Entrevista. Vasco Macedo: “A violência tem um papel fundamental na arte”

por Augusto António Cabrita,    19 Dezembro, 2022
Entrevista. Vasco Macedo: “A violência tem um papel fundamental na arte”
Vasco Macedo / Fotografia de Mário Mar

Natural da cidade do Porto, Vasco Macedo é um jovem escritor. Este ano, editou o seu primeiro livro de poemas, Placebos para a Travessia. Formado em Estudos Portugueses e em Filosofia pela NOVA FCSH, desenvolve, desde 2014, no âmbito do coletivo Reunião de Apócrifos Foragidos, projetos como as Terças de Poesia Clandestina, onde já participaram figuras de relevo da literatura portuguesa, mas também a revista Apócrifa — PLEC, publicação que publicou um número significativo de poetas emergentes da lusofonia.

Esta é uma conversa sobre o escritor, sobre um pensador crítico, mas também sobre a sua força estético-intelectual enquanto congregador.

Aquilo que desenvolves nas Terças de Poesia Clandestina tem, de algum modo, ligação àquilo que és enquanto escritor?

O que convoco para as sessões é aquilo que eu gostava que as pessoas tivessem contato. Não programo sessões porque há um determinado autor que teve reconhecimento institucional ou por outro tipo de variáveis, como centenários ou efemérides semelhantes. Tento sempre escolher textos que permitam perturbar um bocado a apresentação do real e que nos façam questionar e duvidar sobre o mesmo. Gosto de textos que provoquem rutura, interrupção na linearidade com que se vai desdobrando o dia-a-dia.

Pelas Terças de Poesia Clandestina já passaram autores como Gonçalo M. Tavares, Bruno Vieira Amaral, Vasco Gato e até críticos como o João Barrento. Milhares de pessoas do país já aderiram a estes momentos de partilha estética. Tu, que começaste com isto, qual é o balanço que fazes?

Acho que o lado positivo das sessões que fui desenvolvendo é o da possibilidade dos textos literários poderem ser vividos, poderem ser reatualizados, poderem, de uma certa maneira, ser transfigurados. Considero que é isso a prática contemporânea do texto. Não sendo, propriamente, pioneiro nem nas intenções nem nos moldes, consegui, através da mistura com a música eletrónica experimental, com os visuais, com os elementos de dança e de performance, dar exemplos de que essa relação entre a literatura e outras linguagens “artísticas” é possível e até desejável. O meu propósito é que as coisas que são consideradas arte não fiquem fechadas numa redoma, que devem ser vividas e experimentadas.

Qual era a tua intenção inicial em relação a este projeto?

No fundo, criar momentos de prática literária. A utilização do texto e da sua atualização passa por experienciar o texto, vivê-lo e deixar o mesmo ser contaminado. Identifico-me, claramente, com essa abordagem, que à falta de melhor termo se poderá chamar de dionisíaca por torcer o nariz à ideia de pureza, à ideia de limpidez. No fundo, é contra um ideal apolíneo da literatura que é, aliás, uma das grandes correntes da poesia portuguesa.

De resto, há uma grande antonímia nessas duas correntes.

Sim, o próprio Herberto Helder desenvolve isso num prefácio de um livro chamado Antologia das Vozes Comunicantes. Defende que há na literatura portuguesa uma outra corrente dionisíaca, que tem a ver com uma tradição ligada ao xamanismo, ligado à ideia de exploração de tudo aquilo que é dejeto e atrito, de forma a alimentar-se disso e recriar o mundo. Ter um perpétuo movimento de criação a partir da impureza, mas também a partir de uma proposta de alucinação e viagem. Num sentido inverso, existe o lado apolíneo que tem que ver com a ordem, com a pureza, com a compartimentação, com a criação de uma idealização.

“É uma pena que o nosso mercado editorial não contenha mais traduções que nos possibilitem ter um outro olhar sobre o mundo. Há ainda um grande fechamento de Portugal sobre Portugal.”

Vasco Macedo

A corrente apolínea é ainda, largamente, dominante no mercado editorial português?

Acho que é uma linha que nunca vai desaparecer. É aquilo que a que chamo a brincar de pós-católicos. Embora não estejam perto do que eu faço, considero que há escritores pós-católicos incríveis, não é de todo uma menorização. Considero que o Kierkegaard é um pai filosófico-teológico dessa corrente, que materializa um existencialismo católico. Há uma dor e melancolia que advém de uma ideia de finitude e da anulação do sujeito, o que não invalida que haja poetas de grande interesse nesta corrente: a Sophia, por exemplo, pode ser vista como um caso paradigmático da corrente apolínea antes da erosão recente dos poetas sem qualidades. Caricaturizando, acho que a Sophia sonha estar sozinha numa ilha grega, enquanto que o Cesariny sonha estar nos santos populares a emborcar vinho e a f*der com marinheiros. Isto é uma diferença muito significativa de ideal de concretização pessoal. Ainda assim, sim, acho que, hoje em dia, há uma dominância do lado apolíneo no mundo da poesia portuguesa e da sua influência. Os poetas sem qualidades, que são uma espécie de resposta finissecular pela via da exaustão desses mesmos preceitos, são, também, um dos exemplos de uma poesia que se quer conformista e em paz com as normas estéticas de um mundo dito pós-moderno.

Vamos falar de ti como autor. Publicaste pela primeira vez a solo este ano. Em que contexto é que surge o livro Placebos para a Travessia?

É um texto poético que surgiu num contexto de grande liberdade e de experimentação, durante um conjunto de free-parties autogeridas que tiveram lugar no Alentejo. Cada poema corresponde a uma rave diferente com a sua respectiva bula.

Para ti, a literatura é um processo mais, ou menos refletido?

Sou da opinião que os escritores sabem pouco sobre aquilo que fazem. Claro que há exceções em muitos escritos testemunhais e diarísticos — escritores que provam, um bocado, o contrário daquilo que agora te digo. Mas, no geral, há muito de inconsciente na escrita. No processo, surgem um conjunto de conteúdos que, muitos deles, são confusos: podem ter uma componente sonora, uma componente associada a uma memória visual e podem ter uma componente emocional, entre outros aspectos. Esses conteúdos suscitados são pluridimensionais, na medida em que se expressam em diferentes sentidos. Uma palavra pode estimular um som, pode suscitar uma imagem, uma emoção e por aí em diante.

Vasco Macedo / Fotografia de Mário Mar

Essa á a tua fenomenologia?

Quando estou a escrever, há sempre uma repressão do meu lado mais consciente que tenta dar inteligibilidade ao discurso. Ainda assim, grande parte das coisas que aparecem são inconscientes e é, sobretudo, com isso que trabalho. Nunca trabalho numa lógica de: “vou-me inspirar nisto para escrever aquilo”, para mim não tem sentido. Mesmo quando escrevo com música, como aconteceu no Placebos para a Travessia, é no sentido de alargar e estilhaçar. No fundo, a música acaba, simplesmente, por espoletar esse lado mais inconsciente; diferentes associações livres, desarticuladas, que tento articular com palavras.

Como é que a poesia aparece na tua vida?

Num primeiro momento, surgiu entre os 13 e os 14 anos em articulação com a música, nomeadamente, com o hip hop. Na altura, comecei a prestar particular atenção à palavra dita, àquilo que as letras diziam. Mais tarde, a partir dos 17 anos, e porque passava bastante tempo na escola, comecei a vasculhar livros de poesia da biblioteca. Foi aí que se iniciou um processo de autonomização da escrita e não, necessariamente, de uma escrita para ser musicada como, na verdade, acontecia antes desse momento.

Qual é a importância da edição do texto? Sei que, por exemplo, o Herberto Helder regressava frequentemente aos seus textos e editava-os obsessivamente.

Honestamente, e nos últimos anos, tenho andado, sobretudo, a editar — não a fazer coisas novas, mas a editar textos antigos. Aproveito o meu tempo para o fazer. Claro que há escritores que não editam porque, geralmente, são autores que tentam cristalizar aquilo que estavam a sentir aquando do momento da produção. No meu caso, aquilo que me motiva a escrever não é uma dimensão diarística, de eternizar o que sinto, mas de dizer algo. É por isso que edito.

Portanto, editar para ti é um caminho para a configuração semântica…

Não só. Também é um trabalho de tentativa de imaginação daquilo que estava por trás do que escrevi. Mas, também, de recriação, alargamento. No geral, acabo por ter vários textos organizados em redor de uma ideia ou sugestão, mas também tenho vários textos de teor mais caótico.

“Porque é que no secundário só se dão autores portugueses? Queremos formar cidadãos do mundo ou queremos endoutrinar nacionalismos? Defendo que os jovens devem estar a par de tudo aquilo que foi feito em todo o mundo, e não ficarem fechados em autores só porque são portugueses. Como é que se acha normal que se chegue aos 18 anos e já se tenha lido Luís de Sttau Monteiro e Almeida Garrett, mas nunca se tenha tocado em Brecht, Tchekhov ou Ionesco?”

Vasco Macedo

O campo ideológico influencia-te como autor?

Não é fácil responder a essa pergunta. Com os anos fui-me encontrando cada vez mais ideologicamente, mas a haver um consenso acaba por estar a jusante e vir no seguimento de reflexões de outro tipo. Reflexões estéticas, políticas, mas também que se prendem com questões mais elementares e existenciais. Tudo isso constitui uma amálgama que vai evoluindo ao longo da vida, ao mesmo tempo que a compõe. Por mais que até tenha uma ideologia política moderadamente circunscrita, quando escrevo nunca me esqueço do que há antes disso, outras camadas mais heterogéneas e caóticas.

Para além dos eventos das Terças de Poesia Clandestina, sei que criaste igualmente a Babel’s Curse.

A ideia do Babel’s Curse foi a de organizar sessões de poesia onde cada uma dessas noites era dedicada a um país diferente. Em cada sessão, eram selecionados textos de poetas estrangeiros que me pareciam interessantes. Ainda assim, e a título de comentário, é uma pena que o nosso mercado editorial não contenha mais traduções que nos possibilitem ter um outro olhar sobre o mundo. Há ainda um grande fechamento de Portugal sobre Portugal.

Esse fechamento vê-se, também, na forma como se introduz literatura nas escolas?

Sim! Há um grande paroquialismo. Porque é que no secundário só se dão autores portugueses? Queremos formar cidadãos do mundo ou queremos endoutrinar nacionalismos? Defendo que os jovens devem estar a par de tudo aquilo que foi feito em todo o mundo, e não ficarem fechados em autores só porque são portugueses. Como é que se acha normal que se chegue aos 18 anos e já se tenha lido Luís de Sttau Monteiro e Almeida Garrett, mas nunca se tenha tocado em Brecht, Tchekhov ou Ionesco?
Num outro plano, para mim, as escolas de hoje são como ginásios. São lugares para onde os jovens são direcionados para serem musculados e atrofiados. Isto gera alunos que querem ter notas, ao invés de pensamento crítico. As escolas deveriam era ser espaços de dinamização sociocultural e de emancipação intelectual.

“Tento sempre escolher textos que permitam perturbar um bocado a apresentação do real e que nos façam questionar e duvidar sobre o mesmo. Gosto de textos que provoquem rutura, interrupção na linearidade com que se vai desdobrando o dia-a-dia.”

Vasco Macedo

E porque é que, por exemplo, não se pode introduzir autores desconstrutivos no secundário?

Já nem vou aí! Mas, claro, seria muito mais interessante que se desse Mário Henrique Leiria do que autores que não dizem rigorosamente nada a jovens — não é a sua linguagem. Se queremos aproximar os jovens da literatura, temos de ter outra estratégia. Se calhar, é muito mais fascinante e interessante para um jovem do secundário ler um romance dos beatnik.

Sei que a tua tese de mestrado foi sobre a obra pictórica e escrita de Cesariny. Qual é a importância deste autor para ti? Sentes-te, igualmente, próximo do surrealismo?

Sinto-me próximo daquilo que é considerada a tradição surrealista, que não se esgota naquilo que é o movimento surrealista, cronologicamente definido. Tem que ver com as influências e com os próprios desdobramentos posteriores do surrealismo. O próprio Cesariny era um defensor da ideia de que o surrealismo não começava com o Breton ou com o dadaísmo, mas que é, na verdade, uma vaga de fundo da cultura mundial. Mas sim, sinto-me bastante influenciado pelo surrealismo, pelo expressionismo, também, e pelas vanguardas do início do século XX como, por exemplo, o futurismo, tanto na sua vertente soviética como ocidental.

Mas vamos regressar ao Cesariny. Fala-me, por favor, sobre essa dissertação.

Há, na obra de Cesariny, a ideia de que alguém se transforma através da criação. Este processo de transformação de si próprio, este devir-outro, é um processo de destruição de um conjunto de fixações, de cristalizações sobre a sua própria pessoa, sobre a sua própria personalidade e autoria enquanto artista. O Cesariny está, constantemente, a insistir nesta ideia de que a identidade, o nosso nome ou aquilo que as pessoas acham, são coisas que temos que desconstruir, pois são autênticas simplificações e limitações de uma energia e de um universo pessoal que é muito mais diverso e abrangente. Para ele, somos compostos por um caos que é diverso, que tem várias facetas, que tem várias expressões, que está em constante mutação, e que nós não devemos, de alguma forma, aceitar a simplificação, a facilidade de resumir isso a uma determinada categorização.

Leonor Zuzarte Guedes e Vasco Macedo nas Terças de Poesia Clandestina / Fotografia via Facebook de Vasco Macedo


É uma forma desconstrutiva de se pensar o sujeito.

Sim, mas nunca pode ser um caos letárgico. Não é desconstruir só por desconstruir para, no fim, chegar a um marasmo, a um nada. Bem pelo contrário! Num plano paralelo, lembro-me de uma ideia do Cesariny sobre o Pessoa que diz que a loucura do último é uma loucura feita em laboratório, é algo que já está estruturado. A criação da heteronímia é como a tentação de estruturar o caos, de fixar a personalidade em moldes estanques. O Cesariny diz que isto não faz sentido, porque não faz sentido a compartimentação e simplificação do sujeito. Para Cesariny é preciso assumir o caos completo, e de assumir, mesmo, uma certa violência na criação. A violência como instrumento para criar uma experiência estética significante.

Não é por acaso que isso vai ao encontro da tua experiência estética como autor. Essa tenacidade, essa espécie de violência configuradora que encontramos nos teus textos…

Sim, para mim isso é uma questão fundamental. A violência tem um papel fundamental na arte. Aliás, o projeto de doutoramento que vou propor é sobre a utilização da violência na literatura. Aquilo que tento mostrar é que existe um binómio entre duas conceções de violência oposta. Por um lado, a conceção de Hannah Arendt que, simplificando, considera a violência quase sempre como um processo reacionário, como que uma continuação de uma lógica opressiva e autoritária, e depois há um tipo de violência que é a que se encontra na obra do Jean Genet, do Roberto Piva ou da Kathy Acker, que é um tipo de violência retaliatória, que serve o propósito de clamar por justiça, de exprimir raiva contra as desigualdades que é necessário combater. Raiva, essa, que é essencial para qualquer processo de construção política capaz de transformar as coisas. Se quiseres, raiva como impulso primordial, de relação autêntica com o mundo e de vontade de agir sobre as estruturas opressoras.

És sempre contra uma economia estilística?

Acho que até pode fazer sentido. Os escritores são processos em constante mutação, mas há sempre algo que fica. Agora, se essa coisa que fica é um estilo, não sei.
No meu caso, acho que há coisas que se vão repetindo: a questão da raiva, que ao início era muito mais reflexiva, no sentido de voltada para mim próprio, e que, depois, se foi direcionando contra ideias e instituições. Considero que a pulsão da morte foi também sendo transversal na minha poesia.

“As escolas de hoje são como ginásios. São lugares para onde os jovens são direcionados para serem musculados e atrofiados. Isto gera alunos que querem ter notas, ao invés de pensamento crítico. As escolas deveriam era ser espaços de dinamização sociocultural, de emancipação intelectual.”

Vasco Macedo

Existem autores que te impeliram a criar e que queiras especialmente referenciar?

Não sei. Às vezes, não gosto muito de responder a essa pergunta porque, quando se responde, parece que um autor se está a querer encavalitar nos méritos de outros escritores. Não acho que aquilo que escreva deva ser lido com base noutras coisas, mas que deve de valer por si.

É mais uma questão de transmissão simbólica e afetiva. Houve algo de significante que passou e que te influenciou a seres também autor?

Acho é que não te consigo dar uma resposta satisfatória a isso. Teria, também, de incluir realizadores, compositores, pintores e a própria vida em si, incluindo e excluindo tudo isso. A verdade, é que a lista é vasta e as minhas influências não se ficam só pela literatura.

Em 2014, foste um dos fundadores da revista literária Apócrifa.

Sim, foi uma revista que foi fundada para dar a conhecer jovens criadores dentro da área da literatura. É uma publicação que já tem nove edições, o que dado o panorama atual, acaba por ser significativo. Desde a quarta publicação temos, sempre, um artista visual convidado e tem, sempre, uma sessão temática. Já publicámos cinquenta autores diferentes e vendemos cerca de 1500 exemplares, sempre através de circuitos de distribuição alternativos e em formato diy [do it yourself, faz por ti próprio]. É um projeto pelo qual, talvez, sinta um maior carinho do que as próprias sessões de poesia. É mais difícil, mais exigente. Ao mesmo tempo, satisfaz-me muito ver que poetas como o Emanuel Madalena, a Inês Francisco Jacob, o Marco Galrito, a Beatriz de Almeida Rodrigues e o André Osório são escritores que, quase todos eles, publicaram pela primeira vez na Apócrifa. É muito interessantes vê-los, hoje, a publicar livros, e que as suas obras estejam a ser lidas, criticadas e pensadas.

Para além da intenção de antologizar, houve mais alguma coisa que vos levou a avançar?

Sim, para além dessa intenção de reunir textos, a Apócrifa era e é uma espécie de manifesto literário. Tem-se posicionado de uma forma crítica relativamente à literatura portuguesa contemporânea e lança, também, um conjunto de linhas de fuga sobre como combater isso. Por isso é, também, uma coisa mais específica e mediada. Na Apócrifa, não publico só textos que gosto ou acho interessantes, publico textos que possam constituir uma crítica e erigir linhas de fuga.

Há aspetos históricos da Apócrifa que queiras destacar?

Houve um momento muito importante para a divulgação da revista quando recebemos o apoio e financiamento da Câmara Municipal de Lisboa, da Fundação Cupertino Miranda, da Casa Fernando Pessoa e da própria NOVA FCSH e sua associação de estudantes para a edição de uma antologia de textos, um livro de formato tradicional. Foi uma coisa um pouco mais institucional do que as nossas publicações feitas em casa. Foi importante para chegar a outros públicos, a livrarias e distribuidoras. Nesse livro tivemos um prefácio do João Barrento o que chamou atenção de alguns meios de comunicação social que chegaram, pasme-se, a incluir-nos naquelas listas dos livros do ano por altura do natal. Tivemos uma crítica do António Carlos Cortez no Jornal de Letras. Fomos à Antena 3 falar do projeto, tivemos críticas e artigos noutros jornais como o Observador ou o Jornal I e fomos ainda convidados pela Casa Fernando Pessoa e pela Gulbenkian para fazer uma apresentação. Foi de facto importante para o projeto ser mais conhecido, mas depois disso fizemos outros números mais dentro do espírito fundador da revista.

Antes do Placebos, sei que foste publicado em algumas antologias com outros poetas, tendo inclusivamente alguns dos teus poemas sido traduzidos para outras línguas…

Sim. Destaco o Voo Rasante, um livro editado há uns anos pela Mariposa Azual, onde fui incluído com outros poetas, mas também a Pedro e Inês, editado em 2018 pela Oiro — Caleidoscópio organizada pelo Ministério da Cultura. Quanto às traduções, recentemente deu-me muito prazer ser traduzido para grego, numa antologia de poesia experimental. Fui, igualmente, traduzido para castelhano, numa edição que fizeram por oportunidade da Feria Internacional del Libro de Guadalajara (no México) e para alemão na antologia Wie man ein Wunder löscht — Neue Gedichte aus Portugal, dedicada a jovens poetas “emergentes”.

Depois do Placebos há já alguma compilação pensada?

Sim. Tenho andado a editar um livro que vai sair em breve e que se chama Carvalhal. Foi o resultado de uma recuperação de textos antigos que foram trabalhados, repensados e expandidos.

Queres adiantar mais?

É um livro que, podemos dizer, está dividido em três partes. Uma primeira que está, essencialmente, preocupada com questões ontológicas elementares mas que, depois, numa segunda, procura alguma forma de resposta vitalista, nomeadamente através da paixão, que evite alguma forma de letargia. Na última parte, o livro desdobra-se em questões mais de ordem social e política.

Em poesia?

Sim, em poesia.

“Cara esgotada numa berma

como uma apostasia      branda

hino mundano pelos séculos

espesso 

como a massa oceânica de cabelos amados

correria incendiada

de vértebras dançantes

pulverizadas

dadas de beber aos sôfregos      profanados

encontrados perdidos

na grande sala dos écrans de plasma

com      descrições pormenorizadas

de         educação sentimental

lembrando-nos a lama

a derreter nas paredes das grutas

dando odores às pinturas

escáfia à circunspecta saudação dos veraneantes

– que partiam

rumo a casa

como se

sem rumo

tivessem desvendado

o segredo da lotaria-

e o deus menino

  crucificado

no peito farto do lar  

com sua loiça esquálida           têmpera contributiva

foi coroado no museu da celebração pós-revolucionária

digo

no cortejo fúnebre mais aguardado da ilha

e se outrora rogámos ao vício excremental das estradas

aos seus varões avessos ao trabalho

          com púbis dourada por abelhas narcotizadas

se outrora 

tivemos na veia

todas as maldições do império

esbatendo-se tempestivas

sobre as janelas da casa

incisões perniciosas

nativas

nossas

sobre a apresentação do rosto

resta-nos agora     sanctum sanctum      gloria in excelsis

a aparição da carne nas estrias da noite

como o grito de um deus moribundo

à procura do seu olho perdido”.

Vasco Macedo in “Placebos para a Travessia




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