Festival MIL 2023: uma noite no Cais do Sodré a descobrir boa música
Mergulhámos na passada noite de quinta-feira no festival MIL, no Cais do Sodré, como quem se aventura num território inexplorado com curiosidade e entusiasmo. E fi-lo fora de pé — conduzido pelo gosto de alguém amigo, mas sem programa totalmente predefinido nem rota fechada; e, mais do que isso, sem conhecer a priori a música de quase nenhum dos artistas que viria a descobrir ao longo da noite. Digo “dos”, mas poderia até usar o pronome “das”, tendo em vista que a maior parte dos concertos em que dei por mim foram de artistas mulheres, muitas delas portuguesas, a provar que felizmente vivemos num tempo em que a arte musical no feminino tem espaço para impor a sua revolução, também política, mas acima de tudo humana (uma nota de rodapé aos grandes festivais, cujos cartazes frequentemente perpetuam anacrónicas desproporções de género: a este ponto do campeonato até seria já quase absurdo pensar-se na ideia de quotas, basta abrir-se os ouvidos para se perceber a abundância e diversidade de talento).
Estivemos em três dos sete espaços do Cais do Sodré inscritos na programação do MIL: no Musicbox, no Roterdão e no Titanic Sur Mer partimos de uma quase tabula rasa para a descoberta do que cada artista nos ofereceu — a sua música, a sua arte. Este é aliás um dos motes do MIL, que se dedica à “descoberta, promoção, valorização e internacionalização da música popular actual”, com “foco na produção musical dos países de língua portuguesa” (conforme o manifesto constante no website do festival). Sendo que — primeiro reparo — o conceito de música popular é compreendido pelos programadores de forma muito lata, ou não tenham sido os cinco espectáculos que vimos um pentágono equilátero, de géneros musicais distintos e abordagens artísticas tão díspares quanto experimentais (em diferentes campos). Que bouquet maravilhoso de música nova para os nossos ouvidos, num formato tão acessível — e leve — de concertos relativamente curtos (entre 30 a 45 minutos) e de circulação entre salas que permite arejar a cabeça nos intervalos.
Começámos às 19h30, com o concerto mais pesado de entre os que assistimos: foi-nos oferecido o hardcore (ou post-hardcore) dos Hetta, banda portuguesa que deu um concerto de apenas 30 minutos (certamente a energia não teria dado para muito mais sem que se caísse para o lado desidratado). Alex Domingos, o vocalista de screamo, dava tudo em cima do palco, tal como cada colega da banda, numa oscilação entre a tensão do corpo a conter-se em antecipação e a libertação total. Destaque para a bateria: a intensidade rítmica do género é mais do que frenética, pisa mesmo o risco do assustador. Quanto ao som, uma parede enorme que se apresenta de forma tão bruta que se torna quase música ambient, regada a emoções violentas, e potenciando uma experiência extra-corporal. Talvez a maior parte da audiência no Musicbox não tenha correspondido ao desejo da banda, que apelava a que mais gente se juntasse ao mosh e ao crowdsurf praticado por duas dezenas de fãs nas filas da frente. A certa altura Domingos brincava com o público: as pessoas das filas de trás da sala seriam a malta “das conferências”? Já teriam feito muito “networking” naquele dia? (Numa referência às secções do MIL mais dedicadas à formação, debate e encontros sectoriais entre profissionais da cultura, que não tivemos a oportunidade de assistir). “Venham-se divertir-se um bocadinho!”, chamava. Para estes ouvidos foi toda uma experiência: o mathcore não me chegou ao coração, mas estava inaugurada a atitude de descoberta e exposição-ao-novo que até ali me levara.
Foram poucos os metros percorridos até descermos, ainda em plena Rua Cor-de-Rosa, até à cave do Roterdão, um espaço em que nunca tinha tido o gosto de entrar. Ali assisti, primeiramente de pé e depois sentado a dois metros do palco, ao concerto de April Marmara, que não podia ter contrastado mais ao nível de intensidade e volume de decibéis com o concerto dos Hetta. A folk acústica de April Marmara constrói-se a partir de uma base de guitarra intrigante e frequentemente bela, com uma construção que ora nos recordava Fleet Foxes ora Joni Mitchell. Acordes cheios e criativos, a somar a uma expressividade cativante na mão direita, davam o mote. A artista fez-se acompanhar de Martim B. Teixeira (com um projecto próprio em nome de Jasmim), que na guitarra elétrica e com apoio de pedais ia colorindo aquele universo acústico com pequenos apontamentos que traziam emoção ao conjunto. Seguindo o “diário de vida” da artista, como ela partilhou, fomos embalados e inspirados por aquele momento de calma e de paz.
Depois de uma pausa para jantar — entre as escolhas de um festival também se encontra a escolha da hora em que temos de recompor as calorias — regressamos novamente à cave do Roterdão, para aquele que foi, até àquele momento, o concerto que mais emocionalmente me falou. Embora seja difícil explicá-lo. Shoko Igarashi é uma artista japonesa — actualmente a viver na Bélgica — que mistura uma electrónica dançante e psicadélica com uma certa abordagem jazzística e experimental. A partir de bases electrónicas complexas, com samples pré-gravados que punha a tocar em palco, ia adicionando os mais variados sopros (flauta-sintetizador, flauta transversal e safoxone), contribuindo para uma atmosfera estranhamente divertida, inspirada, utópica: qualquer coisa de vídeojogo, mas também algo de clube underground muito wholesome e optimista. Ficou guardada a referência de uma descoberta tão inusitada, a fazer lembrar o city-pop japonês que tanto revivalismo tem despertado nos ouvidos contemporâneos. A julgar pelo carinho com que elogiou a sua estadia em Lisboa, poderemos voltar a poder ter em breve a oportunidade de nos perdermos naquela estranha, cartoonesca e imersiva electrónica.
Chegava a hora do concerto que mais curiosidade nos despertava no cartaz de dia 28 do MIL: Ana Lua Caiano subiu ao palco sozinha, no Titanic Sur Mer, e fazendo uso um delicioso uso de loops gravados na hora, para apresentar a sua arte que funde música popular portuguesa com uma electrónica estimulante e acelerada. O uso da língua portuguesa terá sido um dos grandes trunfos da noite — foi este o único concerto em que pudemos desfrutar da nossa maravilhosa língua. Mas não se tratava meramente de palavras portuguesas: a dicção de Ana Lua Caiano parece elevar o dicionário, e a música portuguesa que cria e interpreta. A sua atitude em palco, a expressividade, o cuidado que parece colocar em cada sílaba, é absolutamente hipnotizante!
Quando referíamos, atrás, o bom uso de loops, dizíamo-lo com razão de causa: é infelizmente frequente assistir-se a um uso excessivamente repetitivo e mecanizado desta tecnologia, mas Caiano faz com que aquele universo de sons ganhe vida em cima do palco, com um talento invulgar para a qualidade da composição e estrutura — e assumindo, imagine-se, o papel pedagógico de, a certa altura, explicar em directo a construção da canção que está a gravar. Ensinou um refrão novo à centena de pessoas que teve a sorte de ali a poder ouvir, de um futuro single sobre andar em círculos — “até parece que já conheciam a canção!”, exclamou Ana Lua, satisfeita com o resultado do processo participativo. Foram quase tantas as músicas novas, ainda por estrear, como as já lançadas — a artista ainda não lançou nenhum álbum completo de estúdio, tendo já apresentado dois EPs. Com tambor, pandeireta, adufe, palmas, e uma série de outros ingredientes, a música construía-se com a afirmação de um rasgo de trovão, transpirando qualquer coisa de muito “português”, uma essência qualquer ancestral com sabor a futuro e caminho por trilhar. No público dançava-se, batia-se palmas, cantavam-se os refrões orelhudos. Que fique registado: que grande novo talento da música portuguesa (ler aqui a entrevista que deu à CCA). E que concerto!
Fomos encerrar a noite no Musicbox, no concerto mais experimental da noite. Talvez demasiado experimental, pelo menos para o gosto deste que o ouviu. A Residência WBM & MIL Feat. Obsequeen, Iris e Surma foi o resultado de um processo criativo que resultou de uma semana de criação musical patrocinada pelo MIL em colaboração com a Wallonie-Bruxelles Musique. Entre o experimentalismo electrónico e expressividades urbanas, em território musical queer, apresentou-se aquele conjunto de músicas ainda pintadas de fresco; mas sem um rumo suficientemente sólido que potenciasse a relação ou a fruição.
O MIL tem um certo sabor a Super Bock em Stock (o velho Mexefest), mas em formato de “bairro”, mais próximo, mais familiar, mais português, em salas pequenas que parecem querer fomentar pequenas comunidades de ouvintes com gosto pela descoberta musical; tão pequenas que reconhecemos as caras no público de umas salas para as outras, potenciando essa sensação de descoberta colectiva. Fórmula bem sucedida para este novo ouvinte, que fica com cócegas de regressar para o ano e poder descobrir — de improviso ou não — mais uma mão-cheia de expressões, ali tão perto de nós, a poucos metros, no espaço imaterial que a fruição musical cria de forma efémera em cada lugar.