Festa do Cinema Italiano: ‘Guarda in Alto’ e as irreverências do imaginário
A 11º Festa do Cinema Italiano regressa este ano de Abril a Junho, à semelhança das edições anteriores, a várias cidades portuguesas, começando em Lisboa e no Porto espalhando-se um pouco por todo Portugal continental e também pelas ilhas. É um acontecimento que tem vindo a ganhar cada vez mais destaque com o objectivo de partilhar a cultura italiana e expor o cinema italiano contemporâneo.
“Crescemos de certa forma com a inevitável influência do cinema italiano, somos todos um pouco italianos, pelo menos nos gestos“, esta é a proposta de Stefano Savio para esta edição. Este é também um festival cinematográfico que vai ao encontro de diferentes faixas etárias e que lança filmes em ante-estreia e visita o cinema italiano mais antigo, em forma de homenagem, como é o caso dos filmes de Marco Ferreri.
Sendo assim, fomos ao Cinema São Jorge ver ‘Guarda in Alto’, um filme em competição, do italiano Fulvio Risuleo, e que teve a sua estreia no Festival de Roterdão. Esta obra começa exactamente com o movimento de câmara que se desloca em traveling, num ângulo extremamente contra-picado dos apartamentos pela cidade de Roma. Nisto continuamos a ver as nuvens e os apartamentos já que o filme nos sugere olhar para cima, já que para baixo é sempre igual. Entendemos que isto não é por acaso, já que o filme se passa no alto, nos terraços de Roma e é assim que somos introduzidos neste universo que tanto tem de fantasia como tem de discordância social.
Conta-nos a história de Teco (Giacomo Ferrara), um jovem pasteleiro, que sempre que pode fazer um intervalo, desloca-se até ao terraço à procura de ar livre para desfrutar do seu cigarro. Com um ar completamente exausto, do trabalho e do tédio da vida, olha para o céu à procura de algo. Curiosamente, vê uma estranha e ampla gaivota que voa de forma descontrolada caindo num terraço ao lado. Em forma de herói aventureiro ele corre e salta o gradeamento indo de encontro com a gaivota.
Assim começam as peripécias de Teco, que nunca tinha visto o mundo daquele ângulo, é ali mesmo que cresce a vontade pela descoberta de realidades nunca antes experimentadas. Começou pela contemplação pela gaivota e continuou a observar tudo em seu redor, aguçando a sua curiosidade que gritava por aventura. Conforme vai observando os terraços de Roma, este entende que existe um universo distinto que se vive por ali, e assim somos levados em forma labiríntica pelas condutas, pelas ruínas, pelos terraços. Começamos assim viver também num mundo surreal, sentido como uma criança que se movimenta por territórios desconhecidos e começamos a entender a necessidade de Teco em ficar por ali. Com o avançar da narrativa vão sendo adicionadas novas personagens e novas formas de olhar para este mundo irregular. O escapismo da sua própria realidade torna-se cada vez mais evidente, levando o espectador consigo.
Mais tarde, ambos se esquecem do que havia anteriormente, e passam a viver na mente de gente sorridente e positiva.
Apesar das animadas máscaras, as crianças do terraço, os ‘índios de roma’, são as personagens que direccionam todo o filme, levando Teco sempre ao sítio certo, são elas que o fazem acreditar e viver naquele sonho. Levam-no até à gaivota, até as freiras, e mais tarde ate ao foguetão que vai até à lua.
Uma das partes mais estimulante de ‘Guarda in Alto’ são as realidades exageradas que vão surgindo, como a freiras que vivem numa espécie de underground, onde escondem segredos, pilotam gaivotas de telecomando, consomem bebidas alcoólicas e frequentam estranhas festas; ou os dois irmãos que vivem em constante nudez urbana, um conceito que tem vindo a ganhar fãs por toda a Roma, vemos um terraço com dois homens adultos nus a jogarem badminton; ou a rapariga que se lança de um balão de ar quente e cai de para-quedas no terraço; ou a corrida de caracóis, que acontece num bar, e em que todos os apostadores investem bastante dinheiro só para ver o seu caracol e a sua carteira ganharem em simultâneo.
Todas estas realidades são críticas ao mundo habitual em que a sociedade vive, porque não? – é a pergunta que nos é feita. Qual destes universos faz menos sentido. Se pensarmos bem também vivemos numa realidade completamente sem sentido, e porque não dar sentidos a outros sentidos da vida.
Uma das coisas que contribui para esta predisposição animada durante todo o filme são as propostas de música e som que ocorrem durante o filme, uma concepção muito moderna que mistura sons electrónicos com sons tribais, dando grande carácter a toda a obra. Para além da fotografia do filme, que espalha esta vivência juvenil e aventureira, este também propõe uma paleta de cores claras, juntamente com cores de infância, como os amarelos e vermelhos. ‘Guarda in Alto’ é um filme que se desloca em movimentos de plena satisfação em câmara lenta: que corre com as personagens, em tempos de retirada, e que fica quieta a observar as personagens tal como os sentimentos que nos aprazem.
Risuleo é um jovem realizador, apenas com 27 anos e já com nome no cinema italiano, inspira-se em autores Saint Exupery, Lewis Carrol, Júlio Verne e Carlo Collidi, explorando os limites do mundo imaginário, mas sempre com uma componente humana e sentimental forte. O seu cinema explora o tempo e o espaço à semelhança de realizadores como Jean-Pierre Jeunet, Terry Gilliam, Michel Gondry. Risuleo escolhe contar uma história que embora pareça superficial, fantasiosa, e encontra intrínsecas várias pequenas mensagens sobre a vida e o saber viver.
‘Guarda in Alto’ é um filme idílico, com uma realidade romântica e arrojada, própria para os adultos que conseguem ver e experienciar a criança que se encontra dentro delas.