Entrevista. Marina Sena: “O assunto que permeia todas as minhas músicas é a liberdade”
Marina Sena não dá sinais de querer parar. Com um novo espectáculo na estrada — que a artista trará a Portugal no próximo mês — a artista de Minas Gerais continua a explorar Vício Inerente, o seu surpreendente segundo disco de originais, que levou a sua música marcadamente brasileira na direcção de outros estilos pop e que serviu para consolidar a sua posição como uma das artistas mais entusiasmantes e trabalhadoras do Brasil.
Um ano depois de falarmos com Marina Sena sobre o lançamento de Vício Inerente, voltamos agora a falar com a artista brasileira em antecipação do seu concerto no festival Ageas Cool Jazz, em Cascais. O espectáculo decorrerá no dia 27 de Julho, como parte de um alinhamento maioritariamente dedicado à música brasileira, dado que Marina partilhará os deveres de cabeça-de-cartaz com Luedji Luna. Desta vez, conversámos com Marina sobre o que a inspira a compor, sobre ter tempo para descansar, sobre o receio de se posicionar politicamente com a sua projecção actual e ainda sobre o próximo trabalho da artista, que já está em processo de criação.
Há um ano, falámos na altura do lançamento do Vício Inerente. Ao final de um ano, qual é o balanço que fazes da receção do público ao disco?
Acho que foi ousado da minha parte lançar o Vício Inerente, depois de ter lançado o De Primeira, porque fica parecendo que mudei muito, embora eu seja a mesma pessoa. Mas foi uma movimentação bem diferente para o que esperavam que eu ia lançar no meu segundo projeto. E aí percebi que as pessoas foram surpreendidas de forma positiva, porque viram também que sou uma artista que realmente é ousada — e o meu próximo trabalho também vai ser ousado, porque gosto de brincar com a arte. Então sinto que as pessoas me viram do jeito que gostaria que as pessoas me vissem, que é como essa artista que ousa, sabe? Então, para mim, o saldo do Vício Inerente é principalmente isso, é ver que entenderam o que sou como artista. Mas viram só um pedaço também, porque tem outras facetas que ainda se mostram no decorrer da trajetória de qualquer artista. Mas foi interessante ver como as pessoas me vêem agora, acho que como artista que veio para ficar mesmo.
E a tua relação com as canções do Vício Inerente mudou de alguma forma neste ano?
É, já estou em outra vibe, porque comecei a compor já o meu próximo trabalho. Porque, querendo ou não, é isso que acontece — é igual ao De Primeira também. No último ano que estava fazendo o show do De Primeira, eu já estava na vibe do Vício Inerente. Queria muito que as pessoas estivessem escutando o Vício Inerente, queria muito estar fazendo o show do Vício Inerente… E agora estou exatamente nesse momento que estou assim: gente, tenho outra coisa para mostrar para vocês! Queria muito que as pessoas vissem, então agora comecei a tocar violão numa parte do show e me dá uma vontade já de tocar uma música nova, de pegar assim e falar, “Não, gente, vou mostrar uma música nova aqui para vocês”. Me dá muita vontade, porque eu realmente estou na vibe do próximo álbum, mas sinto que já amadureci a própria ideia do Vício Inerente na minha cabeça.
Sinto que talvez se fizesse o Vício Inerente hoje, ele seria já mais robusto, porque quando o Vício Inerente nasceu, ele era um bebé, e hoje na minha cabeça ele é um adulto. Então, sinto que me expressaria de um jeito diferente, acho que a própria ideia do Vício Inerente amadureceu na minha cabeça. Mas enfim, acho que isso acontece com qualquer trabalho — com o De Primeira isso aconteceu. De repente, olhei e falei: “Nossa, eu faria isso aqui diferente”, porque a própria ideia vai amadurecendo. Mas o bom é que no show a gente consegue mudar. Agora mesmo fiz uma versão nova do show do Vício Inerente, o Vício Inerente 2.0, e já senti que consegui trazer esse amadurecimento que sinto nesse novo, sinto que o show me trouxe um gás com relação ao Vício Inerente.
“O assunto que permeia todas as minhas músicas é a liberdade, independentemente do que eu estiver falando.”
E sobre esse novo trabalho, já podes divulgar alguma coisa sobre ele ou ainda está tudo em segredo?
Gosto de falar sobre o meu processo, não gosto muito de fazer segredos, sabe? Mas estou no processo de composição das músicas. Ainda não sei exatamente… Já tem um caminho que se traça, já vejo que tem uma sonoridade, tem uma textura que é só dele, mas ainda não consigo saber qual vai ser o resultado final disso. É bem brasileiro. Peguei muito nessa coisa dos ritmos brasileiros mesmo, da coisa latina. Acho que é mais isso que eu posso falar, porque não posso saber ainda como vai ficar essa produção musical no final — o que vai soar mesmo, sabe? Mas as composições são mais parecidas com o De Primeira do que com o Vício Inerente, mas ao mesmo tempo é como se fossem um De Primeira amadurecido, mais adulto, com mais carga de vida. Com mais revolta.
Tens falado muito sobre essa questão da madurez e de ser adulta. De que forma é que esse peso de ser adulta chegou e quais foram as maiores mudanças que tens sentido nesse aspecto?
Olha, a primeira coisa que mudou é a coisa de pagar imposto, que antes não tinha dinheiro e não pagava imposto [risos]. Não é que não pagava — o tempo todo você paga imposto — mas hoje em dia, tudo isso que envolve burocracia, que é uma coisa que me assustava, realmente foi uma coisa que mudou mesmo. É uma coisa que eu sinto o impacto disso, sofro com isso, todos os dias da minha vida. Não acredito que a gente precisa pagar tanta coisa. Isso foi uma coisa que mudou.
Acho que a minha confiança, na minha própria profundidade, cada vez mais se fortalece em mim. Escreveram uma crítica sobre o meu show esses dias e foi bonito uma frase, que “a gente é excelente naquilo que a gente é profunda”. E acho realmente que a gente é excelente naquilo que a gente é profunda e sinto que cada vez me sinto mais excelente na minha profundidade. Consigo galgar um pouquinho mais, sabe? Chegar além no meu processo de evolução como ser humano. Cada vez mais eu chego numa camada mais profunda e isso para mim é a coisa mais interessante de ficar adulta, de envelhecer.
“A energia que você coloca no seu canto, no seu jeito de se impor como artista, diz muito mais do que a palavra em si que você pôs numa música.”
Na última entrevista, disseste que, para ti, lançar música tem a ver com a tua demanda criativa. O que é que te inspira a criar e a compor música?
Sempre pergunto muito isso na terapia: o que é tanto que eu quero gritar para as pessoas? O tempo todo, essa é a minha grande pergunta. Acho que desde que comecei a fazer terapia fortemente, é o que a gente mais fala. Porque a característica do meu jeito de cantar tem uma coisa gritada, tem uma coisa meio petulante, cortante no meu jeito de cantar, que é uma coisa que não consigo tirar de mim mesmo que lute. Tipo, não tem o que fazer, isso é meu. Quando vejo, já estou cantando assim, sabe? No final, a energia que você coloca no seu canto, no seu jeito de se impor como artista, diz muito mais do que a palavra em si que você pôs numa música, e cada vez mais tenho percebido isso.
Porque, às vezes, beleza, eu fiz uma música para um boy que me inspirou. Estou apaixonada e fiz uma música para o boy, entendeu? Mas qual é realmente o teor dessa música? Porque, por exemplo, quando eu falo de amor, toda vez que eu falo dessa coisa afetiva, é sempre num lugar de: ou eu estou entrando nisso aqui e eu vou ficar presa e não vou dar conta, ou eu quero sair muito disso aqui, porque eu quero ser livre. Então, o assunto que permeia todas as minhas músicas é a liberdade, independentemente do que eu estiver falando. Por exemplo, “Voltei Pra Mim” é uma música de amor, que eu estou indo embora do cara, mas é muito mais um hino de liberdade mesmo, de “eu vou ser bem melhor se eu realmente largar tudo que me segura”. É muito mais sobre isso. E eu percebo que todas as minhas músicas têm sempre um grito de liberdade, um grito de “Meu Deus! Eu preciso sair daqui! Eu preciso ir ali!”, sabe? [risos] Eu acho que é isso que me inspira, é a necessidade da liberdade, que é a coisa que realmente mais me inspira.
E é engraçado, porque nesse novo álbum estou falando de amor com muita tranquilidade. Não como uma coisa que me prende, e muito mais, inclusive, como uma coisa que me liberta, que é uma coisa que eu não fazia antes. Antes, você pode reparar, nos meus dois álbuns, o amor é sempre uma coisa… que incomoda. Ao mesmo tempo que gosto e sou viciada naquilo, eu me sinto presa. E nesse novo álbum, não tem essa energia do “me sinto presa”. Tem muito mais a energia do “eu estou te amando e estou livre”.
Em termos de composição, gostas de te desafiar mais e fazer coisas novas ou preferes ficar numa zona de conforto, naquilo que já conheces mais?
Gosto de mesclar, entre me desafiar e ficar um pouco também na zona de conforto — porque a zona de conforto, querendo ou não, você tem muita habilidade na zona de conforto! Então é bom também você mostrar toda aquela habilidade que você tem na sua zona de conforto. Mas eu gosto também de me colocar para jogo, me colocar para o debate, para errar também… Eu me sinto livre quando faço isso, inclusive, porque as zonas de conforto também te aprisionam, não é?
“Estou-me organizando para poder ter mais tempo. Basicamente, no capitalismo, o seu tempo você compra, não é? [risos]. Então, eu estou realmente juntando o meu dinheiro para eu poder ficar mais em paz, para poder ficar mais tranquila mesmo.”
Sim, com certeza! Tens feito muitas coisas, muitas tours, lançado muito material… e na última entrevista falaste que não querias descansar. Como é que lidas com esta quantidade toda de trabalho? Não sentes falta de algum tempo de descanso?
Sinto muita falta… mas ao mesmo tempo eu entendo o momento. E estou-me organizando para poder ter mais tempo. Basicamente, no capitalismo, o seu tempo você compra, não é? [risos]. Então, eu estou realmente juntando o meu dinheiro para eu poder ficar mais em paz, para poder ficar mais tranquila mesmo. Porque tem isso, você precisa produzir arte, produzir conteúdo de qualidade e isso é caro. Então, não tem como eu simplesmente falar assim, “ah, vou parar aqui”, sabe? Eu preciso realmente de me estabilizar de um jeito que, se eu parar, isso não vai danificar a minha arte, entendeu? A possibilidade de eu criar… que é a coisa que mais me preocupa, não me preocupo com mais nada! Eu amo conforto, luxo… adoro, adoro. Mas me importa muito mais ter dinheiro para fazer o meu álbum, ter dinheiro para fazer meu clipe, ter dinheiro para produzir meus shows e pagar os profissionais da forma que eles merecem. Isso me preocupa muito mais, então eu realmente quero essa estabilidade.
Isso é uma forma um pouco prática de ver as coisas, mas muito justa, claro. Mas, ao mesmo tempo, a tua música é muito mais emocional. É difícil para ti, de alguma forma, balançar esses dois lados?
É difícil. A gente vai balançando, mas é difícil. Por exemplo, fiquei cinco anos compondo o De Primeira. E foi um momento que eu trabalhava com a outra banda, a [Outra Banda da] Lua, a gente ensaiava todo dia, mas era um jeito de trabalhar muito mais fluido. Não tinha tanta agenda como tenho hoje, essa agenda minuciosa, cada hora é importante. Antes não, a gente ia pro sítio, ficava lá tocando, aí daqui a pouco pegava o violão, fazia uma música, ia ali, tomava um banho de piscina… tipo, era uma coisa mais fluida, era um ócio eterno. Foi cinco anos de uma espécie de… um ócio criativo mesmo, porque eu estava o tempo todo envolvida com música. Então, como trabalhar com isso é meio subjetivo — você não sabe exatamente quando você está trabalhando, porque a todo momento você está trabalhando com isso — era uma espécie de um ócio, uma coisa legal.
Por exemplo, o “Por Supuesto”, que é o meu maior hit, surgiu num momento de ócio profundo, e é a minha música que tem mais número, sabe? Nenhuma do Vicio Inerente, por exemplo, bateu ou chegou perto de “Por Supuesto”, que foi uma música que compus ali num momento muito específico. Acho muito importante o ócio. Para mim, importa muito o ócio. Acho que clássicos igual a “Por Supuesto” só surgem se você estiver imersa desse jeito na sua existência, na coisa do ócio, de pensar você mesma. Acho que você só consegue acessar esse ponto se você estiver jogadona no ócio. Então realmente eu sinto falta, porque acho que consigo aproveitar melhor de mim se estiver mais conectada, principalmente conectada com a natureza, inclusive. Quando estou no meio do mato, eu sou mais feliz, eu sou mais eu.
O mundo tem passado por vários momentos de crise, como catástrofes naturais e crises políticas. Alguma vez sentes o impulso de ser uma artista mais destacada politicamente ou que fala dos temas atuais da sociedade?
Olha, eu sinto, sim. E eu, inclusive, sou uma artista que pensa muito sobre isso. É engraçado, porque realmente não sou de dar muito a minha opinião hoje. Depois de minha voz tomar essa proporção, eu parei de dar a minha opinião, mas antes, quando minha voz não tinha proporção nenhuma, eu dava a opinião de tudo. Eu era a opinião, tipo, completamente posicionada o tempo inteiro, sabe? Mas depois que ganhei uma proporção e vi que muitas coisas que você fala são distorcidas, principalmente pela mídia mesmo. A mídia distorce o que você fala de um jeito… E a gente vive uma coisa no Brasil, que realmente a educação não é a coisa principal que lidam no Brasil, entendeu? A educação é uma coisa que precisa melhorar muito, a gente precisa entender as coisas mesmo, a gente precisa estudar mesmo, tem que se incentivar as pessoas a realmente estudarem… Então você vê que as coisas são distorcidas e o Brasil é muito grande, e cada um entende de um jeito o que você está falando ali, sabe? Cada um interpreta de um jeito. Aí você vê que ninguém realmente entendeu exatamente o que você falou. A pessoa entendeu tudo menos o que você falou. Aí isso me fez ficar um pouco medrosa com relação a ficar me posicionando tanto assim, sabe? Comecei a pensar melhor, porque cada palavra, cada vírgula… quando é uma pessoa que a voz tem uma proporção desse tamanho, a vírgula que você vai pôr importa. Se você coloca uma vírgula errada, meu amor, fodeu para você, entendeu? E isso me fez realmente ficar um pouco medrosa.
Acho que vou conseguir voltar a ter minha opinião mais firme, mas preciso me empoderar melhor da minha opinião, sabe? Sinto que preciso fazer isso como artista, como pessoa. Porque sou essa pessoa de opinião — se você conviver comigo um dia, você vai me ver dando opinião de tudo. Mas sinto que, para trazer isso a público, eu preciso realmente empoderar mais a minha opinião e preciso de estudar mais também.
Por exemplo, nas provas de história na escola, nunca acertava total, mas também nunca errava. Sempre era meio certo, porque eu realmente não estudava para a prova, mas a minha opinião sobre aquilo era contundente. Não tinha como o professor falar que estava errado também, entendeu? Porque realmente eu sempre tive uma capacidade de analisar o ambiente, saber que 2 mais 2 é 4, e acho que na história é igual como na matemática: se você fez isso mais isso, vai dar nisso, e isso acontece em todas as épocas do mundo. Acho que desde que existe ser humano, as coisas vão-se repetindo, por isso é tão importante estudar história, porque realmente as coisas se repetem. Só que eu sinto que realmente eu preciso empoderar mais a minha opinião, porque quando eu vejo pessoas dando opinião sem saber, eu fico assim, “era melhor não ter dado, era melhor ter ficado calada, sabe?” [risos]