Entrevista. Ricardo Galvão: “Bolsonaro foi eleito com uma contribuição muito grande dos madeireiros da Amazônia”
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A divulgação dos dados de alerta do desmatamento da Amazônia da primeira quinzena de julho, que tiveram um aumento de 68% quando comparados com o mesmo período do ano anterior, foi o começo. Embora os valores de alerta não sejam definitivos – essa avaliação consolidada é feita anualmente, através de outro sistema chamado PRODES (Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite) -, a crispação cresceu.
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, disse que os números fariam o país ser malvisto no exterior e afirmou: “Vou conversar com qualquer um que esteja a par daquele comando, onde haja a coisa publicada, que não confere com a realidade, vai ser chamado para se explicar. Isso é rotina, toda semana, todo dia, acontece isso aí”.
Quem estava à frente do comando era o físico e engenheiro Ricardo Galvão, que dirigia o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e que não gostou de ver o trabalho das suas equipas posto em causa. Muito menos de ser acusado pelo chefe de Estado brasileiro de “estar a serviço de alguma ONG” e ter divulgado “dados mentirosos”.
O professor no Instituto de Física da Universidade de São Paulo reagiu: “uma atitude pusilânime, covarde, talvez esperando que eu peça demissão, mas não vou. Eu espero que ele me chame a Brasília para eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente, nos meus olhos.”
Que dados
Com a publicação online dos valores registados pelo DETER (Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real), realizada automaticamente pelos serviços do INPE, Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, resolveram declarar guerra ao instituto, dando início a uma crise política que ganhou escala internacional na última semana, com posicionamentos contundentes por parte do presidente da República de França, Emmanuel Macron.
Em entrevista ao Fumaça, Galvão conta que pediu “por duas vezes” ao Ministério do Meio Ambiente – órgão ao qual está subordinado o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) – que enviasse os dados que contradiziam com os do INPE (dependente do Ministério da Ciência). “Ele disse que não o fez porque os dados não tinham sido elaborados pelo Ministério do Meio Ambiente, mas tinham sido elaborados pela empresa Planet [empresa dos Estados Unidos da América, que realiza medições espaciais por satélites], ‘gratuitamente’, para mostrar o sistema deles, como funcionava”, afirmou Galvão.
“Desde há dois anos eles têm feito uma propaganda muito grande no Brasil, um esforço comercial para vender essas imagens para serem usadas em substituição ao serviço do INPE. Eles queriam fazer uma licitação e foi barrada pelo Ministério Público. Isso tem sido, na minha opinião, o motivo básico, desde o início do governo [Bolsonaro], dos ataques que o ministro Salles tem feito ao sistema do INPE, chamado DETER. O que a Planet está vendendo são imagens. Entre imagens e dizer realmente o que foi desmatado há uma distância muito grande.”
O Fumaça enviou várias perguntas ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) brasileiro, via assessoria de imprensa, para perceber a origem dos dados que espoletaram todas as acusações. E perceber que razões levam o Governo Bolsonaro a usar informações de uma empresa privada dos Estados Unidos da América, ao invés das recolhidas pelos seus institutos públicos. A resposta foi a seguinte:
“Há um acordo formal entre Planet e IBAMA para uso experimental de imagens gratuitas, e nesse contexto foram produzidas imagens que comprovam a inexatidão de conclusões baseadas em imagens do DETER. A Planet já foi contratada pelos Estados do Mato Grosso e Pará, bem como também é utilizada pela MAPBIOMAS, razão pela qual não há nenhum motivo para que não possa também prestar serviços ao IBAMA”.
O MMA não explicou que inexatidões eram as detetadas nos dados do DETER, nem que tipo de contrapartida havia pelo uso gratuito das informações do sistema da Planet. Ao longo de toda a segunda-feira, 26 de agosto, o Fumaça remeteu também várias questões à empresa brasileira que representa a Planet, a Santiago & Cintra Consultoria. Mas não foi possível obter respostas de nenhuma pessoa que prestasse declarações à imprensa.
“Dia do fogo”
Como pano de fundo, não fossem os números do desmatamento alarmantes, a Amazónia está em chamas. Não só por serem comuns incêndios nesta época seca mas, também, por ignições propositadas, em larga escala, feitas por madeireiros, comerciantes, sindicalistas e garimpeiros, nos municípios paranenses de Altamira e Novo Progresso, que batizaram as ações como “Dia do Fogo”. A organização envolveu várias dezenas de pessoas e chegou mesmo ao conhecimento das autoridades ambientais. O objetivo dos criminosos foi, segundo descobriu a revista revista Globo Rural, “mostrar para o Presidente que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando e para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”.
Em 2015, em Cuiabá, Mato Grosso, o Bolsonaro já dizia: “A política ambiental é péssima em nosso país. Se quiser fazer uma hidrelétrica, em Roraima ou no Valdo Ribeiro, por exemplo, é impossível, tendo em vista a quantidade de terra indígenas, quilombolas, estação ecológica, parques nacionais. Tem que colocar um fim nessa política xiita que está sufocando o Brasil”.
Na verdade, o que sufoca o maior país da América do Sul é o fumo dos incêndios, capaz de transformar o dia em noite, como aconteceu no dia 19 de agosto, em parte do Centro-Oeste, do Sudeste e do Sul do Brasil.