rodrigues com texto de Dennis Kelly (…) nunca tinha visto esta miúda e ela tinha uma stillness, uma confiança impressionante em simplesmente estar no palco… Claro que isso nem sempre se traduz para televisão, a câmara, como é muito sensível, muitas vezes dá a sensação de que eles estão em overacting… [os atores de teatro] estão habituados a falar para a pessoa ao fundo da sala e é difícil fazer essa transição, são outras ferramentas.“, afirma Filipa Amaro. “[A Beatriz] é maravilhosa em câmara, muito subtil e verosímil, a única coisa que tivemos que trabalhar foi a linguagem, porque ela tem uma linguagem muito correta (‘tive’ lá, em vez de ‘estive lá’), então teve que sujar aquilo que trabalhou durante tantos anos… Mas quando a vi no casting foi óbvio que ela era a Emília. O momento em que consegui convencer toda a gente de que a Beatriz era a tal foi quando ela fez o casting de movimento (ao som de Hans Zimmer). Ela só tinha de fechar os olhos, seguir as palavras da coreógrafa, [Catarina Casqueiro] e fazer uma proposta. É um momento em que tu, ou aceitas a proposta e vais, ou acabas por ficar self conscious, ficas em pânico e não consegues (…) Aí, foi claro para toda a gente que ela era a Emília. Ela entrega-se por completo, manda-se para o chão e confia, cegamente, em mim, não posso pedir mais do que isso, enquanto realizadora.”, sublinha a realizadora.
Embora o papel da protagonista parecesse estar predestinado, o papel de Rosa, personagem secundária, foi o mais desafiante de encontrar até chegar a Catarina Rebelo. “Precisava de alguém que conseguisse estar no mesmo tom e par-a-par com a Beatriz e era muito difícil. De repente, a Catarina entrou e fez, imediatamente a cena com bastante humor, incomparável às outras propostas. Troquei olhares com o João [João Bernardo Souza] e a expressão foi de ‘Ela existe!’.”, refere Filipa Amaro. É pertinente mencionar, sobre este tópico, que Patrícia Vasconcelos, responsável pelo casting, teve um grande trabalho pela frente, com mais de mil atrizes.
A dinâmica entre as personagens Rosa e Emília promete escrutinar um novo olhar sobre o female gaze e desafiar muitas das convenções preestabelecidas por parte do público. “A Rosa é alguém que a Emília começa a seguir online e, a partir daí, começa a comparar-se, surge uma vontade enorme de ser como ela, mas, lá está, não faz nada até ter medo”, explica a realizadora. “Elas desenvolvem uma relação de amizade. Sei que o espectador, hoje em dia, é tão inteligente e vê tantas coisas diferentes que ia acabar por projetar nelas uma rivalidade feminina. Acho que é algo tão bonito, essa amizade feminina (…) não fazia sentido torná-las rivais. É algo que eu não compreendo, porque isso nunca me aconteceu na vida. Queria ter uma boa representação de uma amizade feminina na série, sendo que a Emília vive para a relação que tem com a mãe, com a Rosa e com a avó. Acho que a própria série vive disso”.
“Emília” promete abordar, ainda, um conjunto de temáticas familiares ao público mais jovem, no entanto, esta não é uma série somente para jovens adultos. Ainda que os novos traumas e problemas geracionais apresentem temáticas suficientemente trágicas para encontrar o humor, a autora da série afirma colocá-las em perspetiva a uma geração diferente: “Ela [Emília] e a mãe estão a tentar comunicar, mas não conseguem porque a mãe não consegue perceber o que é estares a comparar-te a todas as pessoas do mundo no teu quarto”.
Dialogar através do movimento
À semelhança do cinema e do audiovisual, também a dança é uma arte do movimento e uma temática que Filipa Amaro procurava, há muito, explorar. “Interessava-me muito a ideia de ter personagens a falar pelo movimento”, explica a realizadora. “Existe, claro, o recurso a diálogos, algo que eu gosto muito, mas dei por mim a pensar que seria um desafio contar uma história pelo movimento e então comecei a procurar mais sobre o que é a ‘qualidade de movimento’, que foi a base do nosso casting, e como pode alguém exprimir-se sem recorrer a palavras.”, sublinha Filipa Amaro. Neste sentido, a realizadora destaca o trabalho da coreógrafa da série. “Catarina Casqueiro, minha amiga de infância, coreografou e coordenou a performance de todos os momentos de dança da série, ela é uma bailarina contemporânea muito sensível e que soube interpretar o texto e transformar aqueles momentos de história numa coisa palpável”. Se, como disse a personagem de Al Pacino, em “Perfume de Mulher (1992), “If you get all tangled up, just tango on”, também a autora de Emília procurou, através da dança, encontrar a simbiose perfeita entre o poético, o racional e o improviso. “Como diz a Greta Gerwing ‘eu gosto daqueles diálogos que parece que são erros’. No movimento é exatamente igual. Estava há muito fascinada com bailarinos mas não queria bailarinos que também representassem, queria excelentes atores que tivessem qualidade de movimento. O Ivo Canelas, por exemplo, nunca dançou, mas tem uma qualidade de movimento incrível! É único a deslocar-se pelo espaço… Há muito tempo que tinha esse bichinho de trabalhar além das palavras.”, diz-nos a autora da série.
Novos meios, os mesmos desafios, e escrever sobre identidade
As gravações de “Emília” iniciaram-se dois anos após o lançamento de “Frágil” e é notória, pelo trailer e clipe de apresentação, a evolução nos aspetos técnico-formais. No entanto, e embora o orçamento tenha sido superior, os desafios da prática audiovisual mantém-se. “O orçamento aumenta e as dificuldades também.”, refere Filipa Amaro. “A equipa era brutal, cerca de 42 pessoas, quase tudo mulheres, por serem as melhores profissionais, algo que aconteceu completamente por acaso, uma produtora, uma chefe de produção, escrita e realização, protagonistas são quase todas…“, assume a cineasta. “É muito estranho, para alguém habituada a filmar com 4 pessoas, chegares a uma praia e teres camiões montados cheios de material … e depois pões-te a pensar ‘para onde é que aponto a câmara?’. Essa dimensão dá-te urgência no trabalho (…) existe imensa pressão, mas, nesse aspeto, tive bastante apoio da produção, eles estão contigo até ao final!”, afirma ainda.
Filmado no decurso de 3 semanas, a produção de “Emília” exigiu um grande eficiência no trabalho de realização e produção. “Estávamos a filmar 17 cenas por dia, é o ritmo de uma telenovela, mas sem gravar com as mesmas técnicas. Tens de usar a tua imaginação como realizadora, mas eu gosto dessa parte de resolver problemas. Já a parte da escrita, é muito poderosa, mas principalmente solitária.”, assume Filipa Amaro.
“Se o público estiver a notar a continuidade de um cigarro, temos problemas muito maiores do que a continuidade do cigarro, é sinal de que ninguém está a ouvir o que o ator está a dizer e temos de voltar ao guião”
Filipa Amaro
Em “Emília”, a textura da tela e o deslumbrante trabalho de direção de fotografia, assinado por João Bernardo de Souza, prometem casar o fogo dos enquadramentos de Céline Sciamma à modernidade sóbria e minimalista de Ruben Östlund, duas referências que definem, em grande medida, o trabalho de Filipa Amaro. No entanto, existe um grande conjunto de referências que a autora revisita. “Não sou snobe, gosto de Marvel e ‘Senhor dos Anéis’. Esses filmes foram a razão para eu começar, mas sou apreciadora de tudo, sempre que há um piloto novo vejo imediatamente (…) tenho muito interesse em ver coisas novas! No entanto, escrevo sobre identidade e adoro histórias sobre esse tema, é um ‘fraco’ que eu tenho e espero ficar melhor a escrever sobre isso. Escrever sobre identidade é escrever sobre as complexidades e contradições de que todos somos feitos. O “Fleabag” (2016 -2019) é obviamente uma referência, o “Horace and Pete” [2016], do Louis [C.K], o próprio “Louie” (2010-2015), o “Atlanta” (2016-2022) é dos maiores estudos de identidade, o “Dave” (2020), que, lá está, é sobre um rapaz que quer ser rapper, mas nenhum episódio é sobre isso. É bom saberes quem são os pais da tua série. Muitas pessoas começam a escrever e ficam overwhelmed, porque dizem ‘Ah! Isto não se compara a nada que alguma vez foi feito!’. Eu sei que as pessoas não vão olhar para a ‘Emília’ e dizer ‘Olha o Louie!’, ninguém vai dizer isso, mas sei que tenho tanto a aprender com essas narrativas fortes e tento analisar porque é que resultam, interiorizar, tirar essas lições e usá-las narrativamente para tentar alcançar alguma coerência. O Ruben Östlund é uma das maiores referências e que vou levar daqui para a frente, sempre adorei o “Force Majeure”. É humor, mas não é o típico humor europeu, ele vai buscar referências americanas. Ele diz-nos ‘nós temos este tipo de comportamento’ numa família muito rígida e encontra humor nisso, é muito raro de se ver, especialmente na Europa. A Europa leva-se muito a sério no cinema e na arte, ele [Östlund] faz uma boa junção dos dois [arte e engenho narrativo], o meu grande objetivo é encontrar esse equilíbrio.”, afirma a realizadora portuguesa.
É certo que o cinema e o audiovisual portugueses têm sofrido uma crise de identidade prolongada. Ainda que exista um grande reconhecimento do cinema arthouse português em grandes festivais internacionais, o cinema comercial e a própria indústria audiovisual (palavra importante, indústria) parecem ter alguma dificuldade em definir-se. Não existe uma voz unificada neste sentido e cada vez mais produtoras estão a encontrar refúgio nas plataformas de streaming. No entanto, durante os últimos anos, o audiovisual português parece começar a esboçar um sentido de identidade, que procura unir uma determinada poética, típica do engenho narrativo português, a enredos mais universais. Esta voz começa a sentir-se em séries como “Glória” (2022), “Sul” (2019), Causa Própria (2022) ou “Auga Seca”. Nomes como Patrícia Sequeira, Marco Martins, Ana Rocha de Sousa e, claro, Filipa Amaro, cada um à sua forma, dão os primeiros passos na tentativa de encontrar o equilíbrio ideal entre o realismo e o avant-garde, entre a arte e a indústria.
Com “Sara” (2018), Marco Martins mostrou que era possível dar um passo em frente, desenvencilharmo-nos do cinema de arte e procurar um sentido profundo numa série, mesmo num formato comercial televisivo. Patrícia Sequeira tomou a audaz iniciativa de experimentar com forma e enredo em séries como “Doce” (2021), adaptado do filme “Bem Bom” (2020), “Praxx” (2022-2023) e “Prisão Domiciliária” (2021). Em 2022, Pedro Lopes e Tiago Guedes levaram o audiovisual português e mostraram-nos ao mundo, com “Glória”, a primeira série portuguesa na Netflix. Com “Frágil” e, agora, “Emília”, Filipa Amaro tenta encontrar o humor na tragédia deste povo lusitano que, nas palavras de Agostinho da Silva, “toca o pessimismo como quem toca guitarra”. “Acho que ainda estamos à procura da nossa linguagem narrativa”, confessa a realizadora, “Os espanhóis já se está a tornar óbvio, os suecos, os franceses, os italianos… Tu sabes o que é o cinema italiano! O caso português, é estranho… Talvez porque as pessoas não queiram ver… Não temos um Portugal cinematográfico claro.”, sublinha.
“O guião não é respeitado como a realização, mas é a coisa mais difícil e podes fazer um filme horrível de um guião bom, mas não podes fazer um filme bom de um guião mau.”
Filipa Amaro
A falta de apoios ao desenvolvimento de obras cinematográficas e audiovisuais não é uma novidade no contexto português, mas, e ainda que exista um esforço em apoiar e incentivar o desenvolvimento de projetos por entidades como o ICA ou o RTP, o desenvolvimento da componente escrita, tão ou mais exigente que a parte de produção, acaba, frequentemente, esquecida. Para Filipa Amaro “é mais fácil estar a realizar, escrever é muito mais difícil. Quando chego ao set já sei o que quero, existem imprevistos, claro, mas torna-se bastante claro quais são as prioridades, para a minha equipa também”, assegura a criadora da série.
“A cavalaria não está a chegar”
“Nunca senti isto no final de um projeto!”, garante a realizadora enquanto comenta sobre expectativas relativamente à receção da série por parte do público, “mesmo que ninguém visse e que ninguém gostasse, eu estava feliz, porque sinto que esta história já não é minha e nunca senti isto com uma série antes dela sair. Quando tens a sorte de encontrar o teu público, é uma grande sensação. Com o ‘Frágil’, recebi mais de 200 mensagens de raparigas a contar a história delas, isso foi bom! (…) É uma parte [da receção do público] completamente imprevisível. Pode ser a pior série alguma vez vista… Já não tenho aquela síndrome de impostor, mas sei que posso e vou escrever muito melhor para a próxima! Mas o que eu gostava era existisse a possibilidade de financiar outros projetos.”, afirma Filipa Amaro.
Sobre conselhos ou sugestões a uma potencial Emília do cinema e do audiovisual, que se debata com indecisões sobre enveredar ou não pelo meio artístico ou não, mas tema, ao mesmo tempo, morrer um talento desperdiçado, Filipa Amaro garante: “A realidade é que ninguém sabe nada. Há esta ideia de que existem estes gatekeepers, estas pessoas que sabem mais do que tu, grandes produtores ou diretores que fazem e sabem etc. Mas não é por estares a começar que sabes menos do que as outras pessoas. A síndrome de impostor tem que acabar. Se por um lado, só as fraudes é que não se sentem uma fraude, pois é importante e normal que as restantes pessoas se sintam assim, ou seja, só quem é completamente superficial é que não sente (…) De vez em quando, revejo o discurso do Mark Duplass, no YouTube, em que ele diz “The Cavalry Isn’t Coming”, tens de contar contigo próprio. Grande parte da “Emília” é precisamente sobre isso, ‘não há nenhuma versão tua no futuro à tua espera de braços abertos com tudo resolvido. É isto, já está a acontecer. Isto é a vida’”.
Indispensável é, para a criadora de “Emília”, uma equipa competente que se entenda de parte a parte. Sobre isto, a realizadora conta: “Trabalho com a mesma equipa há 7 anos e do que depender de mim irei sempre trabalhar. O João Bernardo Souza, diretor de fotografia, tem vindo a desenvolver um trabalho muito sensível e cada vez que olho para ele, sinto que estamos a contar a mesma história, já nos conhecemos muito bem e isso não se pode pagar ou substituir, as escolhas visuais da série são feitas em conjunto e pensámos muito antes de decidir nesta linguagem centrada da série, colorida pelo Marco Amaral. O mesmo acontece com os diretores de cada departamento, a Carolina Queiroz do guarda-roupa, a Felipa Varanda na Direção de Arte, o Bruno Garcez no som e especialmente com o João Reis, o meu editor. Ele consegue perceber à primeira o que eu quero da cena e também qual é a melhor e mais interessante interpretação da mesma. Passámos cerca de 6 meses a trabalhar juntos depois de toda a gente já ter ‘abandonado o barco’ e se não fossem estas pessoas não era possível ter feito estes trabalhos. Seriam pobres e incompletos sem a minha equipa, isso posso garantir. Neste projeto trabalhei ainda com o António Santos que compôs uma banda sonora original com uma sensibilidade e talento que ainda me faz chorar. Por último, queria agradecer à Maria João Mayer, que acreditou em mim desde o primeiro piloto terrível da Emília”.
“Emília” é uma produção Maria & Mayer, escrita e realizada por Filipa Amaro, com direção de fotografia por João Bernardo de Souza, montagem de João Quinta Reis, casting de Patrícia Vasconcelos, direção de arte de Felipa Varanda e costume design por Carolina Machado. O elenco conta com nomes como Beatriz Maia, Catarina Rebelo, Igor Regalla e Ivo Canelas.
O primeiro episódio terá a sua estreia dia 1 de Maio na RTP 1 às 22h:30 e ficará, posteriormente, disponível na RTP Play.