Entrevista. Stuart Dryburgh: “A arquitectura é uma excelente educação em artes visuais. Ajuda a pensar dimensões, espaço e tempo”
O nome de Stuart Dryburgh, provavelmente, não desperta grandes memórias. Mas The Secret Life of Walter Mitty, The Piano, Men in Black: International, Alice Through The Looking Glass, Ben is Back, The Great Wall e Blackhat são nomes bem conhecidos no mundo do cinema. O inglês-neozelandês de 67 anos conquistou o seu lugar na história da cinematografia mundial logo com o seu primeiro trabalho. The Piano, de 1993, esteve nomeado para oito Óscares, incluindo o de Melhor Fotografia – arrecadou três desses prémios. Já The Secret Life of Walter Mitty pode não ter ganho qualquer prémio da Academia, mas é uma verdadeira obra-prima a nível de fotografia.
Qual é o papel de um diretor de fotografia? Onde está a linha onde acaba o trabalho do realizador e começa o teu?
Essa é uma boa pergunta. Em primeiro lugar, o diretor de fotografia é o operador de câmara – por vezes, o único. Por outras palavras, estás a segurar uma câmara na tua mão e estás a fazer a filmagem das cenas de uma forma pessoal. Às vezes, num filme maior, és como um chefe de departamento e podes ter duas, ou três, ou quatro, ou mesmo cinco equipas de filmagem diferentes a trabalhar. Isso é estritamente o que o trabalho é: fazer as filmagens físicas, o vídeo do projeto. Onde acaba o realizador e começa o diretor de fotografia? Essa linha é muito fluída. Num extremo, há realizadores que se preocupam essencialmente com a representação, com a narrativa e com as palavras precisas do guião. E esses realizadores vão-te dizer: “ok, eu não sei muito sobre fotografia, só quero que o filme fique com um aspeto bonito; esse é o teu departamento, eu vou tratar da atuação, certificar-me que eles dizem as palavras certas e que eu fico feliz com o resultado final; o teu trabalho é fazer com que fique bom visualmente”. Eu idealizo os planos, tudo. No outro extremo, trabalhas com um realizador que é muito visual e que pode, mesmo antes de fazeres parte do projeto, já ter construído um storyboard completo, um booklet inteiro de material visual, referências de como quer que o aspeto do filme seja. Portanto, é uma divisão bastante fluída.
Já trabalhaste, naturalmente, com realizadores com estilos diferentes entre si. Como equilibras esses relacionamentos?
Quer dizer, quando começo um projeto novo, essa é a primeira coisa que tenho que descobrir: quanto ou quão pouco esta pessoa quer que eu faça, que presença posso ter. Mesmo que seja alguém muito visual, em alguns aspetos, isso contribui para uma colaboração melhor, porque podemos falar na mesma linguagem visual e, então, acho que o filme que daí resulta pode ser muito melhor.
Tens uma filosofia específica relativamente ao processo da fotografia, ou vai mudando consoante o filme?
Vai mudando, de facto. Eu sempre me referi ao meu estilo nos primeiros tempos como sendo enhanced reality, que é ligeiramente diferente do magical realism, mas mais ou menos dentro das mesmas linhas. Por outras palavras, começa-se por pensar no que o mundo, o local ou o cenário tem para oferecer e, a partir daí, vai-se melhorando e aprimorando. Sim, enhanced reality? Acho que isso ainda se mantém.
Um filme como The Secret Life of Walter Mitty tem uma fotografia assombrosa. Como é que chegas ao produto final? Tens uma ideia prévia de como queres que cada plano seja e tentas ao máximo concretizá-la, ou vais escolhendo ao longo da rodagem?
Há muita preparação e planeamento prévio necessários para se chegar a um filme; parte disso acontece com meses de antecedência, outras partes acontecem com dois ou três dias de antecedência. Por exemplo, no Walter Mitty, há uma sequência de skate, onde ele desce esta estrada de montanha super longa numa longboard. Na verdade, embora conhecêssemos o local e tivéssemos uma ideia aproximada do que queríamos fazer pela preparação antecipada do realizador, quando se tratou de trabalhar com o realizador assistente que ia executar o trabalho, eu literalmente desenhei a storyboard para ele dois dias antes, no meu iPad. Mas sim, é uma combinação, sem dúvida. Há a preparação prévia profunda, há a preparação que fazes mesmo antes de filmar. E, depois, há a mudança do esquema a meio das filmagens – o que acontece bastante e até é muitas vezes uma coisa boa. Tens um plano bom, mas, por vezes, chegas a um local e a luz, a ação, a representação, qualquer coisa – pode mesmo ser qualquer coisa -, faz-te mudar o plano. E, então, muitas vezes acabas com algo que é ainda melhor do que o que tinhas originalmente planeado.
The Secret Life of Walter Mitty foi inteiramente filmado em película. Porquê?
O Ben Stiller, que é o realizador, gosta muito de fotografia, coleciona fotografia, sabe muito sobre fotografia e, em muitos aspetos, embora não seja essa a parte principal do filme, é efetivamente um filme sobre fotografia, sobre fotógrafos e sobre o amor pela imagem e pelo arquivamento – pela preservação de fotografia. Tendo isso em conta, ele sentiu que era importante ser feito em filme fotoquímico. E é assim que funciona, hoje em dia é normalmente uma escolha do realizador. Às vezes, há um debate comigo ou com o outro diretor de fotografia – com quem quer que seja o diretor de fotografia – sobre qual o formato, mas o mais comum é a decisão ser tomada logo no início. Há um outro realizador com quem eu trabalho, o Marc Webb, que nunca filmou sem ser em película, e nós já fizemos dois filmes de baixo orçamento juntos e foram ambos filmados em filme de 35mm. É possível fazer isso. No entanto, já houve outros projetos em que eu senti que o digital era um meio de captura mais sensato.
Então, pessoalmente, qual preferes? Depende?
Depende mesmo. Adoro trabalhar com filme. Há algo muito intangível e mágico na interação da luz através de uma lente com filme fotoquímico. Mas, ao mesmo tempo, também aprendi a fazer imagens bonitas em digital, e estou muito feliz com filmar em digital.
Logo no início da tua carreira, trabalhaste no The Piano, que acabou por ser um filme mesmo grande. Como é que isso afetou a tua evolução profissional?
Acho que não percebemos o quão grande o filme era. Quer dizer, foi um filme grande para fazemos na Nova Zelândia na época; tinha grandes estrelas americanas, claro, assim como o nosso Sam Neill. Mas eu e a Jane já tínhamos feito o An Angel At My Table antes, por isso estávamos bastante confortáveis com a nossa colaboração e com a ideia de fazer um filme de Hollywood. E acho que é justo dizer que, no final, sabíamos que tínhamos feito um bom filme. Não sabíamos o quão bem-sucedido seria, não é, isso nunca se sabe. Sabíamos que tínhamos feito um bom filme, mas não sabíamos que o mundo o ia adorar tanto como nós o adorávamos, que iria chegar a Cannes e aos Óscares e a todos os outros festivais e prémios.
Já que falaste nos Óscares: este ano, a Cerimónia dos Óscares esteve para não transmitir o Prémio de Melhor Fotografia. O que achaste disso?
Para ser honesto, eu não assisto, não presto grande atenção, não me importo muito. Quer dizer, se fosse nomeado, eu ia e iria apreciar o evento, mas, de outra maneira, realmente não presto muita atenção. Não estou assim tão interessado em prémios.
Com as atenções habitualmente viradas para realizadores e atores, achas que a fotografia no cinema enquanto ofício pode estar a ser esquecida?
A fotografia é muito importante. Acho que a direção da arte é muito importante – cenários, roupas, cabelo, maquilhagem, todos os ofícios são importantes. Se as pessoas querem vê-los na televisão? Nem por isso. As pessoas querem ver as estrelas de cinema. Se calhar, deviam simplesmente cortar tudo, exceto as estrelas de cinema, e ficavam com um programa de apenas uma hora. Talvez devessem fazer como os Emmys; os Emmys fazem uma cerimónia que é inteiramente para os realizadores, para os produtores e para as estrelas das séries e dos programas de televisão, e, depois, fazem uma cerimónia completamente diferente, os chamados Technical Emmys, que não é transmitida na televisão. Na verdade, é uma festa boa, eu já fui uma vez. A cerimónia em si é meio chata, mas a melhor parte para mim foi quando eles anunciaram a melhor fotografia de série documental, e quem ganhou foi o programa de pesca Deadliest Catch, e 25 pessoas subiram ao palco para receber o prémio. Fiquei muito impressionado com isso. Não acho que prémios importem muito; não importam para mim, de qualquer maneira.
Tens formação em Arquitetura. Como foi esta mudança para o cinema?
Não há propriamente uma ligação direta. Eu só fiquei interessado em cinema no meu último ano, e acabei por fazer um filme em película de 16mm como o meu projeto final. Depois de terminar o curso, tive a oportunidade de me juntar à indústria cinematográfica da Nova Zelândia, que estava apenas nos seus inícios. E meio que fui aprendendo, trabalhando. No meu primeiro emprego andava a conduzir uma carrinha, acho eu.
A arquitetura influenciou a tua visão cinematográfica?
Considero a arquitetura uma excelente educação em artes visuais e uso-a, definitivamente, no meu trabalho. Tem-me ajudado ao longo dos anos a pensar as dimensões, o espaço e o tempo.
Já fizeste tanto filmes baseados na realidade como filmes mais no universo da fantasia e do surreal – como Alice Through The Looking Glass. Que desafios são semelhantes e que desafios são diferentes entre esses tipos de filmes?
Eu meio que me habituei a isso ao longo dos anos, mas sim… sabes, também já meio que ando a lidar com efeitos visuais há muito tempo. Quer dizer, mesmo nos meus primeiros tempos, quando ainda estava a filmar anúncios publicitários na Nova Zelândia nos anos oitenta, já estávamos a começar a fazer uma certa quantidade de trabalho de pós-produção. E também me fui deparando com trabalhos… logo nesses primeiros anos, fiz um programa de televisão entre o maluco e o excêntrico, na Nova Zelândia, que se chamava Space Knights. Tinha fantoches e grande parte do resultado final era feito com tela verde. Era um programa fraco, mas tinha imenso trabalho de efeitos visuais, então eu meio que tenho vindo a lidar com isso toda a minha vida profissional. Por isso não me incomoda. Não tenho qualquer problema em visualizar como vai ficar o trabalho acabado. Além disso, agora também temos coisas que nos ajudam: temos pré-visualização, automação, até mesmo a capacidade de projetar cenários e ambientes 3D num conjunto de tela verde, e ter os atores a deslocarem-se através de um modelo 3D em tempo real. Então, ficou muito mais fácil fazer esse tipo de trabalho.
Há algum avanço tecnológico que consideres que vai mudar a forma como a fotografia é feita atualmente no Cinema?
Sim, eu acho que sim. Quer dizer, as câmaras estão a ficar cada vez mais pequenas, mais rápidas e mais sensíveis. Há isso, há os avanços que estão sempre a ser feitos na área da pós-produção, mas isso sempre existiu. Há 70 anos atrás, a emulsão mais rápida de filme era 100ASA, e depois no final dos anos 70, início dos anos 80, apareceram os filmes rápidos, que revolucionaram a capacidade de trabalhar à noite com luz natural. Então, há sempre mudança, há sempre melhorias tecnológicas.
De todo o trabalho que já fizeste, que filme acabou por ficar mais próximo do que idealizaste?
Há tantos… em geral, acho que a maioria deles. Gosto muito de um filme pequeno que fiz, Ben is Back, no ano passado em Nova York, porque acabou por sair bem, é uma história sincera e ficou bom a nível visual. Gostei muito da maneira como o Blackhat acabou por ficar, muito genuíno, muito simples, muito real, adorei isso. Foi um dos meus primeiros empreendimentos em fotografia digital. Quer dizer, numa perspetiva global, não sei. O Walter Mitty saiu muito bem, como uma espécie de filme quase perfeito, em alguns aspetos. Portanto, se tivesse que escolher um, talvez fosse esse. Mas tenho que ficar feliz, estou muito feliz com o conjunto. Ah, The Painted Veil, que é verdadeiramente um dos meus favoritos, é um filme muito bonito. Mas é daquelas coisas, os ingredientes estavam lá para se fazer um filme bonito. Ponto final. O vestuário, a história em si.
Como é que o teu estilo evoluiu ao longo dos anos?
Acho que ficou mais simples. Um dos aspetos que acho que se destaca, com as emulsões mais rápidas e agora o digital, é que eu passei a confiar cada vez mais na iluminação natural, e menos na artificial. E gosto disso, gosto de procurar a luz natural e de tentar posicionar a cena, criá-la onde está a luz boa, em vez de me ser dito o local onde a cena se vai passar e, de seguida, ter que iluminá-lo. Acho isso muito interessante, gosto disso.
Quais são as tuas maiores inspirações enquanto diretor de fotografia?
Eu foco-me muito no fotojornalismo. Mais uma vez, lá está, no mundo real. E outros filmes, o trabalho de outros cineastas.
Tens algum projeto a sair num futuro próximo?
Não, acho que estou bem atualizado. O Man in Black acabou de sair, e tenho andado a filmar anúncios publicitários para televisão este ano, então não há nada a ser planeado neste momento. Bons anúncios publicitários, contudo.
Que dicas darias a quem quer entrar no mundo da direção de fotografia?
Se eu estivesse a dar um curso de fotografia, começava com fotografia a preto e branco e com o quarto escuro. As bases, mesmo, voltar ao básico. E eu acho mesmo que se pode aprender imenso com a fotografia fotoquímica, e como as tuas exposições se relacionam com a imagem que daí podes criar. Então, sim, trabalhar no quarto escuro é muito informativo. E depois, colour slide; eu costumava fotografar montes de Ektachrome – nem sei se ainda se consegue obter, mas acho que é possível. Sabes, há algo muito implacável no ato de fotografar com filme reversal, e isso ensina-te muito. Quer dizer, essas são as coisas do ofício, as coisas relativas a técnica fotográfica. Depois, como se chegar à frente e se destacar… é apenas uma questão de se continuar a trabalhar, a dar tudo, fazer o melhor trabalho possível a cada oportunidade. Eu tive imensa sorte com The Piano; é um filme fantástico, mas poderia ter sido um filme que nunca ninguém viu. Sabes o que quero dizer? E, aí, eu ainda estaria a viver feliz na Nova Zelândia, a fazer filmes pequenos por lá, possivelmente. Muito do sucesso na indústria cinematográfica é baseado na sorte, em estar no lugar certo à hora certa, em conseguir a oportunidade certa e depois aproveitar ao máximo essa oportunidade. É tão simples quanto isso. Como se diz por aí, é melhor ter sorte do que ser bom, mas, quando tens sorte, é melhor que sejas bom.