Entrevista: Gustavo Ciríaco e a desconstrução do Teatro Nacional D. Maria II
Gustavo Ciríaco, nascido no Rio de Janeiro em 1969, é coreógrafo, performer e artista contextual, reconhecido pelos seus projectos transversais capazes de envolver tanto a arquitectura como as artes visuais e do espectáculo. Tem atuado em projectos no espaço urbano e em paisagens, em peças conversacionais, em performances e mais recentemente em projectos de museu. Já trabalhou, expôs e apresentou os seus trabalhos um pouco por todo mundo, mas é em Portugal que reside há seis anos.
O seu mais recente espectáculo, Cortado por todos os lados, aberto por todos os cantos, pensa os lugares do teatro encarando-o como uma escultura expandida, num espectáculo itenerante que será apresentado no Teatro Dona Maria II, em Lisboa, nos dias 29, 30 e 31 de Maio, pelas 19h, no âmbito do Alkantara Festival. Falámos com ele acerca deste projecto.
O que querias transmitir com este espectáculo e qual foi o teu ponto de partida?
O ponto de partida foi tomar o teatro como uma escultura expandida, daí o título do trabalho Cortado por todos os lados, aberto por todos os cantos, como uma escultura em que você busca, em deslocamento, pontos diferentes para ver a mesma coisa. Eu tive essa inspiração de pegar o prédio, o teatro, e pensar o que é que é tomar diferente posições em relação ao mesmo edifício. O teatro, portanto, não só como o espaço da caixa cénica, com a caixa da plateia, mas esse prédio todo que abriga essa caixa e essa plateia.
E o que faz do teatro um lugar tão especial?
É o lugar que é a minha área, para começar. Está ligado a ser um profissional do espectáculo, a vê-lo como lugar que acolhe espectáculos, público e toda uma história de uma arte. Então quis pensar o teatro como esse lugar especial de convivência, de partilha sensível, de visão de mundo, de posicionamento em relação ao mundo. Para mim isso é fundamental como artista e em especial nesse projecto, que é onde consigo veicular, trazer para próximo, essa maneira de pensar que o teatro não é só um prédio. É um prédio, mas é sobretudo uma série de verbos, assim como a arquitectura de qualquer prédio é uma série de verbos, e é juntar esses verbos, resumidamente, todos os verbos que estão ligados ao arquitectar e ao fazer teatro, uma espécie de “teatrar”.
Então é quase como se fosse uma visita guiada ao teatro?
Não é uma visita guiada no sentido de apresentar conhecimento, é antes uma rapsódia.
E sendo site-specific, que mudanças se vêm do espectáculo que vais fazer aqui para o espectáculo que fizeste recentemente em Ílhavo?
Começando pelos dois edifícios, o meu ponto de partida é o lugar onde se dá o encontro entre o elenco e o público, entre a peça e o público. O Centro Cultural de Ílhavo, ele é muito mais recente, então sua arquitectura é muito mais ligada aos princípios da arquitectura moderna, portanto para começar existe uma monumentalidade do espaço de convivência, do espaço de atravessamento do público, ele é enorme, as linhas são bem claras, então você vê geometria, você pensa arquitectura. Enquanto o Teatro Nacional D. Maria II é de uma outra época (embora a sua reforma seja mais recente), é um espaço mais da ordem da convivência. Então os espaços de atravessamento são todos apertados, mas os espaços que o público tem de convivência são amplos. Você não vê tanto a arquitectura, mas vê mais estar junto, quase que se entra e de repente é o palco. Então isso modifica na adaptação porque o modo como você está em convivência com o público num e noutro lugar é muito diferente um do outro. No entanto a gente tem o mesmo roteiro de acções.
Era isso que também queria perceber, se havia sempre um plano base que se adaptava ao espaço, ou se mesmo esse plano base sofria alterações.
A gente tem um plano e a cada espaço a gente adapta consoante o que é possível. Em Ílhavo, por exemplo, existia uma grande distância. Podia ter uma coisa que acontece muito muito distante, e aqui no Teatro Nacional D. Maria II essa relação já se modifica, é muito mais comum estarmos sempre em passagem, em circulação, mais do que parados.
Então o público também influencia o espectáculo.
Super influencia. Esse é o desafio, é a beleza que pode existir, e também o que nos oferece mais risco. Mas isso é inerente ao projecto site-specific. No momento em que você convida o público para estar de uma outra maneira, você abre mão de uma série de convenções que te dão segurança. Por exemplo, num teatro há cadeira. Sem a cadeira, o público está livre, solto, que nem um touro [risos].
Mas o público é chamado a participar, também, durante o espectáculo?
Não de maneira directa, interactiva. É low-profile [risos].
Para este trabalho fizeste residências artísticas em diferentes pontos de Portugal, pelo menos. Lisboa, Ílhavo, Montemor-o-Novo, Faro, Ponta Delgada. Quão importante é a passagem por esses pontos tão diversos, e que diferenças te trazem, tanto a nível pessoal como artístico?
Em termos do nosso cronograma de criação, em cada espaço houve um foco, quer do ponto de vista da cenografia, da iluminação ou do trabalho com público, ou da dramaturgia. Para cada um, é um momento muito precioso a gente poder-se ausentar de uma série de outros elementos da nossa vida quotidiana aqui em Lisboa, e poder estar ali nessas condições ideiais que esses espaços de residência nos oferecem, daí a sua importância. Para além disso existe o contexto local, que é cada residência poder nos oferecer algo. Em Ponta Delgada houve, no Teatro Micaelense, no festival Walk & Talk, um contexto artístico, de troca com outros artistas que estavam também em residência, para além de uma estrutura como o Teatro Micaelense que a gente teve muita liberdade de experimentar. Também tivemos participantes locais, como é o caso de em Ílhavo, em que puderam com as suas cores locais, as suas pessoalidades, as suas histórias, lançar outras perspectivas do material que havia sido formulado a quatro paredes. E outros, como por exemplo, Montemor e no UNICAMP, no Brasil, em Campinas, proporcionaram momentos largos de formulação, de pensamento, e também de espaço, de reflexão e de inflexão.
Esse trabalho é feito só por ti ou com todas as pessoas que fazem parte?
Ele é feito em colaboração. O projecto e a concepção são meus, mas eu tenho trabalhando comigo a Catalina Lescano, que é minha assistente de direcção e dramaturgia (além de ter a produção executiva), tenho os quatro performers que sempre me acompanham no projecto: a Ana Trincão, o Tiago Barbosa, Rodrigo Andeolli e a Sara Zita Correia. São colaboradores bem mais próximos, estiveram em diversos momentos da criação, e mais recentemente os performers/actores do D. Maria II, os do elenco fixo, o Manuel Coelho, a Lúcia Maria, a Paula Mora, o José Neves e o João Grosso. Adicionados a esse grupo temos os seis estagiários da Escola Superior de Teatro e Cinema, que são o João Chima, o Gonçalo Egito, a Rita Delgado, a Sara Inês Gigante, o André Loubet e a Diana Narciso. E eles participaram na fase final da criação e trazem para o projecto toda a sua experiência. Eu venho de dança, então eles trazem os princípios do teatro, e os tipos ricos que eles têm como actores, desde os mais veteranos aos mais recentes. Então é muito bonito ver, esse tipo de junção.
Tendo tu exposto e feito tanta obra em tanta parte do mundo, porque ficaste em Portugal?
Portugal está ligado a várias razões. Razões pessoais, encontrar aqui parceiros de vida, de amor, e parceiros artísticos também, mas também parceiros institucionais. Desde o Alkantara, que foi o contexto que me trouxe aqui pela primeira vez, junto com Panorama, um festival com o qual há muitos anos colaboro lá no Rio de Janeiro, a sítios como ZDB, Culturgest, e mais recentemente o Teatro Maria Matos, e agora o Teatro Nacional D. Maria II. Além do Walk & Talk que é, há muitos anos, o meu principal parceiro aqui em Portugal. Então essa possibilidade de reatar laços com Portugal fez com que eu mais uma vez fizesse projectos aqui, então faz doze anos que eu venho e volto, e há seis anos que moro em Lisboa, fixo, mesmo tendo tido, até ao ano passado, um apartamento no Rio de Janeiro, ao qual retornava sempre.
E que diferenças notas entre a recepção do teu trabalho, e mesmo entre o trabalho que desenvolves, em Portugal e no Brasil?
No Brasil, eu existo desde que eu existo. Então isso faz, claro, criar elos com o meu país, e já são muitos anos que existo em várias instâncias, seja como educador, seja como artista, seja como pensador de programações mais pontuais, seja como activista cultural. E em Portugal já existo então há doze anos, mas as minhas parcerias ainda são mais recentes. Em termos de recepção o Brasil viu tudo o que eu fiz, e Portugal viu sobretudo o que eu fiz nos últimos dez anos, e que são projectos mais ligados à proposta mais site-specific, e mais em particular esse último momento, uma trilogia que eu fiz, Gentileza de um gigante, onde eu me relaciono com a paisagem.
Sim, parece muito existir essa relação com o espaço e a paisagem.
Exacto. Começou com uma caminhada. É interessante pensar que Alkantara me trouxe para pensar um projecto para fora da caixa do teatro, que é o Aqui enquanto caminhamos, no bairro de Alfama, meu e da Andrea Sonnberger, a minha parceira que colaborou nesse projecto. A gente levava um grupo de até vinte pessoas num passeio dentro de um elástico gigante, e esse projecto me fez despertar para a arquitectura e como a arquitectura evolve, cria relevo e refaz várias das nossas narrativas pessoais, e isso abriu todo um novo capítulo.
Aproveitando isso da relação com o espaço, como te inseres, então, dentro da arte? Qual o teu lugar?
Eu tenho uma formação em Dança Contemporânea, pela Escola Angel Vianna, e antes disso tenho formação em Ciência Política, na UFRJ. Então tenho esse ponto de partida. Ao longo dos projectos é muito comum eu ficar curioso por uma série de assuntos, e essa curiosidade me levar a, na cara de pau mesmo, experimentar fazer, como foi o caso da Gentileza de um Gigante, de começar a fazer paisagens em miniatura. Não tinha nenhum conhecimento prévio a isso e foi descobrindo junto com os actores, os performers e a cenografia, como fazer. Então isso me leva a vários projectos, seja com vídeo, seja com o uso de literatura, muito com cenografia, seja de pensar canções, criar canções, ouvir canções, propor canções. Nesses sentidos, as artes visuais e o teatro e a arquitectura são áreas que me atraem muito. Mas hoje em dia eu gosto de pensar que sou um artista das artes performativas, mas antes de tudo um artista. E deixei de me preocupar em me definir e a pensar mais em produzir e em criar obras que o público receba, seja no contexto de artes visuais, seja no contexto do teatro. É claro, dá muita luta, porque alguns contextos são mais fechados do que outros, algumas instituições são mais fechadas do que outras. Algumas têm um desejo, mas é um desejo que passa por várias instâncias, mas da minha parte eu ofereço a obra, e lidem com isso, seja o público sejam as entidades de acolhimento.
Quais são os planos para o futuro próximo?
O plano para o futuro próximo é fazer essa peça e circular com ela por onde seja possível. E depois concluir a trilogia da Gentileza de um Gigante, já agora em Agosto a gente já começa com Entre Cães e Lobos, o terceiro episódio. Aqui em Portugal a gente faz materiais diversos, a primeira residência e depois o Verão Azul, no Algarve, e para o ano a gente está vendo outras parcerias em Lisboa e no Porto, mas já temos no Chile, em Janeiro, uma residência e uma apresentação pública do projecto, e também temos Atos de Fala, no Rio de Janeiro, uma em Montevideo, e o Junta em Teresina, e estamos à espera de respostas da França, também. E fazemos as duas peças anteriores da trilogia em São Paulo, em Agosto, no SESC.
Fotografias por Sara Miguel Dias / CCA