Entrevista. José Barreiro: “As campeãs de vendas do Primavera Sound Porto deste ano são mulheres, não são homens”
Para quem frequenta um festival de música, a organização do mesmo é uma omnipresença silenciosa: o recinto, a programação e a qualidade da experiência resultam em boa parte das escolhas de quem orquestrou aqueles dias. A duas semanas do evento, a Comunidade Cultura e Arte levou o microfone a José Barreiro, o diretor do Primavera Sound Porto, dando palco às suas percepções e decisões, e permitindo compreender o racional que justifica as mudanças e continuidades num dos festivais de música mais importantes no panorama nacional.
Após um ano em que o recinto foi reorganizado e aumentado em área, na edição de 2024 a organização pretende que essas mudanças sejam agora fruídas nas condições originalmente idealizadas. De facto, a passagem por Portugal da tempestade Oscar — que gostou tanto do cartaz encabeçado por Kendrick Lamar, Rosalía, Fred Again.. e New Order que quis marcar presença — prejudicou em muito a experiência do público. Esta é a leitura de José Barreiro, que explora nesta conversa o rumo que projeta para o festival, em interação com as mudanças no perfil dos públicos do festival, bem como com os novos imperativos de sustentabilidade financeira num cenário de inflação.
O Primavera Sound Porto tem-se vindo a apresentar consistentemente com um dos cartazes mais diversos e estimulantes no panorama nacional desde a sua primeira edição, apesar de nos últimos anos a sua curadoria vir a mudar ligeiramente, para alegria de muitos e infelicidade de outros. Ao longo da conversa há oportunidade para se abordar essas afinações na identidade do festival, sobre a relação entre o festival portuense e o seu irmão mais velho de Barcelona, e sobre a aposta crescente no panorama da música portuguesa que, de acordo com José Barreiro, vive um momento particularmente bom.
“Esta é a minha opinião”, “é a minha opinião muito pessoal”, repete várias vezes o diretor ao longo da conversa. Acreditamos que a perceção de quem lidera é válida e útil de se conhecer per se: é a partir dessa sua forma de ver que acaba por tomar as decisões que vão impactar a realidade do desenho e implementação do evento. Dentro de duas semanas poderemos viver esses dias sonhados e preparados, e também nós deixarmos a nossa marca na forma de habitar e construir coletivamente aquele lugar onde nos podemos perder e reencontrar no meio de tanta música.
Estamos todos a fazer figas para que este ano não tenhamos outra vez uma tempestade como a do ano passado; mas, se tivermos azar, o festival está melhor preparado para lidar com esse desafio, a seguir a um ano em que o novo recinto apresentou alguns problemas?
Sim, bastante melhor preparado. Vamos aprendendo e melhorando, apesar de achar — na minha opinião muito pessoal — que temos o recinto com melhores condições em Portugal para um evento desta dimensão. O ano passado, com a deslocalização do novo palco principal, mais chegado à rotunda da anémona, o recinto claramente ainda não estava preparado. Ainda por cima, com a tempestade Oscar que nos assolou, em pior estado ficou. Estávamos muito otimistas com a relva preparada para receber as pessoas, e de repente temos quase um lamaçal em frente ao palco… Este ano acho que temos outras condições para receber as cerca de 40 mil pessoas que prevemos. Está tudo a correr bastante bem. Temos a noite da Lana Del Rey já esgotada há mais de um mês, estamos em last call para os passes, os outros dias também estão a vender normalmente… prevê-se uma das melhores edições de sempre do festival, agora de regresso ao formato de 3 dias.
Ainda em relação ao novo palco principal, algumas vozes queixaram-se de ter uma visibilidade reduzida, pelo menos em comparação com o anterior que era enquadrado no anfiteatro natural. O próprio José Barreiro afirmou o ano passado que haveriam de estudar formas de melhorar essa situação… o que foi feito?
Primeiro, o recinto já começa a estar muito mais amadurecido e preparado, em termos de sedimentação das terras. Depois, apesar de aparentemente ser plano, o recinto tem um desnível de 5 metros desde a entrada até ao palco. É um plano inclinado. Infelizmente a chuva não deu a oportunidade ao público de este apreciar como está feito o recinto, como nós lutámos para que a visibilidade fosse melhor, apesar de não ser um anfiteatro. O antigo palco principal, que agora é o Palco Vodafone, continua no anfiteatro. Não retirámos nada da experiência do festival; acrescentámos.
Com o crescimento que tivemos nos últimos anos, em termos de artistas mais pop, mais atrativos, de massas, no outro palco não era possível fazer estes concertos. Chegámos a ter 18 camiões atrás do palco, de material que as bandas trazem. Para chegar ao outro palco esse material tem de atravessar caminhos de terra batida. Basta uma chuva, fica logo tudo enlameado. Estávamos sempre a trabalhar no limbo, a correr riscos enormes, de ter de cancelar artistas, como acontece por essa Europa toda quando existem intempéries e os camiões não conseguem chegar ao palco. Se tivéssemos o azar de uma tempestade, como aconteceu o ano passado, sujeitávamo-nos a ter de cancelar grande parte dos artistas. E este novo palco permitiu-nos não cancelar. Apesar da intempérie, não houve nenhum concerto que começasse sequer atrasado. Começou tudo à hora, como se nada fosse.
A solução do novo palco principal visou por um lado aumentar a capacidade do recinto do festival, com uma área bastante maior para os cabeças-de-cartaz do que a do anterior palco principal, para poder receber 40 ou 45 mil pessoas; e, por outro, logisticamente, permite-nos trazer todos os tipos de banda. Podemos trazer os Rolling Stones ao Parque da Cidade! O festival sofreu o ano passado por não poder apresentar-se em condições ideais. Espero que este ano as pessoas mudem um bocadinho essa opinião, apesar de um anfiteatro ser sempre mais acolhedor.
“A mim não me faz confusão nenhuma que os portuenses possam usufruir de um desconto [no Primavera Sound Porto], mas montar isto é muito mais complicado do que as pessoas imaginam. (…) Ainda não encontrámos a fórmula, não quer dizer que no futuro não se encontre.”
Quem olha para o cartaz vê uma redução no número de bandas programadas relativamente aos últimos anos. O festival tinha vindo a crescer um pouco, e agora parece ter descido um degrau no seu “volume” (o que não significa qualidade menor). Isto é uma reação à inflação? É uma mudança de estratégia do festival? Como justifica este “passo atrás”?
“Atrás” ou “à frente”… mas o que está a acontecer agora na indústria mundial da música é cada vez mais os headliners serem disputadíssimos por muitos festivais; e isso faz subir muito o preço das bandas. No regresso depois da pandemia os preços das bandas subiram 50%. Um artista que pedia 300 mil está a pedir um milhão. Então temos de optar: o que é que queremos para o festival? Queremos um festival para 40 mil pessoas ou queremos um festival para 15 ou 20 mil? E, com o investimento que fazemos todos os anos no Parque da Cidade, tínhamos de avançar para ser um festival de grande dimensão, para o rácio económico ser viável. Senão temos um festival muito alternativo e não temos gente para pagar o que ele custa.
Kendrick Lamar era um artista que normalmente não viria ao Porto. Lana Del Rey iria a Barcelona e não viria ao Porto, e iria aparecer num outro festival de grandes dimensões em Lisboa. E nós quisemos ir à luta! Isso faz com que tenhamos de fazer opções. Mantemos os quatro palcos, com a programação das 17h até à 1h30/ 2h da manhã, cortando “em algumas gorduras” que o festival tinha. Em número de bandas até nem há grande diferença! O que foi retirado do festival foi o palco Bits, da música electrónica, que tinha uma programação de 4 ou 5 artistas por dia, entre DJs e live-acts. Não havia condições para prosseguir com ele. Deixámos de poder contar com o armazém onde ele funcionava. Estar a montar mais uma tenda noutra zona seria um problema para o Parque da Cidade, em termos de impacto ambiental. Para depois estarem 400 ou 500 pessoas que ficam até às 6 da manhã…
Fizemos este downgrade no número de artistas, mas aumentando a qualidade média desses mesmos artistas. E até agora tem sido uma aposta ganha: disputar headliners a nível internacional (com maior índice de procura nas pessoas que consomem música), e ao mesmo tempo cortar naquilo que achamos que não é rentável para o festival.
O ano passado disse numa entrevista que a venda dos passes gerais tinha sido suplantada pela venda dos bilhetes diários. Acha que o perfil do festivaleiro em Portugal, ou especificamente do festivaleiro do Primavera Sound Porto, tem vindo a mudar? É a evolução nos perfis dos públicos que motiva a mudança na forma de programar o festival?
O Primavera Sound Porto deve ser dos poucos festivais em Portugal que ainda consegue vender um número significativo de passes gerais. Há pessoas que querem ter a experiência de três dias. Mas acho que o que se tem verificado nos últimos anos — e isto é um fenómeno a nível global — é que o jovem consumidor de música não está para estar 3 dias no mesmo sítio, é muito mais solicitado para outras coisas. Tudo é mais efémero: “não quero estar 3 dias, quero ver o artista que gosto”. Acho que diminuiu a própria curiosidade destes jovens, mas que são capazes de fazer tudo para ver o artista favorito deles. Este fenómeno é muito visível no número de bilhetes que hoje se vendem para estádios. A Taylor Swift esgota dois Estádios da Luz em poucos minutos, esgotou a tour europeia toda em quatro horas. Num festival isso é uma coisa muito mais difícil de acontecer.
“Não quero quotas. Não quero que a música portuguesa seja programada porque é portuguesa, mas sim porque tem qualidade para ser programada. E acho que neste momento já temos isso, é uma questão de tempo para termos artistas portugueses a tocar em palcos ainda maiores.”
É possível ler isso como uma consequência da era do streaming? Em que aparentemente temos tudo à disposição, mas depois os algoritmos acabam por condicionar a descoberta…?
Levam-nos todos para o mesmo. Apesar de nunca ter sido produzida tanta música a nível global como é produzida hoje! Nos anos 80 e 90 vivíamos na ditadura das editoras; só ouvíamos o que as editoras tinham lançado. Hoje em dia, qualquer miúdo faz uns samples na internet e mete no Spotify e no Youtube, e de repente pode ser um grande artista. A produção musical nunca foi tão profícua. Mas, ao mesmo tempo, o número de artistas que as massas querem ver, acho que até reduziu. É a minha opinião, é o que tenho verificado nos últimos anos. Por muita música que se faça, qualquer coisa que venha da pop americana tem muito mais sucesso do que qualquer outra coisa; exceções feitas a algum reggaeton, a algum hip hop, a uma Anitta, por exemplo, que consegue pôr o funk brasileiro num nível planetário. Embora não seja o meu estilo musical, admiro imenso esses artistas que conseguem furar a malha da ditadura anglo-saxónica, e ter cada vez mais fãs.
O Primavera Sound Porto, atualmente, tenta tocar toda essa amálgama de produção musical, porque quer renovar gerações. Neste festival, com os quatro palcos, um pai pode estar a ver Lambchop, e um filho estar a ver um artista pop no palco principal. Nós conseguimos ter esta intergeracionalidade que se verifica em muito poucos festivais. Este equilíbrio é que torna diferente o público do Primavera Sound Porto. E por isso é que cada vez mais investimos no próprio recinto, para que tenha essa capacidade de permitir a toda a gente sentir-se bem.
Como é que é programado o Primavera Sound Porto? O festival de Barcelona apresenta alguma espécie de “caderno de encargos” com artistas que o Porto terá de programar? Ou funciona mais numa lógica de menu — um dos melhores menus do mundo, sejamos honestos — a partir do qual o festival portuense pode fazer uma seleção à sua medida?
Nesta altura, já há mais de um mês que estamos a trabalhar no cartaz de 2025, a fazer as primeiras opções, porque o booking de Barcelona começa já a receber dos agentes dos artistas, a informação do que vai estar disponível. Começamos a fazer uma pré-seleção: “isto interessa, não interessa, isto já cá esteve, aquilo não traz nada de novo”. Depois de “atacarmos” aqueles artistas que achamos que são mais relevantes para 2025, vamos trabalhar no resto. A partir daí entra mais “o ADN Primavera”. Temos até início de dezembro para montar o resto do cartaz. Desde a música mais frágil, à nova banda que se calhar daqui a 5 anos vão ser os maiores! Às vezes acertamos, outras vezes não acertamos. Mas nós fazemos as nossas apostas muito com base no nosso gosto.
“Na edição deste ano do Primavera Sound Porto também há uma nova aposta na música portuguesa. Antes os artistas portugueses tinham slots de abertura, a meio da tarde, e este ano temos artistas portugueses a tocar a horas com outro protagonismo.”
Às vezes o Primavera Sound Porto recebe um lote de artistas espanhóis, mas nem sempre temos uma representação significativa de artistas portugueses em Barcelona. Gostaria que mais artistas portugueses também fizessem esta ponte no sentido inverso, e apresentassem a sua música no festival irmão?
Acho que a música portuguesa tem evoluído bastante nos últimos cinco anos, e agora começam a surgir projetos que conseguem ser internacionais mantendo uma certa “portugalidade”, reinterpretando as sonoridades tradicionais, do fado, etc. Mas com uma roupagem completamente diferente. Acho que cada vez mais podemos ser internacionalizados. Gostava muito que mais artistas portugueses não só tocassem em Barcelona, mas também fizessem parte do circuito de festivais mesmo fora de Espanha: França, Itália, Alemanha, Inglaterra… Mas isto é um processo. Até sermos reconhecidos como produtores musicais demora muitos anos.
Mas estamos a fazer um caminho correto. Este ano já vai haver algumas performances de artistas portugueses no Primavera Sound de Barcelona, bem como no Primavera Pro. A tendência será esta. Eu não quero quotas. Não quero que a música portuguesa seja programada porque é portuguesa, mas sim porque tem qualidade para ser programada. E acho que neste momento já temos isso, é uma questão de tempo para termos artistas portugueses a tocar em palcos ainda maiores.
Para além disso, na edição deste ano do Primavera Sound Porto também há uma nova aposta na música portuguesa. Antes os artistas portugueses tinham slots de abertura, a meio da tarde, e este ano temos artistas portugueses a tocar a horas com outro protagonismo.
A relação com a cidade e o município do Porto tem vindo a consolidar-se ao longo dos últimos anos. Quão importante é este apoio para o festival?
É muito importante. Acho que a câmara municipal e a cidade se confundem, neste momento, e ainda bem. Para nós é fundamental o apoio que a Câmara do Porto dá ao festival, porque o vê como uma forma de exportar a imagem da própria cidade. Quando em 2022 perdemos o nosso principal patrocinador, foi muito importante ter esta base, esta solidariedade do município. Aumentou a dotação financeira para apoio ao festival, porque não queria de forma nenhuma que o Primavera Sound Porto saísse da cidade.
E nós temos de retribuir à cidade. Quando começámos, em 2012, constatávamos que cada pessoa que vinha ao festival ficava, em média, os três dias do festival, mais uma manhã ou uma tarde antes de irem embora. Neste momento já ficam quatro dias e meio na cidade, ou mesmo cinco dias. Nós tentamos mostrar às pessoas que vêm de fora que a cidade é muito mais do que o festival, que é interessante a nível turístico, pitoresca, cool, bonita, que está neste momento a ser muito recuperada. Desde que eu a conheci, há 10 anos, hoje é quase uma cidade nova, mantendo a sua tipicidade que a torna um destino turístico da excelência. E este alcance que a marca Primavera Sound tem no mundo da música faz com que muita gente viaje para os destinos onde o Primavera Sound está. Portanto, para nós, é importantíssima a ligação à cidade. É uma aposta para manter, e esperemos que da parte do município também seja, apesar de ser o último mandato de presidente da Câmara…
Acha legítima a aspiração de alguns munícipes de poderem vir a beneficiar de um desconto específico no preço dos bilhetes, reservado aos moradores da cidade, tal como acontece em Barcelona?
Compreendo isso por parte dos munícipes. Não tenho nada contra isso. Nós fazemos o Paredes de Coura, também, e há descontos para residentes. Será uma questão de haver uma forma de o operacionalizar; às vezes é difícil de executar essas ideias. É preciso um sistema organizado que permita identificar quem é cidadão do Porto e quem não é. Há coisas que têm de ser feitas a jusante para tornarmos isso possível. A mim não me faz confusão nenhuma que os portuenses possam usufruir de um desconto, mas montar isto é muito mais complicado do que as pessoas imaginam. Temos de fazer as coisas de forma legal. Ainda não encontrámos a fórmula, não quer dizer que no futuro não se encontre. A câmara está a desenvolver o Cartão Porto; acho que quando isso tiver uma dimensão que justifique, não me faz confusão nenhuma que possamos implementar algo.
Nos últimos anos temos tido alguns concertos que podemos considerar “históricos”. O regresso dos Stereolab quase em primeira mão, ou dos Pavement quase em exclusivo. A Rosalía em 2019, no momento de explosão da sua carreira, ou o Fred Again.. no ano passado; artistas que na data do festival já têm uma dimensão muito maior do que no momento em que o cartaz havia sido anunciado (uma programação “na muche”!). Na edição deste ano antevê algum espetáculo que tenha esta aura de “concerto-acontecimento”?
A performance de cada artista, e o impacto que tem no público do festival, é a coisa mais subjetiva que existe. Basta o artista nesse dia ter acordado maldisposto para o concerto não corresponder à nossa ideia de que ia ser um estouro! Mas acho que no cartaz deste ano temos artistas para criar esse tipo de impacto nas pessoas.
Temos o regresso aguardado da Mitski, que quando esteve em Paredes de Coura há 5 anos foi brutal. Estou muito curioso com aquilo que vai fazer agora. Depois temos as The Last Dinner Party, que são neste momento uma das bandas que estão a um passito de, se o segundo disco for igual ao primeiro, poderem ser as próximas estrelas inglesas na música. Pode ser um concerto marcante, também. A Sza é a primeira vez que vem a Portugal e é neste momento, se calhar, a maior representante da música americana, do R&B, do soul, na fronteira do hip hop, mas uma das artistas mais consagradas da atualidade. Mais coisas… Royel Otis é uma banda que me encanta. PJ Harvey vai mostrar-se também a estas novas gerações, para aprenderem de onde é que vem grande parte das coisas que eles ouvem. Acho que tem tudo para ser um grande festival.
Muitos dos nomes que destacou são artistas mulheres. A paridade de género é uma marca muito relevante do Primavera Sound, tanto em Barcelona como no Porto. Mas neste ano é ainda mais particularmente evidente, com uma noite que apresenta três cabeças-de-cartaz femininas. Como programador, sente orgulho de contribuir para este “novo normal”?
Sinto orgulho, acima de tudo, pelo trajeto. Hoje em dia a coisa está tão equilibrada que é estúpido não se fazer. A produção musical no feminino está tão grande como no masculino. Portanto, é relativamente fácil fazer-se um cartaz assim. Era muito mais difícil há cinco anos, quando começámos. Quando se deu o passo para isso, em 2019, foi um statement de integração, de se perceber que o machismo tem os dias contados; que não faz sentido que a ditadura das editoras e da produção musical exclua mulheres; que as mulheres na música não são pior pagas do que os homens, como são em tantos outros setores da sociedade, a nível não só português mas mundial. Perceber hoje que tínhamos razão em 2019 enche-me de orgulho. As campeãs de vendas do Primavera Sound Porto deste ano são mulheres, não são homens. Por isso sim, é para continuar.
E outra coisa que me enche de orgulho é este tema ter passado a ser já uma “exigência” para os outros festivais. Quando se faz uma noite num festival — seja mais seja menos comercial — sem uma presença feminina forte, esses cartazes já são criticados. E acho que essa é a maior vitória do Primavera.
Por fim gostava de lhe fazer uma pergunta que peço desde já desculpa se for um tema sensível. Recebemos há poucas semanas a notícia do falecimento inesperado de Steve Albini, que com o seu projeto Shellac marcou presença em todas as edições do Primavera Sound de Barcelona e do Porto. Em Barcelona haverá até um palco com o nome de Steve Albini. O que representavam os Shellac para o festival?
Os Shellac, e em particular o Steve Albini, foram, se calhar, o artista mais importante da história do Primavera Sound. Sentimos bastante a perda dele. Aliás, não vamos substituir os Shellac no cartaz, porque não são substituíveis; e muito menos numa edição em que ele finalmente ia trazer material novo [novo disco lançado a 17 de maio]. Mas a relação com os Shellac e o Steve Albini era quase umbilical, ao ponto de terem tocado nos palcos todos do festival. Não sei se alguma vez tocaram no palco principal, acho que era o único que eles não queriam sequer tocar. Diziam: “ah, não, nós queremos é um palcozinho fixe para desfrutar”. Houve um ano em que até tocaram no meio do público, pedimos um concerto surpresa. As pessoas estavam a entrar no recinto e eles a tocar no meio da praça de alimentação!
A banda tocava muito poucas vezes ao longo dos anos, e o concerto do Porto era sempre o final da mini tour que faziam, que começava em Barcelona, mais um ou dois concertos em Espanha, e vinham para Portugal. E nunca dispensavam um almoço em Matosinhos, iam comer peixe, todos contentes. Havia este carinho muito especial entre o festival e os Shellac.