Paredes de Coura 2018 (dia 2): uma jornada de festa imparável

por Comunidade Cultura e Arte,    17 Agosto, 2018
Paredes de Coura 2018 (dia 2): uma jornada de festa imparável
© Hugo Lima
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Depois de um preâmbulo que privilegiou a força de bandas como os Linda Martini ou os King Gizzard and the Lizard Wizard, ou a beleza das melodias de Marlon Williams e The Blaze, o segundo dia do festival Paredes de Coura trouxe uma série de artistas de variados géneros e concertos fenomenais. Ao longo do final de tarde e noite, sentiu-se ainda mais entusiasmo, materializado na enchente que cobriu a encosta do recinto logo desde cedo. Revigorado pelas águas do rio Coura, o público deu muito de si, também porque os artistas lho deram de volta. É nesta simbiose que reside a força da música ao vivo, mas a envolvência natural e isolamento que a vila de Paredes de Coura confere ao festival é verdadeiramente especial. Fica aqui o nosso relato do segundo dia.

Fugly. © Hugo Lima

Coube aos Fugly abrir as hostes deste segundo dia do Paredes de Coura. No palco Vodafone.FM, a banda portuguesa deu um concerto que começou num formato mais leve – rock animado em certos momentos a fazer lembrar influências como os The Strokes ou os Arctic Monkeys em início de carreira – mas que foi evoluindo para introduções e secções instrumentais mais trabalhadas. Embora também tenhamos apreciado ouvir esse lado progressivo, foi o imediatismo dos momentos mais saltitantes do concerto que nos conquistou. A banda sonora com sabor a verão do colectivo português contou com uma boa presença de público (tendo em conta que estavam a abrir o festival), que respondeu à altura aos estímulos do rock.

Entretanto, começou no palco principal o concerto dos X-Wife. A banda portuense terminou recentemente um hiato de 7 anos em termos de edições, com um disco homónimo que serviu de mote para o regresso a Paredes de Coura. O vocalista João Vieira relembra-nos de que este foi o primeiro festival em que tocaram, em 2003, tendo por isso um lugar especial nos seus corações. A música apresentada foi aquilo a que estamos habituados: o dance-punk com melodias orelhudas, aqui aumentadas pela presença do trombone e do saxofone, como acontece em “This Game”single do mais recente álbum. Este estilo, que é uma espécie de fotografia musical do início do milénio em Nova Iorque, não tem grande espaço para inovações, mas certo é que é sempre eficaz no que toca a incitar a dança. Um simpático aglomerado de pessoas em frente ao palco dançou entusiasticamente ao som de reconhecidas canções como “Keep on Dancing” ou “On the Radio”, que serviram como um bom aquecimento para o resto do dia.

X-Wife. © Hugo Lima

Depois de terem animado um punhado de festivaleiros nas já típicas Music Sessions, os The Mystery Lights apresentaram-se no palco Vodafone.FM. Vendo o início atrasado por problemas técnicos, a banda sentiu a urgência de não perder muito tempo a apresentar as suas canções revivalistas, começando com uma toada mais punk e apressada do que as suas versões de estúdio. Com cabelos amiúde compridos e teclas roubadas aos anos 70 – como no single “Too Many Girls” – a banda apresentou riffs à boa tradição americana, aos quais se sobrepõe a voz clássica de Mike Brandon. O público não investiu muito nesta viagem no tempo musical, mas o entusiasmo crescia nas canções mais concisas e rítmicas. Não perdemos demasiado tempo por estas bandas, até porque algo mais importante se passaria no palco principal logo de seguida.

Não estariam mais de duas centenas de pessoas na frente do palco principal quando os Shame ocuparam as suas posições; mas ao fim da segunda música já mal havia espaço para nos mexermos. Talvez uma grande parte do público do Paredes de Coura não conhecesse (ou não antecipasse com grande expectativa) o concerto pós-punk da banda britânica – mas a presença de palco do vocalista foi critério suficiente para atrair toda a gente. Logo ao primeiro tema desce para o pé do público, e chama a si todas as pessoas sentadas pela encosta acima, fazendo gestos de incompreensão, como se dissesse “porque é que não estão cá em baixo”? O concerto foi um crescendo a partir desse momento. O baixista, não muito menos carismático do que o front man, quase levantava voo. Os Shame entregaram-nos temas com a irreverência que só o punk consegue convocar, sem papas na língua, cuspindo as palavras, e sob bonitos solos da guitarra. Pelo meio, a mensagem: “sorriam, divirtam-se”. Lembramo-nos de Idles no NOS Primavera Sound deste ano – há loucura e uma certa violência na performance, mas uma mensagem positiva como subtexto. O colectivo lançou o seu primeiro álbum este ano, e teve neste concerto uma prova do talento, potencial e aclamação crítica que têm recebido. Muito bom.

Japanese Breakfast. © Hugo Lima

Contudo, não temos vergonha de admitir que saímos alguns minutos antes do fim do espectáculo para assistirmos desde o primeiro minuto à estreia em Portugal do projecto da americana Michelle Zauner – cuja carreira a solo se tem desenhado à luz do nome Japanese Breakfast. Não se trata de um fenómeno menor; é uma das mais estimulantes artistas de indie pop do momento. O seu primeiro álbum, Psychopomp, com apenas pouco mais de vinte minutos, é um relato pessoal e dolorido sobre a morte da mãe; o segundo aborda as suas próprias inseguranças. Mas Michelle fá-lo de maneira graciosa e mesmo upbeat (em alguns momentos), confundindo a nossa perspectiva sobre fenómenos que marcam negativamente as nossas vidas (“In Heaven” será o exemplo mais expressivo disto mesmo). E a sua voz não deixa ninguém indiferente. Ei-la, impecável e afinada, no palco secundário do Vodafone.FM, talvez mostrando ter sido injusto o tamanho do seu nome no cartaz do festival. A plateia, bem composta, não delirava durante as músicas – embora escutasse atentamente as bonitas e originais composições de Zauner. Mas assim que o último acorde soava, uma ovação cheia e gritos de apoios faziam-se ouvir. A artista ria-se, mostrava-se impressionada e surpreendida com a recepção que estava a ter. “Foi o meu primeiro concerto em Portugal. E que grande primeiro concerto!”, admitia, quase embasbacada. Depois de “Heft”, “Till Death” e um cover dos The Cranberries que pôs finalmente uma boa parte da plateia a saltar, chegamos ao fim. As últimas notas veio cantá-las à plateia, de olhos fechados, as notas agudas estupidamente afinadas a mostrarem o seu talento. Exige-se um rápido regresso da artista a Portugal. E que nunca deixe de compor o que a sua criatividade intuir.

Paulo Furtado veio apresentar a nova vida do seu projecto The Legendary Tigerman, que conta agora com uma banda, pescada para a elaboração do mais recente Misfit. No início, o público não era muito, mas o carisma do homem-tigre e os ritmos pesados do bombo foram engrossando a audiência, que contava com uma legião entusiasta de fãs na frente, encetando os já típicos moshescrowdsurfs ininterruptamente. Problemas com o suporte do microfone e uma reacção algo ácida por parte de Paulo Furtado marcaram o arranque de forma negativa, mas o poder de canções como “A Fix of Rock ‘n’ Roll” ou “Naked Blues” foram revertendo a situação, até que a interacção com o público culminou no atirar da sua preciosa guitarra eléctrica para o meio da confusão, num momento surpreendente. O olhar confrontativo de Tigerman foi particularmente perfurante quando visto de perto, enquanto gritava a letra directa de “21st Century Rock ‘n’ Roll” na cara de quem assistia na frente. Foi uma experiência emocionante e crua, que terminou um concerto bem sucedido.

Subiu depois ao palco uma das artistas portuguesas que mais cartas tem dado no universo da música alternativa. A electrónica experimental de Surma começou por apresentar-se com um grande trunfo: os Casota Collective subiram com ela ao palco, para uma assombrosa performance vocal a fazer-nos lembrar o último álbum de Bon Iver. A pureza do som deixa-nos assombrados. Surma tem a capacidade de invocar a nossa atenção para a construção das suas composições – até a simples forma como diz ao público “até já”, antes de iniciar um novo tema revela a forma como encara as suas músicas. Viagens sónicas estimulantes e imersivas, em que o ritmo entra se entrar, mas em que não é critério necessário. Com solenidade, o público ouvia e deixava-se embalar. Em cima do palco, Surma, frenética e frequentemente sorridente, manifesta fisicamente o que vai sentindo – cada movimento seu mais impetuoso recorda-nos que a música é isto mesmo: proposta que altera a realidade, que tem reflexo corporal, que mexe o mundo. Um bonito testemunho da beleza desta arte, tendo aos comandos a talentosa produtora. Sentimos que Surma tem progressivamente abraçado cada vez mais o lado experimental da electrónica, e isso deixa-nos curiosos com o futuro da sua carreira. Que nunca deixe de arriscar e alcançará palcos ainda maiores. “Esta está a ser uma das noites mais felizes da minha vida”, partilhou com o público. Estava estampado na cara dela – não haviam dúvidas.

Fleet Foxes. © Hugo Lima

Para quem não abandonou o palco principal para ir ver Surma, a espera pelos americanos Fleet Foxes foi especialmente longa. Por entre conversas, ouvíamos louvores à banda e a ânsia por uma experiência transcendente. A nosso ver, acabou por ficar aquém daquilo que já tínhamos visto no NOS Alive no ano passado, para grande surpresa nossa. Talvez a antecipação desse concerto tenha amplificado as sensações e aqui não esperávamos menos do que isso. De qualquer forma, a banda deu um belíssimo concerto, com uma setlist rica em pérolas dos primórdios da sua carreira e uma fluidez musical que demonstra a sua maravilhosa sincronização. As traduções ao vivo relembram-nos sempre do quão belas e bem construídas são as canções da banda; veja-se “Mearcstapa”, do mais recente Crack-Up, aqui prolongada até um clímax épico.

O júbilo do público foi especialmente grande ao cantar em uníssono clássicos indie como “White Winter Hymnal” e “Mykonos”, assim como na interacção com Robin Pecknold, um dos frontmen mais orgânicos de que temos memória. Tentando sempre ouvir e responder a tudo o que lhe gritavam, acabou inclusivamente por dar o seu casaco a um sortudo fã. A sua presença é magnética, com uma aura reservada a quem compõe canções tão belas como “Helplessness Blues”, que fechou o concerto com muita emoção.

Sem dar grande tempo para repouso emocional, vieram então os Jungle estimular a componente física; e que bem estimulada ficou. Logo no início, a cargo de “Platoon”, entendemos que este era o som mais imaculado que havíamos ouvido – e que provavelmente ouviremos – ao longo do festival: batidas limpas e intensas que até levantavam vento, baixo sensual e o falsetto formidável dos grandes amigos que compõem o duo central, apresentado como J e T. Foram apresentadas canções de For Ever, álbum a sair em Setembro, que nos deixaram bastante entusiasmados para o sucessor do homónimo lançado em 2014: “Casio” “Beat 54 (All Good Now)” impressionaram com as suas batidas neo-soul refinadas; “Heavy, California”, já lançada como single, consolidou o seu status de uma das melhores canções do Verão, com a sua batida funky e teclas tropicais.

Jungle. © Hugo Lima

Sem grandes peneiras, podemos afirmar que o concerto dos Jungle foi aquele que suscitou a reacção mais entusiasta do público, com ovações prolongadas – que começaram logo na subtil mega-canção “The Heat” – braços no ar e passos de dança que se espalhavam ao longo da colina do anfiteatro natural de Coura. É complicado não reagir assim com música que é claramente feita para agradar a uma grande gama de público, sem sacrificar a sua qualidade. Terminamos este relato dizendo que qualquer melómano deve experienciar a fabulosa “Drops” ao vivo e que já ansiamos pelo próximo concerto dos Jungle.

Aos Confidence Man coube a tarefa de abrir as after hours do festival. São uma daquelas bandas inesperadas e fora da caixa que conseguem, com uma fórmula estranha, arriscada e improvável, conquistar o público. Os ritmos animados e as coreografias caricatas marcaram uma performance extremamente teatral, mas que não deixava ninguém quieto do lado da plateia. Foi um bom cartão de apresentação, colocado à hora perfeita, que terá certamente servido de grande motor de diversão para todos os presentes. E não eram poucos, os que ali estavam, sedentos de dança e ritmo para encerrarem a noite da melhor forma. Aposta certeira da organização. Assim como a de Young Marco, a fechar a noite, com beats tropicais que a todos convenceram. Foi longa, a noite do Paredes de Coura. A festa segue hoje, num eclético cruzamento entre a música alternativa, a música do mundo e o único concerto de hip hop desta edição – Skepta.

Texto escrito por Bernardo Crastes e Tiago Mendes.

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