Entrevista. Vasco Sacramento: “A nossa vida cultural é o espelho da nossa vida em sociedade, com profundas assimetrias entre o litoral e o interior”
Há quase 21 anos, quando fundou a Sons em Trânsito, Vasco Sacramento definiu a sua missão e a sua prioridade: descentralizar a cultura. E, ao longo destes quase 21 anos, é o que tem feito. Em vésperas do início da 10.ª edição do Festival F, em Faro, sentámo-nos com Vasco Sacramento para uma conversa informal, sobre a centralização e sobre as dificuldades que há em descentralizar, sobre os desafios e a forma como a tecnologia tanto pode unir como afastar os públicos.
Este ano com início no dia de elevação a cidade de Faro, o Festival F enche Vila Adentro, o centro histórico da capital de distrito algarvia, para o último grande festival de Verão. Numa data que muitos poderão considerar difícil por ser nos finais da época veraneante, o Festival F tem aí a sua missão de “criar uma oferta turística diferenciada face ao que já havia, tanto ao nível da qualidade como ao nível da altura do ano em que ocorre”. Para Vasco Sacramento, o Festival F é “propositadamente fora do mês de Agosto para se mostrar que o Algarve que não é só sol e praia, tem outras coisas para oferecer e é magnífico de se visitar em qualquer altura do ano”. Num território com características únicas, com o património natural da Ria Formosa e o património histórico dentro do recinto, o Festival F enquadra-se na vila, respeitando os seus limites, as suas características arquitectónicas, os seus recantos e as suas histórias. Na celebração do espaço e da história, o empréstimo do espaço para os dias do festival é uma responsabilidade e também almeja “promover e valorizar aquele centro histórico que tanta gente desconhecia. Tão interessante, tão rico e cheio de pequenos segredos. Há um túnel que ainda hoje se pode percorrer que começa num restaurante e que termina já fora da muralha, que era utilizado para entrar ou sair da muralha quando a cidade estava cercada. Há a casa onde Zeca Afonso viveu e onde se diz ter sido onde compôs Grândola, Vila Morena. Há pequenos segredos, pequenas coisas, pequenas histórias que são muito interessantes e que merecem ser contadas.”
“O Algarve é uma região que no início deste século tinha muito pouca atividade cultural porque não tinha equipamentos preparados para isso, o que é um factor transversal ao país inteiro”.
Nos dias do festival, a palavra de ordem é a música e o cartaz deste ano marca, mais uma vez, pela sua transversalidade. “Tentamos traçar uma radiografia da música portuguesa da actualidade, onde está o artista mais mainstream, o consagrado, o novo talento. Onde cabem homens e mulheres, o fado, o rock, o pop e o hip-hop.” Com nomes como Pedro Abrunhosa, Mariza, Slow J ou o cada-vez-menos-desconhecido Eu.clides (ler entrevista), o Festival F tem como objectivo dar a conhecer artistas, novas sonoridades, dar palco e espaço para que artistas e público se cativem nas ruas da Vila Adentro. E o público do Festival F não cabe em moldes. Se tivéssemos um time-lapse, veríamos que ao longo do dia do festival o público se vai transformando. “No início, encontramos muitas famílias, muitos carrinhos de bebé, pais com filhos e até com os avós. Depois essa fauna vai sendo alterada ao longo da noite e às 3 da manhã, são maioritariamente adolescentes e jovens adultos e as famílias já recolheram a casa.”
A já conhecida menor oferta cultural no Algarve e em grande parte do país deve-se ao facto de “o país ser muito centralizado culturalmente em Lisboa e parcialmente no Porto”. “A cultura descentralizada”, afirma Vasco Sacramento, “é uma novidade dos últimos 20 anos, que nasceu muito com a rede de teatros e auditórios que foi construída ou reabilitada pelo país inteiro. O Algarve é um exemplo disso mesmo, é uma região que no início deste século tinha muito pouca atividade cultural porque não tinha equipamentos preparados para isso, o que é um factor transversal ao país inteiro”.
“A nossa vida cultural é um bocadinho o espelho daquela que é a nossa vida em sociedade, com profundas assimetrias entre o litoral e o interior.“
A experiência da centralização é vivida desde sempre por Vasco Sacramento. Natural de Aveiro, na sua adolescência, e até mesmo no início da vida adulta, fez “muitos quilómetros para Lisboa e para o Porto porque, em Aveiro, havia muito pouca coisa. Esta realidade ainda se verifica, infelizmente, em muitas zonas do país, nomeadamente no interior. A nossa vida cultural é um bocadinho o espelho daquela que é a nossa vida em sociedade, com profundas assimetrias entre o litoral e o interior. Há uma panóplia de questões, o emprego, a economia, a oferta de serviços, as escolas e hospitais, que faz com que o país seja completamente desequilibrado para o litoral e que vota ao abandono uma parte substancial do território. É um país que funciona de Viana do Castelo a Setúbal e sempre pela faixa litoral. Este abandono do interior é um grande desperdício e que justifica tantos outros flagelos que acontecem pelo país, como, por exemplo, os incêndios florestais.” A menor oferta cultural no interior é, para Vasco Sacramento, uma “pescadinha de rabo na boca. Porque não há pessoas e assim não há negócios, não havendo negócios não há riqueza e não havendo riqueza não há emprego”.
“As pessoas estão cada vez mais afastadas da religião nos seus moldes tradicionais que transferem esse mecanismo de fé, essa necessidade de pertencer a alguma coisa, de acreditar em alguma coisa para um artista. E quem diz artista diz para o futebol, para o culto do corpo, uma obsessão pela imagem. Há um sentimento de necessidade de pertença a uma comunidade potenciado pelas redes sociais, que criam uma falsa sensação de intimidade e de relação. As pessoas têm de encontrar mecanismos de suporte e âncoras.”
Não havendo oferta cultural é também difícil a criação de hábitos, a vontade de conhecimento e a experiência de uma peça de teatro, de um concerto. Aprendemos a saborear a arte e isso só é possível quando a vivemos. Mas poder-se-á culpar a ausência de oferta cultural de tudo? Há alguns anos, Vasco Sacramento disse em entrevista que estava preocupado com o afastamento dos jovens da vida cultural. Anos volvidos, a preocupação persiste e é bastante mais complexa. “Num evento como o Festival F, a participação dos jovens nos festivais é massiva. Mas nos auditórios e nos teatros, grande culpa é dos smartphones e de tudo o que lá está dentro. Temos uma oferta infinita de oportunidades, de lazer e de entretenimento. Cresci num mundo com 2 canais de televisão, neste momento tenho 200, ainda as plataformas de streaming e um clube de vídeo. Temos uma coisa chamada banda larga, mais o YouTube e as redes sociais. A quantidade de oportunidades disponíveis é infinita. E muitas delas são muito mais imediatas do que a atividade cultural, são muito mais fáceis. Eu chego ao Instagram e rapidamente me entretenho e é mais fácil do que chegar a um teatro, sentar-me numa cadeira, desligar o som ao telemóvel durante 2 horas e ficar a olhar para o palco. Implica um poder de concentração que pode ser um desafio. E isto já não é só uma questão do público, é uma responsabilidade que também tem de ser colocada nos programadores, porque a oferta que é disponibilizada ao público tem de ir ao encontro desta realidade. Tem de ser pensada para aquelas que são as tendências atuais, os movimentos atuais. Chego a um auditório e ponho-me ao fundo da plateia num espectáculo que nem é especialmente envelhecido ou dedicado a um público mais envelhecido e só vejo cabeleiras brancas ou carecas. Não é que um espectador de 20 anos valha mais do que um de 60, mas sinto um grande divórcio das novas gerações face ao ambiente do auditório, do teatro, dos museus.”
“As pessoas estão efectivamente com menos dinheiro. A inflação e o aumento das taxas de juro fizeram com que as pessoas tivessem menos dinheiro disponível e há outras prioridades mais essenciais.”
Há anos que existe em Portugal uma vasta oferta de festivais e de concertos, mas foi nos anos mais recentes que temos observado um aumento exponencial dos custos, não só de produção, mas também para o público. Ainda que fenómenos como Coldplay em Coimbra ou Taylor Swift no Estádio da Luz pareçam sugerir que não existem dificuldades económicas para a cultura, a verdade é que o público parece estar mais selectivo devido às restrições económicas. “As pessoas estão efectivamente com menos dinheiro. A inflação e o aumento das taxas de juro fizeram com que as pessoas tivessem menos dinheiro disponível e há outras prioridades mais essenciais”, diz-nos Vasco Sacramento. Por outro lado, “os custos de produção aumentaram exponencialmente, desde equipamentos audiovisuais, a deslocações, comunicação, etc., e isso reflecte-se no preço final do bilhete. Não há promotor que goste de aumentar os bilhetes sob o risco de o evento ser um fracasso, por isso tenta sempre o bilhete mais barato possível dentro do que é confortável para ele.” Mas, para Vasco Sacramento, o aumento dos custos de produção não tem só que ver com a logística per se, mas sim com o aumento dessa mesma logística. “Há actualmente uma pressão acrescida sobre o artista. Antigamente, o que se passava em palco era algo entre o artista e o público, hoje, se o artista cair 1000 pessoas vão filmar e no segundo seguinte está espalhado na Internet. A pressão de entregar um resultado exímio, de conseguir impactar o público, o que aumenta a competição e há uma enorme necessidade de os artistas apetrecharem os seus espectáculos com produções mais exigentes, mais megalómanas, mais caras. Estas megaproduções que vemos de artistas internacionais são cada vez mais exigentes do ponto de vista técnico e logístico e isso tem de se pagar.”
“Não há promotor que goste de aumentar os bilhetes sob o risco de o evento ser um fracasso, por isso tenta sempre o bilhete mais barato possível dentro do que é confortável para ele.“
Mas com a crise económica e o aumento dos custos dos bilhetes, como conseguimos explicar a corrida a bilhetes de um ou outro artista? Fear of missing out? Marketing? Vasco Sacramento dá-nos a sua visão das coisas remontando ao início da banda larga, que “criou uma sensação de que o tempo das editoras estaria terminado e que se daria a democratização da edição discográfica, o que aconteceu de facto. Depois a pirataria morreu e houve uma hegemonia das plataformas de streaming, nomeadamente do Spotify, que controlam completamente o mercado e, com esse controlo, regressaram as majors e as grandes editoras. Apesar de ter acesso a toda a música que é editada no mundo inteiro através do meu telemóvel, o algoritmo afunila o nosso gosto, afunila a nossa curiosidade. E apesar de termos acesso a tudo, estamos a chegar a uma altura semelhante até aos anos 80 em que temos uma ou duas dúzias de artistas que são poderosíssimos e gigantes e pulverizam tudo o que está à volta. O interesse que há à volta, por exemplo, da Taylor Swift é tão grande que há pessoas a pagarem preços exorbitantes e isso deve-se também a uma certa transformação dos nossos valores. As pessoas estão cada vez mais afastadas da religião nos seus moldes tradicionais que transferem esse mecanismo de fé, essa necessidade de pertencer a alguma coisa, de acreditar em alguma coisa para um artista. E quem diz artista diz para o futebol, para o culto do corpo, uma obsessão pela imagem. Há um sentimento de necessidade de pertença a uma comunidade potenciado pelas redes sociais, que criam uma falsa sensação de intimidade e de relação. As pessoas têm de encontrar mecanismos de suporte e âncoras.”
No meio de megaproduções internacionais, dos festivais de Verão, das festas populares e do aumento de custos, onde estão os artistas portugueses fora dos meses de Verão? A escassez de espaços fechados para espectáculos foi algo falado no pós-pandemia, com dificuldade dos artistas em encontrarem espaços para tocar (sem ser em lugares sentados) e é algo que Vasco Sacramento corrobora, defendendo que “deveria ser criado um circuito de clubes ou salas multidisciplinares de média dimensão fora de Lisboa, tal como foi reabilitado o circuito de auditórios em todo o país. As câmaras, o Ministério da Cultura e o Governo deviam perceber que isso é fundamental para atrair os jovens e para permitir que os artistas portugueses sejam mais criativos, podendo apresentar trabalhos a um público que, por exemplo, não tenha de estar sentado.”
A Sons em Trânsito manter-se-á na nossa sociedade para as próximas décadas, mas a 10.ª edição do Festival F ocorre já amanhã, dia 7 de Setembro, Vila Adentro em Faro. Por lá passarão Criatura, Slow J, David Bruno, Jafumega, Plutónio, José Pinhal Post-Mortem Experience, entre muitos outros. Bilhetes disponíveis aqui.