‘Gomorra’, a série, a máfia e o realismo italiano
“Máfia” é um termo que hoje em dia vai bem mais longe do que o rigor da sua utilização o exigiria e vai já muito além da circunscrição geográfica que faria mais sentido pela sua origem, sendo já uma palavra também utilizada em relação a organizações criminosas originárias de todos os pontos do Mundo. Longe do glamour que a caracteriza no cinema como na trilogia The Godfather , provavelmente uma das mais reconhecidas franquias da história do Cinema, baseada no livro homónimo do mestre Mario Puzo, que além do livro que levou à adaptação cinematográfica de Francis Ford Coppola escreveu ainda obras como The Sicilian ou The Last Godfather, há obviamente motivações como a ambição e o sentido de “família” que são comuns entre a realidade e a ficção.
Do cinema e dos livros às séries de televisão, há que destacar Boardwalk Empire e, obviamente, The Sopranos, uma das mais brilhantes séries televisivas de todos os tempos, criada por David Chase e que acompanha a vida de Anthony “Tony” Soprano (interpretado pelo inigualável James Gandolfini), um dos capos de uma “família” do crime sediada em Nova Jérsia. A “máfia” foi, é e continuará a ser, um tema frequente quer seja em livros, filmes ou séries televisivas, como é o caso de Gomorra, curiosamente um título com trabalhos desenvolvidos nessas três áreas.
Baseada no best-seller de Roberto Saviano intitulado de Gomorrah: A Personal Journey into the Violent International Empire of Naples’ Organized Crime System a série italiana Gomorra nasce também da adaptação para cinema desse mesmo livro, cujo filme homónimo, realizado em 2008 por Matteo Garrone, viria a ser o vencedor de vários prémios internacionais incluindo o Grande Prémio do Júri em Cannes em 2008 e nomeação para Melhor Filme Estrangeiro nos Globos de Ouro no ano subsequente).
O livro nasce de uma investigação do jornalista e escritor que se debruçou sobre as actividades ilícitas (tráfico de droga, tráfico de cigarros e extorsão, sobretudo) da organização criminosa Camorra, que tem as suas ligações às camadas socialmente mais pobres da cidade de Nápoles (sendo a equivalente napolitana à máfia siciliana, a Cosa Nostra, de onde surgiu um convite directo em 1974 a Michele Zara e outros importantes membros da Camorra para se unirem à organização) e arredores (na caneleira da “bota” italiana) e que juntamente com a Sacra Corona Unita na Apúlia ( situada no “tacão” da “bota” italiana) e a ‘Ndrangheta na Calabria (biqueira) compõem algumas das associações criminosas de maior relevo no chamado Mezzogiorno, no sul de Itália.
Aliado ao sucesso do livro, o facto da importante investigação de Saviano ter levantado vários véus sobre as acções da Camorra e ter trazido novamente à praça pública a presença da máfia no tecido social italiano, levou a algumas ameaças por parte do clã Casalesi, um dos principais visados na investigação, o que viria a valer uma escolta policial em permanência para Saviano.
Gomorra, a série, conta-nos a história do clã Savastano, um dos mais poderosos da Camorra e que impõe o seu poder sobre Secondigliano – subúrbios do norte de Nápoles onde historicamente existe a “l’alleanza di Secondigliano“, uma organização que gere todo o crime na zona. A série leva-nos até às ruas das localidades e bebe claramente de um neo-realismo italiano que tem na realidade social o princípio orientador de criação narrativa e fílmica (recordemos a este propósito filmes como Ladri di biciclette, de Vittorio De Sica, Roma, città aperta, de Roberto Rossellini e Salvatore Giuliano de Francesco Rosi, sobre o famoso fora-da-lei siciliano. Os céus cinzentos, os prédios degradados, a pobreza, o tráfico e a degradação de alguns dos bairros sociais prescrutados por nós através das imagens são muitos dos traços que nos acompanham ao longo da série.
Além de um leque tremendo de aparições de personagens secundárias que se vão revelando importantes à trama, como personagens principais temos tido Ciro di Marzio “L’Immortale” (Marco D’Amore, num papel verdadeiramente marcante e imersivo ao longo das temporadas) e Gennaro “Genny” Savastano (Salvatore Esposito), o sucessor lógico do clã Savastano.
Culpados pela qualidade da série temos também os seus realizadores, e um dos mais prolíficos da série é Stefano Sollima, um dos nomes mais reconhecidos (a par de Matteo Garrone) do cinema italiano actual e que, entre várias séries policiais (La squadra, Crimini e Romanzo Criminale), é também o realizador de um dos mais poderosos filmes neo-noir italianos dos últimos anos (onde também se deverá destacar Anime Nere de Francesco Munzi) sobre as ligações da máfia romana com a Igreja e a política: Suburra (baseado no livro de Giancarlo de Cataldo que deu também origem à já referida série Romanzo Criminale), exibido em Portugal por ocasião da 9ª Festa do Cinema Italiano em 2016 e que em 2017 viria a dar origem a uma série homónima. Resultado do sucesso dos seus trabalhos, incluindo também do filme de 2012 A.C.A.B., Stefano Sollima está actualmente ao leme do projecto Sicario 2: Soldado, continuação de Sicario, filme de 2015 realizado por Denis Villeneuve e escrito por Taylor Sheridan (a mente de Hell Or High Water e Wind River, tendo também realizado este último).
Com uma banda sonora crua, composta por muito rap de origem italiana como a música que encerra todos os episódios, “Nuje Vulimme ‘Na Speranza” de NTO’ e Lucariello ou a rouquidão de “Mallamore” de Franco Ricciardi, Gomorra, transmitida pela RTP2 em Portugal, é, por tudo o que a compõe e pela sua enorme qualidade, uma das melhores séries da actualidade e a sucessora por mérito de La piovra, histórica série italiana que chegou a ser transmitida em horário nobre pela RTP1.