Entrevista. João Canijo: “A verdade é a interpretação que cada um faz da realidade”
Conversa via zoom na véspera da partida para Berlim. A última fora alguns anos antes, quando Sangue do Meu Sangue foi exibido em San Sebastian, também em competição, acabando por vencer o prémio da crítica internacional. Desta vez, Canijo faz uma dobradinha, pelo menos na presença nas duas secções mais importantes da Berlinale, a Competição e os Encontros. Até porque “é essa presença a vitória”, como nos confidencia. Seja como for, não deixa de ser um feito histórico. Que irá certamente abalar a comunidade festivaleira quando contactar com este novelo emocional de ‘filhas da mãe’ (as suspeitas do costume: Anabela Ribeiro, Rita Blanco, Cleia Almeida) que gerem uma unidade hoteleira à beira de um ataque de nervos, fora de época e fora de tempo. Precisamente, por combinar a ansiedade reinante nos bastidores com o tratamento de classe com que brindam os escassos hóspedes (Nuno Lopes, Beatriz Batarda, Leonor Silveira). Sim, cada um com as suas crises existenciais que destilam fel pela franqueza com que são expostas. Pois, é Canijo a digerir Bergman, de acordo com Strindberg.
Será que podemos ver em Mal Viver, sobretudo, e se calhar até também, em Viver Mal, alguma ligação entre o trabalho de actor, e o trabalho de actriz realizado em Sangue do Meu Sangue? Já que me parecem filmes que de alguma forma se relacionam.
Ligação há-de haver porque foi a mesma pessoa que os fez. Mas este filme parte de conceitos formais muito diferentes. Considero que existe aqui uma evolução. Todos partilham de um tema muito bem definido. Mas neste, o tema definido foi melhor concretizado.
Esta ideia de criar algo que chamei de ‘campo-contra-campo’, no sentido de ter dois filmes que comunicam um com o outro, foi de alguma forma prevista desde o início ou foi algo que acabou por se justificar ao longo do processo de criação?
Não, não. De todo. O Mal Viver existia. E o hotel podia não ter clientes. Podia ser uma espécie de Shining, sem o terror.
Sim, embora exista aqui até um terror latente…
Mas podia ser um hotel vazio. No entanto, a ideia desse desdobramento, com clientes, já existia se houvesse financiamento. A partir do momento em que os clientes apareceram, ou se tornaram viáveis, aí surgiu imediatamente a ideia dos dois filmes.
Portanto, foi algo que teve a ver com a produção.
Os clientes só poderiam existir se houvesse mais dinheiro. Poderia ser o mesmo filme, mas seria muito longo. Por outro lado, pareceu-me mais interessante ser o mesmo espaço e o mesmo tempo. E também haver histórias e vidas que se cruzavam e envolviam no outo filme. E vice-versa. Isso pareceu-me interessante. Aliás, essa ideia estava já presente no Sangue do Meu Sangue. Só que nessa altura não foi possível, por questões financeiras. Porque a nossa verdade não é a realidade, são muitas outras coisas.
Isso significa que a minha ligação ao Sangue do Meu Sangue não estava assim tão distante…
Não, não estava. Só que a nossa ideia original era serem dois filmes, duas histórias.
Uma coisa que achei logo fascinante no Sangue do Meu Sangue foi a abertura para o trabalho do som, que é muito complexa. Mas que se reflecte também no jogo da mise-en-scène, que às vezes é possível mas outras não é possível…
…Por falta de dinheiro (risos)!
Exactamente! (risos). Uma questão em relação ao hotel, em Ofir, que é também uma personagem. Imagino que é um espaço que conhecias bem…
Não conhecia assim tão bem. Lembrava-me dele. Aquele hotel, que fica a 40 kms do Porto, é do tempo em que havia muito poucas piscinas em Portugal. Lembro-me de os meus pais me levarem muitos fins de semana àquele hotel para ir àquela piscina. Isto quando eu tinha sete oito anos, por isso era ainda bem maior do que é agora. Portanto, nesta altura eu estava com medo que esse hotel já não existisse. Foi o último que vimos. Quando lá cheguei percebi que estava como o conhecia. Por uma razão simples, o dono do hotel é arquiteto e filho do dono do hotel que também é arquiteto. Portanto há aqui uma viagem no tempo, aos anos 60.
Ainda assim, o método de trabalho com os actores podemos levá-lo para o trabalho de actor e trabalho de actriz?
O método é sempre o método. Já não é esse documentário pedagógico e didáctico que usei até há pouco tempo. Agora já não, acho que está um pouco desactualizado em relação ao que eu faço. Mas usei muito nas aulas. Aliás, foi para isso que foi feito. O Mal Viver foi trabalhado durante um ano e meio, no mínimo. Com as actrizes. O Viver Mal também foi trabalhado exactamente da mesma maneira, embora com menos tempo, pois só pôde ser começado a partir do momento em que soubemos que teríamos dinheiro para juntar as várias histórias.
Imagino que o Strinberg ajudou para fazer essa função…
Sim, no cado do Viver Mal. Efectivamente, parte das peças do Strindberg. Eu reli o Strindberg praticamente todo. E fez-me todo o sentido que estas fossem personagens do Strindberg. São adaptadas livremente. Talvez o segmento do meio, O Pelicano, seja o mais parecido com a peça do Strinberg. Aliás, os nomes são os das divisões do filme.
Sim, são as três peças.
E os nomes são adaptações fonéticas. Neste caso, as personagens já estavam esboçadas.
Para além do Strindberg, digo eu, o Bergman também por lá anda, não é verdade?
É mais ao contrário. É por causa do Bergman que eu voltei ao Strindberg. Apeteceu-me fazer uma reavaliação do Bergman, e senti-me muito mais perto dele. Do que do mentor espiritual do Bergman, que é o Strindberg.
É natural que pegando na estrutura destes dois filmes nos venha à memória o díptico do Resnais, o Smoking, Non Smoking, que faz este ano 30 anos que esteve em Berlim. Sentiste que a proximidade estava lá?
Se o vi, foi há muito tempo, pois já não me lembro. Nem sei quem são os actores… O Pierre Arditti, acho eu.
E a Sabine Azéma.
Sim, é o mesmo espaço e o mesmo tempo. O que eu digo é isto: a verdade é individual, a realidade é outra coisa.
Isso é muito interessante. Podes elaborar melhor?
A verdade é a interpretação que cada um faz da realidade. E uma escolha que cada um faz da realidade. A ideia é exactamente essa. Há uma escolha no filme, uma realidade que se mostra. Portanto, uma verdade que se mostra, mesmo que subjectiva, mas por trás há uma oura realidade muito mais complexa. Que continua a existir, com a veracidade da primeira verdade que se mostra. É essa a interpretação da realidade, a interpretação da experiência. É sempre subjectiva. É sempre individual. A primeira vez que a Leonor Silveira viu o filme, o Viver Mal, ficou muito chateada porque estava sempre a seguir a história das outras, as donas do hotel, que lhe pareciam muito mais interessantes (risos).
Sim, e ela também está um bocado fora do seu registo.
Durante muito tempo, o seu registo foi muito particular. Mas ela é outra coisa, claro.
Gostei também muito da personagem de quatro patas (a Alma) que acaba por conferir a este universo feminino uma dimensão muito particular, porque elas são mulheres à procura de uma alma.
Sim. A propósito essa personagem já é defunta. Tinha uma doença crónica e já se feneceu. Sim, digamos que é uma projecção da alma. Porque numa relação com uma cadela não há a relação de responsabilidade de a amar. Esse amor é livre, não tem condicionantes, não tem constrangimentos. Mas ela ama a cadela de uma maneira que não consegue amar a filha. Não quer dizer que ela não ame a filha. A alma não é um trocadilho. Mas o nome real acaba por ajudar.
De certa forma, parece-me, que estas personagens vagueiam numa espécie de purgatório, entre duas coisas, que até pode ser o Inferno e o Paraíso.
Mas essa é excatamente a ideia. É o purgatório. Isto para não lhe chamar inferno.
Eu acho que só a Raquel, que é a personagem da Cleia, pode almejar a qualquer coisa. As outras acho que já não almejam a nada… (risos). E a miúda, mas ela acordou já no purgatório.
A ideia do Instagram, como espelho da nossa alma. Se calhar um elemento que faz, naturalmente, parte deste e de muitas histórias hoje em dia.
Sim, absolutamente. É o que eu digo: a verdade é individual. Aquela mãe, aquela Piedade, acha que foi uma mãe exemplar. Fez tudo o que esta certo. Segundo ela (risos). Tem a verdade dela. Mas choca com a verdade dos outros. E não tem muito a ver com a realidade.
Para ti, falar da Rita Blanco é falar do teu cinema. Tal como, mais recentemente, a Anabela Ribeiro. E com todo o potencial que elas têm. Ainda assim, gostam de ser dirigidas?
As actrizes nunca deixam de ser elas próprias. Elas têm é treino para se adaptar às circunstâncias. Mas nunca deixam de ser elas próprias. Para depois se poderem transformar. Elas transformam-se em personagens tornando-se em si próprias. Não há outra maneira. Pare serem verdadeiras. Mas podem fingir. Elas têm a responsabilidade de construir a integridade das suas personagens.
Os ensaios continuam a ser o espaço de trabalho e revelação…
Sim, de onde saem muitas coisas. Depois, ao haver um argumento, em que as falas foram todas escritas, são todas improvisadas e transformam-se em outra coisa. Mas saiu tudo delas. O que é interessa não é que elas cheguem a uma verdade; o que interessa é que criem a verdade delas. Depois eu posso manipular essa verdade e fazer diferentes representações dessa verdade, como me apetecer.
Das actrizes não das personagens.
Das actrizes, não das personagens. É a verdade delas enquanto interpretação daquelas personagens.
Vais estar em Berlim em competição, nas suas secções mais importantes. Como avalias esse posicionamento? Apesar de serem dois filmes que formam um só, não deixam de ser diferentes. E até justificam a programação dentro de outra secção. Concordas com essa visão?
Eu acho que eles estão no sítio certo. Acho que estão absolutamente no sítio certo. O Mal Viver está muito bem na competição. E o Viver Mal está certíssimo no Encounters. Porque o Viver Mal é uma derivação. O Mal Viver é o core, digamos assim. A origem.
E é nesse existir como peça umbilicalmente ligada que lhe dá essa justeza.
Como foi que se partiu para a realização com essa …
É aquela coisa chamada série de televisão. Quando estávamos a filmar haviam planos do filme, planos do outro filme. Cenas que repetíamos. Houve um grande trabalho dos assistentes de realização que exigi. Quase como um trabalho de relojoaria, para criar essa sincronização dos momentos dos planos. Uma outra coisa, que foi uma exigência a mim próprio, é que não há planos repetidos no Mal Viver e Viver Mal. Haverá um ou dois, mas em tempos diferentes do plano.
Apetece perguntar: dois filmes em competição, é para competir. O que pressupõe ganhar algo. Eu sei que esta questão é sempre complicada…
Ui, essa parte não respondo (risos)! Para mim, isto pode ser considerado cliché, mas o prémio já lá está. Já lá estar é um grande prémio, é um grande conforto.
Algum projecto que estejas a desenvolver?
Eu não posso parar. Preciso disto para comer. Até porque o conforto financeiro não existe. E a minha reforma, já o sei, vai ser uma miséria. E já não falta muito. Por isso preciso de trabalhar. Claro que sim, tenho um novo projecto. Chama-se Encenação. Com os vários significados que a palavra tem. Trata-se dos ensaios de uma peça de teatro. Com um grupo de actrizes que são encenadas por um encenador envelhecido. E que começa a ter consciência desse envelhecimento.
Imagino que não seja com nenhuma destas pessoas com quem costumas trabalhar. (risos)
São exactamente as mesmas (risos)! Só depois de ter parte do financiamento garantido é que posso começar a trabalhar com as actrizes.
É a parte que cabe ao Pedro Borges agilizar, presumo…
Exactamente. Como sempre.
Para rematar, diria que te consideras mais um director de actrizes, do que de actores. Estou certo?
Diria que elas têm estado mais presentes do que eles. Mas também me enfernizam (risos)! Mas dão-me mais do que eles.