Gosto muito do meu amigo Loyle Carner
Por estas bandas, já falei bem de muita gente da música, entre eles o Tom Misch, o Jordan Rakei ou o Alfa Mist. A estes três, sobre quem falei muitas vezes e a quem falei a tanta gente, juntei sempre o nome do Loyle Carner. Não só por ter colaborado com todos eles, mas também por os ter conhecido mais ou menos na mesma altura. Porém, o Loyle Carner não é um artista de jazz ou de R&B, embora tenha muito de ambos. Ele é um rapper na verdadeira aceção da palavra, fazendo do seu percurso de vida um combustível gigante para a música que vem fazendo até agora, e é o único a quem não tinha dedicado um artigo.
Isto para dizer que gosto muito dele. Conheci-o ainda estava focado no Tom Misch e fui ter a “Water Baby”, mas também a “Nightgowns” e a “Karma” (música que não está nas plataformas de streaming, mas que é deliciosa). É no Soundcloud que habitam os primeiros passos de toda esta malta, que prenunciam a sua história. A do Loyle, ou Benjamin Gerard Coyle-Larner (sim, trocam-se as iniciais dos apelidos) começa no ano de 1994, nascendo ele a 6 de outubro no efervescente sul de Londres, capital de Inglaterra. Cresceu ao lado da sua mãe, professora de ensino especial, do seu padastro e do seu irmão, já que, ao seu pai, só conheceria bem mais tarde. Este que era de origem guianesa e que dá a ascendência negra ao artista, ascendência que viria a perfilhar e a explorar posteriormente. Assim, a negritude ficaria de parte na sua formação pessoal, deixando questões por responder quanto à sua raça.
Loyle Carner também nos chega por reconhecimento da dislexia e da perturbação de hiperatividade/défice de atenção (PHDA) pelos quais passou na sua infância. A música chegaria depois da morte do padrasto, sendo que, antes, ambicionava ser ator. Tudo começa em 2014, com o EP “A Little Late”, e com a sua presença em concertos, como os de MF Doom ou Nas. Em 2017, chega “Yesterday’s Gone”, o primeiro grande momento discográfico de Loyle, e que o coloca no mapa do hip hop britânico. Para lá de “Damselfly”, que conta com a ajuda de Tom Misch, há muitos outros grandes momentos, que junta o seu caminho ao dos amigos Kwes, produtor, e Rebel Kleff.
É um álbum que recebe as atenções da imprensa e que recolhe nomeações para prémios, à imagem do que traria ao público dois anos depois. Traz a continuidade em “Not Waving, But Drowning” – referência ao poema da lírica Stevie Smith -, mas uma continuidade em qualidade, com “Angel”, também ela com Misch, a chegar ao FIFA 20. Para além desta, traz Jordan Rakei para produzir e colaborar em “Ottolenghi” – a piscar o olho ao seu grande apreço por culinária e pelo seu projeto “Chilli Con Carner”, junto de crianças com PHDA -, para além de nomes como Sampha (“Desoleil (Brilliant Corners))”, Charlotte-Day Wilson (“Sail Away (Freestyle))” e até Jorja Smith (“Loose Ends”). Até aqui, Loyle Carner chega com leveza, com ligeireza, com estilo e com à vontade, fazendo acompanhá-los com uma musicalidade que o denuncia, revelando pontualmente alguma nostalgia, fruto do seu forte sentimentalismo.
Ainda sobre o seu gosto por culinária, não só refere o chef Yotam Ottolenghi, mas também o italiano Antonio Carluccio, que sempre viu como referência pessoal. O mesmo estatuto que tem Eric Cantona, o polémico futebolista francês, por influência do seu padrasto, embora seja adepto do Liverpool. O mesmo estatuto da sua grande referência no mundo do hip hop, Kendrick Lamar e a sua magnum opus “To Pimp a Butterfly”. Com o seu rap, Loyle foi sempre à procura de encontrar o tal estádio no qual a maturidade chegara para refinar aquilo que o espírito jovial quer exultar para fora. Faltava-lhe mais alguma coisa para deixar de ser a tal borboleta que mostrava ser mas que, no fundo, ainda nem havia abandonado o estado de lagarta.
Porém, depois da pandemia, de ter sido pai e de procurar o sentido da paternidade junto do seu pai biológico, Loyle Carner tornou-se diferente. Mais consciente, mais maduro, mais desperto para o seu passado ancestral e para os desafios do seu presente. Curiosamente, a aproximação com o filho foi acontecendo quando este lhe anunciou que seria avô, depois da namorada de Loyle ser engravidado. Apesar de uma reação a quente, foram aproximando-se depois de se oferecer para ensinar o músico a conduzir, levando a momentos de partilha e de intimidade que lhe ajudariam a transmutar os sentimentos menos bons que trazia (e que havia reprimido) para algo mais agradável, que canalizaria para o seu descendente.
É isto que faz nascer “Hugo” (2022), no reconhecimento dos seus fantasmas e das suas vicissitudes, com o nome do carro onde aprendeu a guiar. Distante dos holofotes dos media, Loyle viajou à Guiana e conheceu na primeira pessoa as origens territoriais do seu pai. Com a ajuda do poeta John Agard – assim como de outros, embora já falecidos – e dos versos que o acompanham em “Georgetown”, foi tentando encontrar a paz e a aceitação do seu passado perturbado, marcado por momentos de racismo e até de crime. Um percurso de compreensão e de reconciliação que o próprio compara a uma peça de William Shakespeare e que usa como palco de várias mensagens a transmitir aos seus seguidores, tanto no aspeto social e nas reivindicações a si subjacentes, mas, essencialmente, nos grandes desafios individuais de cada um.
Com isto, chegamos ao ponto rebuçado de Loyle Carner como artista e como ser humano. Sem esquecer a riqueza lírica e musical que sempre o acompanhou, a sua atualidade faz dele, mais do que um mero músico que dispara umas rimas com pinta, um ser humano. Um ser humano marcado pelo seu passado e que faz dele alimento para um presente de autoavaliação e de introspeção. Na retaguarda, ficaram nomes na produção musical, como os de Rakei e de Alfa Mist (“Blood On My Nikes”, sobre um crime que assistiu na primeira pessoa, ou “Speed of Plight” são exemplos), mas também o do monumento do hip-hop Madlib, que já lhe tinha produzido o single “Yesterday”.
Como não se dá parado, foi contribuir com uns versos sobre as questões de afirmação pessoal em “Take It Slow”, da sua conterrânea ENNY. Talvez por isto a crítica tenha sido ainda mais simpática para Loyle. O reconhecimento da sua humanidade, dos seus erros e das suas angústias, fazendo dessa tomada de consciência um momento de progresso e de evolução. Visite-se “Hate” ou “Polyfilia” para se perceber ainda melhor ao que me refiro. Para o futuro, fica sempre uma ligeira inquietação de que seja preciso tanta dor para se chegar mais longe com a sua música.
Tudo isto para dizer que gosto muito do Loyle Carner. Gosto por ser realista, por ser humano, por não ter receio de trazer as suas fragilidades, as suas vulnerabilidades, as suas ausências. Mostra o caminho a ser feito para as diminuir através da sua música, um palco cada vez mais rico e completo. Não só se trata da música soar bem ou das rimas serem inflamáveis. É das próprias histórias que são partilhadas incendiarem os seus traumas e de os transmutar em cinzas que são arrastadas pelo ar. Um ar que todos queremos conhecer, o que tal que se encarrega de levá-las para longe e que se dane a despedida emotiva.
O Loyle Carner tornou-se meu amigo porque partilhou comigo a sua intimidade e porque temos afinidades. Porque ambos queremos conhecer-nos melhor a nós mesmos, às nossas origens, aos nossos porquês. Porque não nos conformamos. E porque eu gosto muito dele.