Gal Costa celebrou a vida e a música do Brasil no Coliseu dos Recreios
Após a digressão de 50(!) anos de carreira que trouxe Gal Costa a Portugal em Novembro de 2017, eis que a cantora brasileira se apresentou novamente no nosso país em nome próprio, desta vez para apresentar o novo disco A Pele do Futuro. Num formato assumidamente diferente dos concertos das bodas de ouro – feitos em formato acústico, com apenas guitarra e Gal a ser ouvidas -, desta vez tivemos direito a banda completa, que reproduziu o som cheio do álbum, para além de revisitar outras canções incontornáveis. Para uma carreira tão longa e recheada, não conseguimos deixar de pensar que as quase duas horas não chegaram para matar a nossa sede de bossa nova e tropicália, mas a sensação latente no final foi de satisfação com o espectáculo.
Depois da lista de créditos das pessoas que contribuíram para que o concerto acontecesse, a voz-off deixou-nos com Gal Costa – recebida por uma chuva de aplausos. Bem merecidos, tendo em conta o início, em que Gal rasga a atmosfera de excitação com o seu vozeirão, cantando “Não se assuste pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa” – cover de “Dê um Rolê”, dos Novos Baianos. É esse o mote para o concerto, uma celebração da vida e das coisas boas, porque o mundo já está suficientemente virado do avesso.
A admiração inicial dissipa-se ligeiramente ao longo da canção seguinte, parte integrante de A Pele do Futuro. Durante a mesma, a voz de Gal parece fraquejar, não atingindo algumas notas mais elevadas e soando meio presa. Curiosamente, na letra, Gal afirma ser filha das vozes que vieram antes e mãe das que virão depois. Claro que sabemos isso, tendo em conta o seu estrondoso percurso, mas não ajuda à admiração da voz que a música em si fique um pouco aquém de composições do passado, soando a uma espécie de tributo a big bands clássicas. À medida que o concerto vai avançando, somos mais frequentemente arrebatados, tanto pela voz, que se destaca em momentos mais solenes, como pela música. “Viagem Passageira”, uma composição recente de Gilberto Gil, feita para Gal, retém os elementos sónicos e o léxico que caracterizam a sua música, trazendo um cheirinho do Brasil musical do passado para o presente.
Por entre elogios a Lisboa – que “está tão linda” -, Gal revisita a tropicália e os anos 60, altura em que visitou a cidade para fazer um programa de televisão. Desses tempos de ditadura portuguesa, relembra os olhares atónitos das pessoas que perscrutavam a sua vestimenta de “hippie louca”, e a sua fala, da qual não entendia nada. Para colorir essas recordações, Gal toma como suas “London London”, canção de Caetano Veloso, na qual procura por “flying saucers in the sky”, e “As Curvas da Estrada de Santos”. O alinhamento equilibrado revela ser uma revisitação do percurso musical do Brasil, nas composições de intervenientes incontornáveis, assim como novas promessas – como Tim Bernardes ou Teago Oliveira. A pele do futuro é feita por aqueles que compõem o tecido criativo do Brasil.
Quando Gal fica sozinha em palco com Lucas Martins e o seu contrabaixo, dá-se um dos momentos mais sublimes do concerto. “Lágrimas Negras” fez aquilo que as melhores baladas brasileiras clássicas fazem: transportar-nos para um outro lugar e tempo. Do interior do Coliseu dos Recreios, fomos para uma praia carioca, onde deixámos que Gal nos embalasse nas ondas da sua voz. Nunca o Coliseu nos tinha parecido tão amplo, com a plateia silenciosa e o palco despido de intervenientes.
Muitas das canções até então tocadas haviam sido clássicos, mas que nunca foram gravados ou conhecidos na voz de Gal Costa. Por isso, quando o público ouve o início de canções instantaneamente associadas à artista, como “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” ou “Chuva de Prata”, a reacção é de efusão. “Minha Mãe”, d’A Pele do Futuro, que conta com a colaboração de Maria Bethânia em estúdio, é interposta com “Oração de Mãe Menininha”, outro dueto entre as duas artistas. As canções funcionam como duas faces da mesma moeda e são bem recebidas pelo público, muito pelas suas letras emotivas, dedicadas à figura materna.
Por entre canções, Gal mostra-se bem disposta, fazendo mais uns quantos elogios a Lisboa (“a cidade mais pacata”) e contando histórias. Para apresentar “Palavras no Corpo”, conta-nos que a canção surgiu a partir de uma simples frase de um dos intervenientes do espectáculo: “ninguém diz ‘eu te amo’ como a Gal”; e a repetição da afamada expressão na canção confirma-nos isso, à medida que ouvimos essas palavras pelo meio dos trompetes leves.
Mais para o final do espectáculo, a bola que faz parte do cenário converte-se em bola de espelhos, para completar a homenagem à música disco feita em “Sublime”, a porta de entrada do mais recente álbum. Gal urge a que o público se levante e dance, completando o ciclo da celebração da vida. A reacção foi tão entusiasta, que o público manteve-se em pé ao longo das duas canções seguintes, que fecharam o concerto. “Viva a vida!”, gritou Gal, que pareceu ter força de vida para dar e vender – o que de certa forma faz, através da sua música.
O encore fez-se por forma de uma rapsódia de clássicos, seguindo-se uns aos outros para júbilo crescente do público. É sempre bom revisitar as canções que já nos fizeram felizes, assim como as épocas da sua génese, e é isso que se sente nos concertos dos grandes artistas brasileiros. Este espectáculo não foi excepção, comprovando que vale a pena celebrar a vida com a música de quem já o faz há mais de 50 anos – antes da reforma, que Gal assume um dia acontecer, mas não para já.