Estreia dos Shame: a realidade a cru em ‘Songs of Praise’

por João Rosa,    20 Fevereiro, 2018
Estreia dos Shame: a realidade a cru em ‘Songs of Praise’
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Antes de se iniciarem os primeiros acordes de Dust on Trial, primeira faixa de Songs of Praise, não é tarefa trivial reconhecer o que torna os Shame diferentes de qualquer outra banda do panorama alternativo. Enquanto os adorados grupos indie rock que marcaram o início do milénio desaparecem por completo ou lutam por manter alguma da sua relevância, novas bandas com sons semelhantes acabam por ter de atravessar a maior prova de fogo – afirmar a sua importância num género que hoje em dia perde tempo de antena para projectos de electrónica ou hip-hop mais arrojados e com uma estética cada vez mais ecléctica. Mas não só de som se faz a música: cinco jovens adultos vindos do epicentro sonoro de sul de Londres, britânicos de gema e todos do sexo masculino, acabam por ser um alvo fácil de rotular como mais do mesmo, especialmente após um ano marcado por crispadas polarizações sócio-políticas e movimentos igualitários de cada vez maior dimensão.

Pertencentes à geração que hoje reside no olho do furacão crítico da opinião pública, os Shame sabem disso e não têm medo de se afirmar ou perder a noção dos seus limites. São rudes e efervescentes, fazem rock de guitarras e não querem saber. Por outro lado, politicamente carregados, abominam o rótulo e conceito de rock star, recusam a violência e a cultura lad e afastam-se preventivamente daquilo que é lido como associado a bandas rock mais tradicionais, incluindo o seu próprio público. As contradições e a sorte perseguem-nos: na escola afastam-se da cultura rave mais popular na sua comunidade, e na busca pelo som punk mais tradicional acabam em Queen’s Head, um pub de Brixton onde ensaiam gratuitamente e apenas escapam aos vícios por serem demasiado jovens para os reconhecerem. É aí que aprendem com os erros e a ajuda de outros músicos, e onde escapam das armadilhas que vitimam prematuramente tantas bandas. São conhecidos por performances explosivas, onde tanto se envolvem em lutas para as impedir como, em simultâneo, a sua interacção pode roçar o excesso. Charlie Steen, vocalista, afirma que cantam sobre injustiça, e as linhas que se repetem, obsessivas, praticamente em todas as faixas, são sobre ouvir e ser ouvido nas suas várias vertentes. Songs of Praise, o seu álbum de estreia, é o reflexo desta dinâmica de contradições entre o que é tradicional e o que é contemporâneo.

As letras escritas por Charlie Steen e Eddie Green (guitarrista) são acutilantes e versáteis, oscilando em fluxo de consciência entre a denúncia e o humor negro. Constroem mundos e perspectivas que Steen entrega num monólogo agressivo e ritmado, pautado pela repetição em modo crescendo das linhas mais intensas. Concrete usa vozes de toda a banda que se intercalam para construir a urgência de uma relação disfuncional e inescapável; One Rizla encontra a banda em exposição da dualidade que existe entre os seus ideais e a sua própria relevância, em furioso quase-niilismo. The Lick e Tasteless apontam o dedo à própria sociedade – “Cause that’s what we want / That’s what we need / (…) / Something that’s relatable not debatable” é um mantra repetido até à exaustão. Dust on Trial e Gold Hole são pintadas a tons negros de crítica e ironia (a última descreve em sórdido detalhe a relação entre uma figura de poder; um homem mais velho, casado, com uma jovem) e a viciante Friction muda novamente a dinâmica. Alternando a acusação com a interrogação, a fricção faz-se entre o progresso citadino em que vivem, e conservadorismo lá fora. Típico da era de infinito ruído, o interminável círculo de questões termina, sem resposta, no tom claustrofóbico de quem desespera ao estar prisioneiro e sem voz na sua própria bolha, executado na perfeição. Lampoon lança-se, então, em forma da tão desejada catarse final sobre a necessidade de comunicação que tanto adorna cada letra. Depois da agressão – justificada – a tantos alvos diferentes, a grande surpresa é guardada para o final em Angie, tema de praticamente sete minutos num tom inteiramente diferente do resto do álbum, fechando a viagem com a morte e com o amor, sem dedos a apontar a nenhum deles.

Se as letras de Songs of Praise são consistentemente interessantes, muito se deve à entrega e ao modo como a furiosa spoken word de Steen se intercala com o cuidadoso trabalho instrumental. Os hooks são irrepreensíveis e demonstram a sensibilidade pop que a letra esconde. Se na voz e agressão encontramos como referência próxima The Fall, a versatilidade sonora é mais imprevisível e colorida: embora os elementos post-punk com que a banda é classificada estejam sempre presentes, são notáveis as influências indie rock de One Rizla ou Friction, ou o noise de Donk. Angie, mais fracturante na sua estética, é uma balada em eterno crescimento que poderia ter sido escrita pelos Ride movida por um ritmo hipnotizante (os mesmos também se identificariam no som intenso e enevoado de Tasteless). O elemento mais marcante que acaba por distinguir o som de Shame em Songs of Praise de semelhantes bandas é o perfeito equilíbrio que atingem nos seus movimentos entre o silêncio e a desintegração – cada música que se inicia calma acaba levada ao seu limite, ao ponto de volume e dissonância em que o instrumental, satisfatoriamente distorcido, se funde com a fúria vocal de Steen. É nestes momentos que a componente sonora da banda brilha verdadeiramente e em que as suas composições demonstram a maior progressão.

A verdade, no entanto, é que apesar de toda a dissecação aplicável, Shame fazem questão de manter a transparência. Em Songs of Praise, mostram-se como o que aparentam ser: um grupo de jovens com preocupações políticas e que escreve música contra as angústias do mundo e da sociedade, sejam elas querelas políticas, noções sociais ou até angústias interiores. Fazem-no não com a ingenuidade tão associada à sua geração, mas com inteligência, crueza e realismo. São extremos e directos, mas focam-se no cepticismo e na discussão ao invés da violência. Musicalmente, conhecem tão bem as suas heranças quanto os tempos em que vivem, e é isso que torna o seu rock tão refrescante. Rejeitam ser especiais ou até relevantes, mas fazem um trabalho tão competente que é praticamente impossível não os considerar. Podemos apontar detalhes menos positivos: registos cantados como Angie podiam ter mais presença de modo a oferecer variação ao longo do álbum e certos momentos menos enérgicos fazem desejar momentos mosh ao estilo de Concrete ou Lampoon (e já agora, Donk poderia ter uma letra a sério). Mas nenhum deles demonstra ser impedimento ao que é um álbum de estreia irrepreensível.

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