“Frankissstein”, de Jeanette Winterson: enganar a morte, ultrapassar Deus
Jeanette Winterson (Manchester, 1959) rouba o fogo a Prometeu para criar “Frankissstein” (Elsinore).
Desde Hesíodo e Ésquilo que este titã de segunda geração tem sido reinterpretado de acordo com diferentes culturas.
Victor Frankenstein foi Prometeu e (o seu irmão) Epimeteu na construção do monstro a que Mary Shelley, no século XIX, viria a dar o sobrenome do seu criador.
O avanço tecnológico tem sido tema para escritores proeminentes. Em Portugal, dois exemplos recentes de sucesso: De Lillo, com “Zero K” e Ian McEwan com “Máquinas como eu”. Nada é novo, no entanto. São questões que têm sido levantadas desde há séculos, ou, se recorrermos à literatura clássica e ao Livro dos livros, uma questão debatida há milénios.
Winterson actualiza a história de Shelley ao século XXI (as citações vão desde a poeta Emily Dickinson a Larry Page, co-fundador da Google). Intercalando em dois fluxos narrativos a construcção ficcional da criatura Frankenstein com a imortalidade alcançada através de “upload” da memória para outro recipiente (tecnológico ou humano), a autora de Manchester dialoga com o cânone literário e com a mitologia.
Uma história, como Winterson refere, é “uma série de acontecimentos interligados, reais ou imaginados: Imaginados ou reais./Imaginados e reais”.
Por um lado, Mary Wollstonecraft Shelley, autora de Frankenstein, vai demonstrando como a sua vida tem influência directa na construção de um dos mais famosos livros de terror gótico.
Por outro, o investigador Victor Stein- com evidentes ligações a Victor Frankenstein- apaixona-se por Ry Shelley, médico transgénero, e desenvolve um sistema tecnológico para o ser humano se imortalizar.
Como eixo comum, as sempiternas questões existenciais provocadas pela tensão entre ética e possibilidades científicas, entre moral religiosa e as cada vez maiores possibilidades de criação pela até agora criatura.
É num tom onírico e fragmentado que Winterson vai comparando a evolução tecnológica debatida pelo médico transgénero, o investigador em inteligência artificial, um empresário vendedor de “sex-dolls” e uma cristã evangélica com a criação de Frankenstein.
O drama vivido pelo casal Shelley – Mary, com 22 anos, havia perdido três filhos- contrasta com a acérrima e hilariante defesa das “sex-dolls“ pelo vendedor Ron Lord e com a confusão identitária causada por Ry Shelley.
Em Ry, Stein vê a possibilidade de manipular o corpo de acordo com as ambições. O “híbrido” – assim se auto-define o médico transgénero Ry- é desenhado conforme os anseios de quem “habita” aquele corpo. Toda uma linguagem tem de ser adaptada a uma nova realidade. Será que a masculinidade se resume a quem tem um pénis? Serão humanos aqueles cérebros mantidos artificialmente ? E as memórias guardadas numa “cloud” depois de um massivo “download” para contornar as impeditivas fragilidades da carne humana? Simplesmente ficheiros?
“O cérebro dele é só a base líquida. Não vou precisar dela depois de ter feito upload dos conteúdos. O cérebro é uma embalagem. Pensa em ti mesmo como um conjunto de dados, Ron. Os teus dados podem ser armazenados em vários contentores. De momento, estão armazenados num grande cacifo de carne.”
A reconfiguração do ser humano empurra a morte para o oblívio e introduz novas formas relacionais.
O armazenamento de memórias possibilita a passagem de um recipiente para outro, humano ou não, com o objectivo de perpetuar a vida. Em simultâneo, as “sex-bots“ não necessitam de serem levadas ao cinema, nem implicam discussões sobre anseios e liberdades. Simplesmente obedecem ao dono e reforçam as ideias de quem as compram. Além de satisfazer as necessidades. Curioso é perceber que o grande sucesso destes “seres” está no mercado masculino. Para as mulheres, o produto não é tão apelativo, embora existam algumas vantagens.
“O Ron tem razão, disse Claire. Tenho vindo a compreender que – como a minha relação mais importante é com um ser invisível – deus -, não preciso de um ser humano no sentido antigo. E sabem, um bot nunca me vai deixar sozinha a criar os filhos. Nunca me vai roubar dinheiro para pagar as dívidas do jogo. Não tenho de andar em bicos de pés pela casa para não o incomodar. Não tenho de limpar a porcaria dele. De me preocupar com ele. De me preocupar com o que fará a seguir.”
O triunfo da tecnologia e das máquinas é crescente. Tal como Adão, colhemos e comemos o fruto do conhecimento. E usamos o fogo roubado por Prometeu aos Deuses. O Prometeu moderno-subtítulo da obra de Mary Shelley- é agora, ou está prestes a ser, as criações de Victor Stein. No fim do livro de Shelley, o criador rejeita a sua criação; a criação rebela-se do seu criador.
Esticamos as possibilidades e destruímos barreiras. Somos o Victor Frankenstein do século XXI? Seremos castigados?