Entrevista. Renato Martins: “Os gabinetes de apoio psicológico que já existem [nas universidades], além de serem insuficientes, muitas vezes não são gratuitos”
A presente entrevista foi cedida à Comunidade Cultura e Arte no âmbito da parceria com a ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina).
No estudo intitulado Burnout Buddy, que a ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) desenvolveu, em 2020, e que pode ser consultado neste documento e aqui também, foram inquiridos “cerca de 1700 estudantes de Medicina sobre o seu estado de saúde mental. Quase 60% dos mesmos afirmaram já terem estado em burnout em alguma fase do seu percurso académico“, revelou Renato Martins, o Director de Saúde Pública da ANEM, mesmo que em muitos dos casos reportados não tenham tido um diagnóstico efectivo. Trata-se de uma percentagem elevada, uma vez que em estudos internacionais os resultados apontam os 40% ou 45%. Acrescentou ainda que, embora não se possa afirmar que as universidades não tenham consideração por este assunto, o burnout estudantil, considera que faltam gabinetes de apoio psicológico para darem respostas atempadas aos estudantes, principalmente em época de exames, quando é precisa uma resposta “mais imediata”, avança.
Renato Martins referiu também que, quanto a psicólogos disponíveis nas universidades em Portugal, o rácio nacional chega a ser “de um psicólogo para 2 mil , 3 mil ou, até mesmo, 5 mil alunos”, quando o apontado como ideal seria o de “um psicólogo para cada 500 alunos”, revela. Por isso, segundo esclareceu em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA), tem de existir uma maior consciencialização por parte das faculdades, que deveriam dinamizar e promover melhor os recursos de ajuda que mantêm, assim como estas advogarem por um maior alerta dos estudantes, uma vez que grande parte desconhece os recursos que tem à sua disposição ou não tem diagnostico feito, apesar do reconhecimento de, pelo menos, uma fase de burnout durante o seu percurso estudantil. Os estudos apontam que as ciências biológicas surgem sempre, ou quase sempre, em primeiro lugar no que concerne a estudantes em risco de burnout ou que já passaram, mesmo, pela síndrome. Embora a presente entrevista foque os estudantes de Medicina, até porque essa é a área de Renato Martins, deixa-se o alerta que qualquer estudante de qualquer curso superior pode estar sujeito a esta situação e os recursos existentes devem, por isso mesmo, estar acessíveis e de igual forma a todos os alunos das mais diversas áreas do ensino superior.
Em 2020, foram apresentados os resultados de um estudo do Instituto de Psicologia Aplicada (ISPA), liderado por João Marôco. Esses resultados indicavam que mais de metade dos estudantes universitários se encontravam em burnout, na altura. Tens percepcionado isso, e tens percepcionado isso, principalmente, nos estudantes de Medicina?
Não tenho conhecimento desse estudo, mas o que vemos aqui, na ANEM, e nos estudantes de Medicina é que, efectivamente, também somos uma comunidade mais susceptível ao burnout e à sobrecarga mental. Fizemos, também, o nosso estudo, à data desse mesmo estudo, em 2020, chamado Burnout Buddy, em que inquirimos cerca de 1700 estudantes de Medicina sobre o seu estado de saúde mental. Quase 60% dos mesmos afirmaram já terem estado em burnout em alguma fase do seu percurso académico. É de realçar, ainda, que sendo estes dados pré-pandémicos, poderão não corresponder à realidade actual reconhecendo-se um agravamento destes dados de forma consequente à pandemia. Os resultados que obtivemos com este estudo — o facto de quase 60% dos estudantes terem estado, durante o seu percurso académico, em burnout ou, apesar de sem diagnóstico efetivo, acharem já terem estado — são superiores, mesmo, aos resultados dos estudos apontados internacionalmente. São, normalmente, apontadas percentagens entre os 40 a 45%, nos diversos estudos internacionais sendo que os estudantes que costumam ser apontados com maior prevalência de burnout e de problemas de saúde mental associados ao estudo são os estudantes de Medicina, de Enfermagem e das áreas das Ciências Biológicas, o que pode justificar os resultados obtidos. Alguns estudos apontam, também, os estudantes de Engenharia devido à elevada exigência destes cursos por isso, sim, esse estudo vai ao encontro daquilo que nós próprios constatamos.
“Em 2020, inquirimos cerca de 1700 estudantes de Medicina sobre o seu estado de saúde mental. Quase 60% dos mesmos afirmaram já terem estado em burnout em alguma fase do seu percurso académico.”
Renato Martins, Director de Saúde Pública da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina)
Achas que as faculdades têm tido em conta esta problemática e estes dados? Têm oferecido as respostas indicadas?
É errado afirmar que não há, de todo, consideração por esta temática por parte das faculdades. Varia de faculdade para faculdade e, felizmente,tem havido mais consciencialização para esta temática. Gostava, todavia, de referir que em muitas das universidades, o problema está em não terem o número de profissionais suficientes para suprir as necessidades. Enviamos este estudo para as faculdades e tentamos fazer campanhas de sensibilização junto das mesmas, para que os recursos sejam maiores, no entanto, se analisarmos o que nos dizem diversos estudos internacionais, o rácio ideal seria o de um psicólogo para 500 estudantes, no entanto, algumas faculdades continuam a ter um rácio de um psicólogo para 2 mil, 3 mil ou, até mesmo, 5 mil alunos. Ou seja, um rácio que devia ser de um psicólogo para cada 500 alunos, acaba por ser de um psicólogo para milhares de alunos, o que não é, de todo, suficiente para as necessidades existentes. É preciso, acima de tudo, ter consciência das necessidades de cada instituição e daquilo que elas conseguem oferecer. Falta capacitação dos estudantes e dos docentes para a temática, e a aposta na melhoria dos recursos e das ofertas que as faculdades possuem. Em suma: as instituições têm tido em conta este factor, mas ainda não é o suficiente.
Quanto aos currículos, achas que deveriam também ter em conta o burnout, sem descurar, como é óbvio, a qualidade e a exigência? Poderiam, por exemplo, estar distribuídos ou estratificados de uma outra forma?
Estar no ensino superior é estar num patamar exigente por si só. O grau de exigência das instituições não deve diminuir e deve formar os futuros profissionais com as maiores competências possíveis, no entanto, o que esperamos das instituições é que estas tenham em consideração o que é ou não, efectivamente, necessário para atingir este nível de qualidade que queremos para se atingirem os melhores resultados possíveis. De referir que, na nossa perspetiva, situações de burnout e a deterioração da saúde mental não são, de todo, necessárias para o sucesso académico e para garantir a formação qualificada dos estudantes.
Até porque um estudante em burnout já não terá a capacidade de manter bons resultados, manter uma boa produtividade e lidar com o currículo de forma adequada.
Exacto. Uma das consequências que o burnout tem é a despersonalização e a quebra da produtividade do estudante. Uma pessoa que está em burnout terá, tendencialmente, piores resultados, o que levará a que essa pessoa fique desmotivada, prejudicando a sua saúde mental, que, por sua vez leva a uma maior taxa de abandono escolar, correspondendo todo este processo a um ciclo de deterioração.
“Uma das consequências que o burnout tem é a despersonalização e a quebra da produtividade do estudante.”
Renato Martins, Director de Saúde Pública da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina)
Porque é que achas que os estudantes das ciências biológicas surgem, nestes estudos, nos primeiros lugares no que diz respeito aos índices de burnout?
Vou falar aqui, mais uma vez, da área da Medicina, que é a minha área, caracterizada por estar repleta de bons alunos. Por norma, os estudantes de Medicina têm objectivos muito concretos e definidos possuindo uma elevada ambição para atingirem estes objectivos. Surge, assim, uma elevada competitividade no curso. Aliado a este facto há, ainda, a precariedade das condições de trabalho que os jovens médicos tendem a enfrentar nos seus primeiros anos de carreira. Esta pressão para o sucesso, para se conseguir uma especialidade condizente com um estilo de vida mais favorável — por norma associadas a uma nota maior —, pode potenciar o agravamento da saúde mental dos estudantes de Medicina. Actualmente, surgem ainda questões como a média interna contar para a especialidade, aumentando ainda mais esta grande pressão, para a sobrecarga da saúde mental a nível estudantil — são algumas especificidades que aponto no currículo dos estudantes de Medicina que podem levar a uma maior sobrecarga. Falo disto porque sou estudante de Medicina, mas acredito que nos outros cursos também haja uma grande sobrecarga e, isto, não deve passar por um cuidado segregado aos estudantes de Medicina mas, sim, como um cuidado comum a todos os estudantes do ensino superior, no geral. Falando nisso, o Governo e o Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior revelaram que vão criar, em conjunto com o Ministério da Saúde, um programa para a saúde mental no ensino superior e achamos que este é um bom passo para se atingirem melhores resultados neste âmbito. A ANEM seria e será, sempre, uma entidade que se encontra disponível para a colaboração num programa profícuo e, acima de tudo, realista e exequível, que permita alavancar cuidados de saúde e mais recursos para os estudantes. A ANEM procura, sempre, divulgar as oportunidades que temos. Não advogamos recursos apenas para os estudantes de Medicina mas, enquanto ANEM, procuramos, sempre, fomentar actividades como webinares ou criar momentos de divulgação dos gabinetes de apoio psicológico nas nossas redes sociais. Fizemos um concurso de vídeos saúde mental para tentarmos chamar a atenção para o tema e tentarmos procurar estabelecer parcerias para que se possam contactar entidades externas que possam dar uma oferta maior e crescente aos nossos estudantes, neste caso os estudantes de Medicina. No entanto, a postura da ANEM não é, neste caso, pensar só nos nossos estudantes, nos estudantes de Medicina, queremos que a saúde mental seja tratada como um todo, que o MCTES insista na criação de gabinetes de apoio psicológico, e no caso dos que já existem, melhorar e garantir a acessibilidade de toda a comunidade estudantil aos mesmos. Os gabinetes de apoio psicológico que já existem, para além de serem insuficientes, muitas vezes não são gratuitos. Quando não são gratuitos, podem até variar de bolseiro para não bolseiro. Faz sentido que estes serviços de acesso aos cuidados de saúde mental sejam gratuitos e com tempos de resposta curtos porque, se pensarmos, por exemplo, num estudante que vá procurar apoio psicológico durante uma época de exames, e que só consiga apoio psicológico daí a dois meses, como é o caso de algumas instituições, esse apoio já não será em tempo útil. Em época de exames, por exemplo, um estudante precisa de ajuda imediata e, por isso, advogamos, também, a criação de mais gabinetes, permitindo uma resposta mais rápida e, se possível, a integração destes mesmos gabinetes com os cuidados hospitalares e com os cuidados de saúde primários, de forma a haver uma referenciação directa para profissionais mais qualificados como cuidados de psiquiatria, por vezes necessários.
“Os gabinetes de apoio psicológico que já existem, para além de serem insuficientes, muitas vezes não são gratuitos. Quando não são gratuitos, podem até variar de bolseiro para não bolseiro.”
Renato Martins, Director de Saúde Pública da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina)
Uma vez que, como já referiste, deveriam existir mais gabinetes de apoio psicológico, que papel podem desempenhar, aqui, as acções de sensibilização?
A ANEM tem um booklet e procuramos, todos os anos, actualizá-lo com todos os gabinetes de apoio psicológico para a saúde mental das faculdades de medicina, ao mesmo tempo que procuramos, sempre, fazer a divulgação desses mesmos gabinetes. Apesar de reunirmos sempre esforços para fazê-lo, achamos que devemos ter mais apoio das faculdades e que as faculdades devem ter um papel mais relevante na divulgação dos seus próprios gabinetes e recursos: apesar de estarem sobrecarregados, seria uma maneira de divulgá-los até porque, como já referi ao longo da entrevista, apesar de mais de metade dos estudantes terem referido já terem sentido necessidade de terem ajuda psicológicas, menos de metade deles considera que conhecia as estratégias para lidar com o burnout e, menos de metade deles, conhecia os apoios de saúde mental disponibilizados pela própria escola médica, sendo importante não só a ANEM mas, também, a escola médica divulgar os gabinetes de apoio e os recursos que têm.
Dependerá, certo, de pessoa para pessoa. Mas não existirão estratégias base que os estudantes poderão utilizar para proteger a sua saúde mental e evitar o burnout?
Não há, de todo, uma maneira correcta para evitar o burnout ou a sobrecarga da saúde mental dos estudantes. Cada caso é um caso, e o único conselho que posso dar, caso não se encontrem no melhor estado mental e necessitem da ajuda de alguém, é o de procurar essa ajuda num profissional e recorrer aos recursos que as próprias faculdades oferecem: apesar de serem demorados, devem continuar a tentar aceder a estes. Há várias estratégias, no entanto, que podem ser aplicadas. Variam de estudante para estudante, como já disse, mas poderá ajudar: manter a prática de exercício físico regular, uma alimentação saudável, manter rotinas, não se focar exclusivamente na faculdade e ter actividades extra curriculares ou até mesmo sair com os amigos. É extremamente importante saber quando parar. O nosso corpo precisa de descansar e, estarmos a estudar constantemente, pode levar-nos ao burnout. O burnout é uma patologia em que o corpo é lavado até à exaustão e há um esgotamento físico e psicológico resultante de um trabalho desgastante, por isso é que é mesmo importante saber quando se deve parar. Volto a reforçar que não há um método infalível para ninguém: umas coisas funcionarão para algumas pessoas mas, para outras, não. O método que tem maior taxa de sucesso é sem dúvida procurar ajuda junto de um profissional da área da saúde mental.
“A postura deve ser sempre a de capacitação desses professores a um nível multidisciplinar e multigeracional, ou seja, tentar renovar um pouco o ensino em Portugal, dar a oportunidade aos mais jovens para poderem estar, também, na vanguarda do ensino.”
Renato Martins, Director de Saúde Pública da ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina)
Falámos das universidades, mas quanto a professores? Estarão devidamente consciencializados?
Vai depender de professor para professor e de faculdade para faculdade. Acredito e tenho uma visão positiva que os professores começam a estar mais conscientes dos problemas de saúde mental e para a sobrecarga que um curso de ensino superior pode trazer aos alunos, no entanto, acho que faz falta capacitar os professores e alertar, quando necessário, que os alunos apresentam estes valores que os estudos referidos indicam. A postura deve ser sempre a de capacitação desses professores a um nível multidisciplinar e multigeracional, ou seja, tentar renovar um pouco o ensino em Portugal, dar a oportunidade aos mais jovens para poderem estar, também, na vanguarda do ensino. É muito importante ouvir os estudantes e perceber as suas dificuldades — perceber o que se pode fazer para melhorar. Quanto aos docentes, acho que a solução passa, mesmo, por uma maior capacitação daqueles que podem estar menos capacitados ou conscientes do estado mental dos seus estudantes, melhorar estratégias, métodos que ajudem a preservar e melhorar a saúde mental dos estudantes e, novamente, ouvir os estudantes, perceber as suas necessidades e repensar métodos de ensino e avaliação, tendo em consideração o momento de sobrecarga da saúde mental que as avaliações representam.