Evangelion 1.0, 2.0 e 3.0: do céu ao inferno em 302 minutos
“À terceira é de vez!”. Pela terceira vez, Hideaki Anno regressa à sua obra de maior destaque, “Neon Genesis Evangelion”, e pela terceira vez muda a sua estrutura, decisões, momentos e o seu final. Para entendermos exactamente as motivações de Anno, em “Evangelion”, temos também que o conhecer um pouco melhor.
Hideaki Anno nasceu em 1960, na provincia de Ube, Japão. Vegetariano, fã de robôs gigantes e aprendiz de Hayao Miyazaki em “Nausicaa of the Valley of the Wind”, Anno sofre de depressão há muitos anos, tendo nos anos 90 mergulhado numa profunda depressão que se arrastou durante cerca de quatro anos. Recentemente, durante a produção de Evangelion 3.0, Anno teve outra queda, refugiando-se em si próprio durante algum tempo até que se sentisse capaz de enfrentar o mundo. Todas as suas experiências pessoais passam para o mundo de Evangelion. Rei é vegetariana, Shinji é claramente alguém que sofre de depressão, como muitos outros personagens, Asuka parece ser uma pessoa extremamente confiante, mas o seu passado fê-la criar alguém que não é, etc.
Muito já foi falado sobre a saga de Evangelion, aquele que é considerado um dos maiores animes de sempre, mas caso queiram explorar mais sobre o tema podem ler o nosso artigo sobre “O que há de tão especial em “Neon Genesis Evangelion?” aqui!
Sem contar com a manga, que foi lançada em 1994, o primeiro grande lançamento de Evangelion no mundo foi com a série de TV em 1997, posteriormente com os filmes “Death & Rebirth”, “The End of Evangelion” e “Revival of Evangelion”. Entre a série e os filmes as diferenças na narrativa são pequenas, embora o final seja bastante diferente. Se nesta altura era comum fazer-se uma comparação entre ambos, após o lançamento dos novos filmes, a saga “Rebuild of Evangelion”, essa comparação deixou de fazer sentido, tais são as diferenças entre os novos filmes e todo o outro conteúdo já criado de Evangelion.
“Evangelion: 1.0 You Are (Not) Alone”
Passaram-se nove anos desde Anno lançou algo relacionado com Evangelion que não tenha sido a manga. Como tal, a expectativa era elevada, ainda mais quando esta nova série de filmes foi promovida como “um novo olhar sobre a série”, em vez de ser um recontar das acções passadas.
O filme centra-se em Shinji, um jovem adolescente que cresceu sem mãe, e cujo pai lidera a equipa que pretende salvar o mundo das misteriosas criaturas chamdas de “Anjos”. Ao chegar a Tóquio e encontrar o seu pai após vários anos, Shinji descobre que deve pilotar um mecha, conhecido como “Evangelion Unit-01”, para proteger o mundo desses mesmos Anjos. O enredo é em grande parte uma adaptação ponto a ponto dos primeiros seis episódios do anime original.
“Evangelion: 1.0 You Are (Not) Alone” não defrauda as expectativas e apresenta-se como um filme bastante sólido, com a mesma identidade da série e a mesma qualidade a que estávamos habituados, agora com um update visual, algo que fazia sentido 10 anos depois da série ter estreado. Neste filme assistimos uma vez mais ao confronto entre Shinji e si próprio, além do seu pai, à introdução dos Seele, Anjos, NERV, e todos os outros personagens do universo de Evangelion. As diferenças entre a série e o filme são minímas, sendo que até o facto de algumas cenas estarem mais compactas ser positivo para o desenrolar da narrativa. De forma geral, Anno alcançou boas críticas, e este primeiro filme deixou excelentes indicações para o que aí vinha.
A explicação da complexa narrativa de “Evangelion” está agora mais simplificada, mas sem perder a sua essência. Este 1.0 é sem dúvida um complemento à série e uma excelente forma de resumir os primeiros episódios, sem perder nada do que é realmente fulcral.
“Evangelion: 2.0 You Can (Not) Advance”
Chegamos ao segundo filme e a expectativa aumenta bastante. A introdução da personagem de Asuka Langley era bastante aguardada, assim como as excelentes sequências de acção que esta parte engloba. Contudo, foi neste capitulo que Anno começou a desvendar um pouco do que seria a sua ideia geral de “apresentar algo diferente do anime”. Evangelion 2.0 tem várias cenas novas, que nunca tinham aparecido no anime original, além de alterar bastante outras cenas fulcrais. Isto gerou uma onda mista de opiniões. De um lado os que estavam contra tamanhas alterações, até porque essas mudanças acabaram por prejudicar o desenvolvimento do personagem da Asuka; de outro lado estavam os que adoraram as novas sequências de acção e preferiram uma abordagem mais directa e explicativa de toda a mitologia de Evangelion, ao invés das habituais explicações filosóficas.
2.0 continua a história de “Evangelion: 1.0 You Are (Not) Alone”, com Shinji Ikari como protagonista, mas agora dividindo a sua importância com a personagem de Asuka. As relações de Shinji com Rei e Asuka são exploradas neste filme, tal como na série, mas talvez com menos foco emocional do que no anime original. A introdução da personagem de Mari é feita de forma algo apressada, mas tendo em conta sua pouca importância isso não afecta negativamente a história no geral.
Mesmo com várias alterações, este 2.0 conseguiu criar o mesmo ambiente e identidade do anime, algo que é fulcral para se expandir um universo que é tão familiar, e isso só pode ser visto como sucesso, independentemente de concordarmos ou não com todas as alterações. O caminho que deixa para o 3.0 é interessante e esperava-se uma abordagem idêntica nessa terceira parte, com o mesmo núcleo, mas com sequências novas. Infelizmente isso não aconteceu.
“Evangelion: 3.0 You Can (Not) Redo”
É óbvio que algo se passou com Evangelion 3.0. É sabido que Anno enfrenta uma enorme depressão (uma vez mais), algo que o levou inclusive a parar a produção do filme, mas isso não pode ser razão suficiente para o que aconteceu com a história deste terceiro filme. Sendo claro, tudo é completamente diferente: a história, os personagens, até a própria realização. Mas o grande problema deste filme não é apenas ser diferente, é o quão corta com o passado e elimina tudo o que foi criado no 1.0 e 2.0. A vontade de Anno até poderia ter sido de criar uma nova abordagem, seja com novos personagens que não tem qualquer desenvolvimento, importância ou história (Mari), ou alterando comportamentos de personagens familiares tornando-os praticamente nulos em personalidade ou desenvolvimento (Misato), mas faze-lo de forma tão brusca do 2.0 para o 3.0, quebrando todo a narrativa de um filme para o outro não faz absolutamente nenhum sentido. Os buracos no plot são tantos que nem seriamos capazes de os enumerar a todos. Além disso, o salto narrativo de 14 anos e a explicação para que os condutores dos Evas não tenham envelhecido é provavelmente o exemplo mais claro que este filme não foi bem pensado. Tudo surge aleatoriamente e sem explicação. Todos os personagens são transformados em bonecos sem personalidade, ou com personalidades completamente diferentes sem qualquer explicação. E a nova narrativa não encaixa na história geral de Evangelion, torando 3.0 um autêntico desastre não só no universo de “Evangelion”, mas também como filme isolado.
3.0 é um desastre de tão nível que quase nada dos filmes anteriores é desenvolvido ou debatido de forma significativa: o relacionamento de Shinji com os seus amigos e a relação com seu pai, o desenvolvimento de Rei e Asuka enquanto personagens além de pilotarem os EVAS, os Seele e a relação de Kaji com a NERV, etc, etc. Os momentos iniciais são apenas um conjunto de explosões e sequências de combate sem grande fundamento, algo que não se altera muito durante o resto do filme. Toda a escrita é apressada. É pena o que acontecem com a personagem de Rei, que se torna realmente uma boneca sem emoções, algo que no anime é explorado e fundamentado, não apenas atirado sem contexto. Em relação a Gendo assistimos também a uma caricatura de si mesmo, o que é pena, tendo em conta que na série original o personagem tinha uma presença enigmática e misteriosa, enquanto aquié apenas um vilão de desenho animado genérico sem qualquer profundidade emocional/intenção.
Financeiramente não há dúvidas, cada filme de Evangelion gerou mais dinheiro do que o anterior, mostrando claramente que os Rebuild foram um sucesso. A nível técnico existe um claro aproveitamento do 3D/CGI, embora nem sempre usado da melhor forma, mas no que toca à animação em si estamos perante uma excelente obra. Toda a trilogia assenta numa base cada vez mais comum, em que a animação tradicional vem sendo cada vez mais substituida por animação digital. Contudo, aqui existe uma preocupação natural para apresentar animação tradicional da melhor qualidade possível e isso é visível em pequenos detalhes como partes secundárias do cenário com grande iluminação e detalhes. No que toca a banda sonora todos os três filmes ficam aquém do anime original. Embora usem algumas músicas do original, a generalidade das músicas é irrelevante e com pouca identidade. A ligação à música clássica era algo que caracterizava fortemente o anime original e aqui desaparece um bocado de cena, embora tenhamos momentos como aquele em que Kaworu e Shinji tocam pianos juntos, a banda sonora pouco aborda esses temas.
Para um fã é impossível não lutarmos internamente com aquilo que adorámos do anime original e que não está presente ou foi alterado nestes “Rebuild”. Enquanto tudo isso funciona de forma minimamente pacifica nos dois primeiros filmes, no terceiro há um confronto directo com aquele que gostamos e acreditamos em todo o universo de Evangelion. O 3.0 não é um filme para todos os fãs, daí a ser naturalmente aquele que gerou mais críticas negativas, mas pior que isso, é um filme com demasiadas lacunas para fazer parte da espinha dorsal da narrativa dos Rebuild. Entramos para o quarto e último filme, 3.0+1.0, com a expectativa muito em baixo, mas como o passado já mostrou inúmeras vezes, essa expectativa nem sempre corresponde à realidade.