Entrevista. João Porfírio: “A máxima do jornalismo implica que não se pode fazê-lo sentado”
João Porfírio, fotojornalista, conversou com o Espalha-Factos sobre as mudanças na cobertura dos media devido à Covid-19 e revelou como é estar atrás da objetiva da sua câmara em alturas como esta. A trabalhar desde os 19 anos, idade em que começou o estágio na Agência Lusa, é hoje, com 25 anos, editor de fotografia do jornal Observador.
Houve tempo para refletir sobre alguns dos seus trabalhos mais marcantes, das exigências da sua profissão numa altura em que Portugal vive um renovado estado de emergência. É apaixonado por política, sonha um dia poder fotografar Obama e Trump. Por fim, deu conselhos para aqueles que aspiram dar os primeiros passos nesta área de trabalho.
À saída do Palácio de Belém, onde acompanhou uma reunião do Presidente da República, o Espalha-Factos esteve à conversa, via chamada telefónica, com o ocupado fotojornalista e colocou-lhe algumas perguntas.
Quero saber, antes de mais, como tens vivido a situação que Portugal e o resto do mundo tem atravessado por causa do novo coronavírus?
Tenho vivido como a maior parte das pessoas. Tenho estado o máximo tempo possível em modo de teletrabalho, porque, para além de fotografar, também escrevo [para o Observador]. Muito do meu trabalho tem passado por isso, procuro sempre sair de casa para trabalhar, porque o fotojornalismo assim o exige. Tenho [também] noção que, sempre que saio de casa, fico exposto a um certo risco [de ser contaminado], mas quando o faço é para ir trabalhar, para fazer compras do essencial, ou ir à farmácia.
Tens notado diferença em relação à cobertura mediática destas últimas semanas?
Sim, claro. A máxima do jornalismo implica que não se pode fazê-lo sentado. Tem de se falar com pessoas na rua e fazer reportagem e agora, por causa circunstâncias em que estamos, tem de ser forçosamente por telefone ou online. Muitas instituições estão também fechadas. No caso da agenda política, por exemplo, a cobertura tem sido muito mais restrita, porque há menos jornalistas presentes. A própria conferência imprensa da DGS [Direção Geral de Saúde] tem também um número limitado de jornalistas, assim como, as presenças do primeiro-ministro António Costa e do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Aliás acabei de sair de uma das audiências do presidente. Neste caso, normalmente, poderiam estar 15 jornalistas e agora estavam apenas seis pessoas. Apesar da agenda política ter diminuído, [a mesma] não para.
Apesar do número inferior de jornalistas, tens sentido que tem havido uma maior camaradagem na classe jornalística ou está inalterada?
Esta situação não veio nem ajudar nem prejudicar a camaradagem entre jornalistas, porque já nos apoiávamos bastante, antes de tudo isto acontecer. Agora até nos vemos muito pouco, ou seja, o convívio diminui mas a camaradagem continua a mesma.
Sei que estás a preparar uma reportagem sobre o cenário atual em morgues e em hospitais [duas reportagens já publicadas] Acredito que esteja a ser um grande desafio para ti. O que é preciso para um fotojornalista fazer um trabalho deste calibre? Há alguma preparação psicológica?
É impossível prepararmo-nos [em termos psicológicos] para aquilo que vemos, que ouvimos ou que cheiramos. Quando falo do cheiro é mesmo verdade. O cheiro é algo muito característico em lugares como esses. Os hospitais cheiram muito a álcool e a desinfetante. As morgues cheiram muito a morto. Sei que é algo muito frio de se dizer mas é mesmo verdade. É algo que fica muito entranhado. Na minha opinião, o “depois” de estar num local é mais importante do que o “antes”. Tenho que ter o máximo de cuidado quando vou fazer uma reportagem sobre o coronavírus para não ficar infetado, ou seja, vou de fato completo: máscara, fato, óculos, luvas…
À semelhança dos médicos, certo?
Sim. Agora esta quarta-feira (8 de abril) vou para uma secção de cuidados de intensivos [de um hospital] no Porto e vou estar a menos de 20 centímetros de doentes infetados com Covid-19.
Considerei importante esclarecer esse ponto, [com o objetivo] para dar uma imagem visual às pessoas que estão atrás das câmaras. Creio que às vezes, o grande público esquece-se de pormenores como esse…
Num hospital, estou mesmo protegido de máscara e de luvas.
Fazendo agora uma comparação com um trabalho que fizeste [no início da tua carreira] em países onde há maior fluxo de refugiados, quero perguntar-te duas coisas: o que é que aprendeste com essa experiência e como a comparas com a situação atual da Covid-19? São situações comparáveis?
Acho que é muito fácil para jornalistas que estão no terreno tentarem encontrar algo para relativizar certos aspetos. Por exemplo, nos incêndios de Pedrógão Grande foi algo que também me custou imenso. Volto a salientar o que referi há bocado: o “depois” é muito mais importante do que o “antes”. Apesar de ser algo muito complicado de se gerir. No meu caso, eu vivo sozinho e começo a sentir o peso de certas coisas como não estar com os meus amigos ou família. Há certas coisas que pesam e surge, por vezes, pensamentos de não conseguir ajudar diretamente alguém nesses casos ou o facto de ter medo, porque, a verdade é que não sou a imune a nada. [Nestes casos] ter sanidade mental é saber quando é que tens medo, saber até quando podes ir e saber fazer jornalismo nessas situações.
Vou pegar nos incêndios de Pedrógão Grande que referiste para te questionar o seguinte. Nesse acontecimento, tiraste uma fotografia que se tornou quase indissociável da catástrofe. Estou a referir-me à fotografia na qual o presidente Marcelo Rebelo de Sousa conforta um idoso que chora desesperado face à tragédia. Passado uns tempos, esse mesmo idoso, Manuel Francisco Nascimento, acabou por falecer sem ter conseguido ver a sua casa reconstruída. Como olhas, hoje em dia, para a fotografia que tiraste?
A maneira que olho para essa fotografia não é de todo igual quando a tirei. Na altura [em 2017], via-a como símbolo de esperança, no sentido em que, tal como aquele homem, outras pessoas conseguissem reerguer as suas vidas. Agora, olho com [pequena pausa] alguma tristeza, porque sei que no lugar do senhor Manuel estavam também muitas outras pessoas que precisavam muito mais ou muito menos que o senhor Manuel precisaria. Deixa-me bastante triste, mas sei também que essa fotografia ajudou a abrir os olhos de muita gente, de muitas entidades, muitas personalidades políticas e não só. Dentro do que me é possível fazer enquanto jornalista, acho que o meu papel ficou feito. Sempre que há uma efeméride sobre esse acontecimento, tento sempre puxar essa fotografia para ficar presente na opinião pública.
Outra fotografia que tiraste e que impactou a tua carreira, e também a história da cultura popular portuguesa, foi a do funeral do Zé Pedro, guitarrista dos Xutos e Pontapés. Sei que és fã da banda. Como é que conseguiste conciliar o papel de fotojornalista e de fã em momentos como esse?
Mais do que fã, era amigo. Já o conhecia há muito tempo e [por essa razão] custou-me imenso. Foi dos primeiros trabalhos em que me recordo de estar lavado em lágrimas a fazer essa fotografia do caixão a sair do Mosteiro dos Jerónimos. Foi muito difícil. Mas lá está, não consigo tirar a ‘capa’ de jornalista e foi por isso que não larguei a máquina. Preferi despedir-me dele a trabalhar, a fazer luto do melhor que sei e teve o resultado que teve. Creio que foi a minha melhor homenagem que lhe podia fazer.
Vou tentar agora falar de assuntos não tão sérios, mas creio que seja difícil porque o teu trabalho é um reflexo de momentos críticos na sociedade portuguesa. Concordas com essa afirmação?
[Na minha opinião] é mais fácil as pessoas acharem uma fotografia marcante num momento marcante do que o contrário. Aliás os trabalhos de fotojornalistas que o público associa são em momentos de guerra. Não quer dizer que não tenham outras fotos incríveis, [porém] é mais comum as pessoas fazerem essa ligação.
Fotografas cultura, política, sociedade. Qual é a personalidade que mais gostarias de fotografar no futuro?
Ui, são tantas [risos]! Por exemplo, o Obama é uma delas. Gostava de fazer um retrato dele. Admito que gostava fazer do Trump também. António Guterres é outra. Creio que este seja mais possível fazer. Basicamente são grande individualidades políticas, porque é a área que mais gosto. No caso do Trump e do Obama é porque são pessoas poderosíssimas e importantes na História da política norte-americana. Polémicas ou não, isso não me interessa porque sou jornalista. Sou isento e não tenho que ter opinião sobre eles.
Tenho só mais uma questão. Qual é o melhor conselho que podes dar aos aspirantes de fotógrafos
[pequena pausa] Penso que o melhor conselho que posso dar é um bocado clichê, mas o melhor é mesmo não desistir se as pessoas querem mesmo seguir a área do fotojornalismo ou do jornalismo em geral. Porque o mercado de trabalho é muito propício a que elas desistam. Ou porque recebem mal, ou porque trabalham horas quase infinitas. Há imensos casos de colegas meus – não estou a falar do caso do jornal onde trabalho – que trabalham com condições precárias. Por isso é normal que os estudantes de jornalismo se possam sentir desmotivados. Não há nenhum diretor ou editor de fotografia que vá bater à porta da nossa casa perguntar se queremos trabalho. Isso não vai acontecer nunca. Tenho plena convicção disso. Eu comecei o meu primeiro estágio a ir sete vezes às instalações da [agência] Lusa e, à sétima tentativa, o editor de fotografia recebeu-me e, desde então, nunca mais saí do mercado de trabalho.
Entrevista de João Pardal, originalmente publicada em Espalha Factos.