Entrevista. Maria Reis: “A música, para mim, sempre foi um sítio onde eu conseguia formalizar ideias”
Maria Reis, lisboeta de gema, 50% das Pega Monstro, agora a solo, sem pseudónimos. Lançou, no final do ano passado, “Chove na Sala, Água nos Olhos”, um disco com a duração de 19 minutos que sabem a catarse. Actua hoje, dia 12 de fevereiro, na Culturgest, sem a companhia de palco habitual da irmã – a outra metade das Pega Monstro –, mas com a força e a certeza de que sabe o que está a fazer. Estivemos à conversa com Maria Reis para falarmos do passado, do presente e do que se passa no mundo das artes.
Começando pelas Pega Monstro, o projecto está em stand-by?
Sim, a minha irmã Júlia foi viver para o campo. Falamos, trocamos ideias mas é difícil tocar quando estamos afastadas geograficamente.
A transição para uma carreira a solo foi pensada ou foi por acaso?
Foi um desafio que tinha há algum tempo. É sempre diferente fazer as coisas sozinha, no processo de composição e tocar. Tocar sozinha é a mesma coisa na prática, mas há coisas que te põem mais em causa. Estás mais exposta, porque estás em teu nome, eu nem sequer procurei um heterónimo ou pseudónimo. Achei que era fixe pôr-me um bocado à prova, testar os meus limites de partilha de intimidade. E não há nada mais íntimo do que o teu próprio nome. No fundo, há muitas coisas que são idênticas como era com a Júlia. Apesar de sermos uma banda, como somos irmãs a dinâmica era também muito íntima. A maior diferença é o facto de ser solitário.
Maior a vulnerabilidade também?
Sim, mais em palco. As primeiras experiências de tocar sozinha é quando se sente mais. Quando estás sozinha em palco, está tudo em cima de ti. Tens isso mais presente. Quando estás com uma pessoa, não podes cagar totalmente mas tens margem de manobra. Quando estás sozinha, toda a gente olha para ti, mas fechas os olhos e faz de conta que estás em casa.
Este álbum embora tenha uma sonoridade “fresca” é um pouco pesado do ponto de vista emocional. Foi fruto da circunstância?
Talvez tenha alguma tendência para dramatizar. Se calhar também tem a ver com a idade, não o facto de dramatizar, mas falar sobre o drama. Tentar relativizar o drama através do raciocínio. Compor funciona muito como equações que eu consigo formar, como se fosse um pensamento com premissas e regras de lógica. Conseguir relativizar os dramas desta maneira é, e isto soa a cliché, uma coisa terapêutica no sentido que quando espelhas os dramas sentes uma leveza. A música, para mim, sempre foi um sítio onde eu conseguia formalizar ideias. Quando eu canto, canto muitas vezes sobre mim. Não é só um espelho sobre uma sucessão de acontecimentos, mas acontecimentos comigo lá. A capacidade de reformular memórias e até de criar outras. Depois já não são as minhas, mas as de toda a gente. Sinto que quando eu canto, as canções já não só minhas. As pessoas relacionam-se mais com a música, e não só, quando se vêem ali. Quando te consegues reconhecer numa música ou num livro é que percebes “ah gosto disto, estou a reconhecer alguma coisa como verdade”.
Como veres o quadro todo…
Há esta ideia de que os artistas têm uma cabeça politizada. Capacidade de politizar ou de falar das pessoas de uma forma como os filósofos talvez faziam. Falar das coisas de uma forma mais poética do que os economistas ou assim. Acho que é importante não perder o que a filosofia nos deu, que é falar de nós e dos outros com graça poética. Podemos falar da realidade e não ser só números, e ser uma coisa bonita.
Há um ano entrevistámos o Manel Cruz e perguntámos se ele achava que se tinha de sofrer para criar. Qual é a tua opinião sobre isso?
Há esse cliché, que os artistas sofrem por sofrerem. A verdade é que quando estás numa crise existencial ou depressiva, não te consegues mexer, até ir à casa de banho é um problema. Não acho que seja imperativo sofrer, mas é mais a nossa capacidade de reconhecer o sofrimento. Acho que é isso que torna o processo criativo possível, nós termos consciência das nossas próprias emoções, sem estar em negação ou em egocentrismo ou egomania. Porque aí estás desligada das tuas próprias emoções. A consciência do sofrimento é que é boa para o exercício criativo, não o facto de sofrermos. Sofrer é a única certeza da Humanidade.
Como se fosse um processo catártico?
Sim. Ou de transformação.
Fala-se muito na questão das artistas mulheres. Já ouvimos um promotor dizer que as mulheres não tocavam guitarra por terem medo de estragar as unhas. O Primavera Sound tem quase a paridade, até tem mais mulheres do que homens, mas qual é o impedimento para ti para que isto não aconteça sempre?
Acho que só fiquei mais consciente nessa realidade… comecei a tocar com 13 anos, tocar guitarra e tocar com bandas e assim. Nunca senti um impedimento de ninguém, nem dos meus pais. Não me lembro de me ter sentido menos livre do que o meu irmão, que também é músico. Mas quando comecei a ficar profissional, e a fazer entrevistas, perguntavam-me muito sobre o que é ser uma rapariga a tocar e eu ficava “não sei o que é que ter mamas tem que ver com pegar numa guitarra”. Mas quanto mais o tempo passa mais fui obrigada a ter uma atitude, ou a ter uma consciência em relação a isso. Quando se é privilegiada, não sentes. O meu privilégio foi ter essa liberdade desde miúda. Nunca me senti desvalorizada. Comecei a tocar com a minha irmã e éramos sempre as únicas raparigas. Vais para uma sala de espectáculos e o técnico de som é um homem, e quem marca os concertos é um homem, são todos homens. Isto faz diferença, não é por causa da quota, faz mesmo diferença porque a dinâmica muda completamente. Não é porque as mulheres são melhores do que os homens, mas há um respeito maior quando as coisas são claras. Quando percebes que não há ninguém que não pode fazer o trabalho porque era assim. Quando as coisas são claras, ficas mais à vontade. Acho que não é uma coisa de as mulheres não quererem estragar as unhas [risos], isso é a coisa mais esquisita que eu já ouvi.
Achas que há preconceito, não há oportunidades?
Não é igual. Falava disso com um amigo sobre o facto de eu não ser assim, e de nem ter essa agenda tão pública de falar sobre isto. Mas disse-lhe que era completamente diferente para mim em relação a ele. Eu estava vestida com um t-shirt e com umas calças, a tocar com a minha irmã com uma t-shirt e umas calças, e dizem “mostra as mamas” – não é igual! E a ele nunca pediram para mostrar a pila. É diferente, mesmo que eu estivesse com um decote não tinham de dizer isso, mas vão sempre usar o facto de teres mamas como manipulador, para te sentires pior, para te sentires mal. É uma merda. Eu não papo grupos, não sou afectada por isso, mas percebo perfeitamente que pessoas que tenham uma auto-estima mais baixa ou problemas de confiança ou de se sentirem confortáveis consigo mesmas, qualquer comentário deste género as impeça de fazer qualquer coisa. Não tenho dúvidas sobre isto. É claro que esta diferença de oportunidades é óbvia. Quando há um gajo que faz este tipo de comentários, não é por ser real, mas sim o facto de ele fazer esse tipo de comentário é lixado. Só ele pensar assim, já é um problema. Não é uma questão de ter razão, é ele ter esse tipo de pensamento.
Achas que acontece em todos os estilos de música, um homem não dirá tanto isso a uma fadista, por exemplo.
Não, mas diz que é muito sensível, ou que é uma musa. E fica sempre aquele papel muito distante, como se fosse uma fadinha, ou uma sereiazinha. Distante da realidade, sem grande peso de fazer as coisas e de mudar culturalmente. Nem acho que seja só na música, acho que é em tudo. Há uma descredibilização na técnica feminina, e também há uma infantilização nas emoções masculinas, o que nos impede de avançar. Quando um homem tem sentimentos é “oh que cena” e quando uma mulher não tem sentimentos é “está com o período”. É tão díspar. Quando um homem tem sentimentos é menos homem por isso, quando uma mulher não tem sentimentos é menos mulher por isso.
No mundo da música alternativa em Portugal não há mesmo muitas mulheres…
Não há e é mesmo pelo discurso. Qualquer comentário alimenta esta merda. É preciso ter cuidado com o que se diz porque as coisas afectam as pessoas. Não me afectaram porque, sei lá… afectaram de certa forma.
A vulnerabilidade que se sente em palco e ter esse tipo de comentários são suficientes para afastar que alguém de fazer alguma coisa…
Para mim, a única coisa que me faz ignorar isto é eu querer mesmo fazer isto. E eu sei que faço isto bem, faço melhor que muita gente, faço melhor que qualquer homem que me apareça à frente. E tenho esta certeza tão presente que é suficiente para mim. Tem a ver com o meu ofício, não com as minhas jogadas ou com a indústria. Acredito na minha qualidade como compositora. Eu sei que tenho jeito para fazer isto, e é o que me dá confiança. Qualquer que é fixe quando as pessoas me dizem que gostam, mas é mais importante o facto de eu gostar. Compor dá muito trabalho, é uma coisa que tens de estar sempre a estimular, como um exercício físico.
Andas sempre com o bloco de notas atrás?
Mais ou menos, eu gravo muito aqui no dictafone [risos] na rua. Não escrevo tanto como faço as melodias.
Este disco é bastante rico liricamente, as letras são escritas antes ou depois da melodia?
O meu processo de escrita é sempre depois da melodia. Para mim a melodia é que traz a palavra, quando tens a melodia até já estás a cantar a palavra que melodicamente encaixa naquela melodia.
A melodia condiciona a letra?
Formaliza metricamente e o que se vai cantar. O trabalho depois é economizar a língua, não dizer coisas a mais – que é importante. Aquela palavra que é só para chegar a outra, o que acontece muito em português. Pelo menos eu estou sempre a lutar contra os meus vícios da linguagem, de dizer coisas a mais. Encontrar palavras-chave que abram aquele cofrezinho. E isso é muito trabalho de auto-edição, de contenção e de optimização. Dizer só o que se quer dizer, e não estar a dizer advérbios só por dizer. É como passar por aquelas coisas da areia para tirar as conchinhas… como é que se chama isso? [risos]