Helena Almeida, uma figura incontornável no panorama artístico português contemporâneo
Helena Almeida é uma das célebres artistas da modernidade portuguesa. Filha do escultor Leopoldo Neves de Almeida, nascida em Lisboa, no ano de 1934, foi uma das estudantes mais bem-sucedidas da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, tendo exposto pouco tempo depois, em 1967, na Galeria Buchholz, na sua cidade, individualmente. Três anos antes, havia partido para Paris, beneficiando de uma bolsa de estudos, mesmo depois de se casar com o arquiteto Artur Rosa. Assim, aos trinta e três anos tinha já muito para contar, abrindo o espaço a uma arte personalizada e tridimensional, capaz de intrigar quem a encarasse. Isto porque, na sua formação, se sentiu afeiçoada pelos princípios da arte conceptual, que lhe permitiram vislumbrar novos caminhos artísticos, capazes de colocar em causa as lógicas comuns e de desconstruir as perceções convencionais.
Assim foi, quando, já no final dessa década de 1960, procurou encontrar formas distintas de se autorrepresentar. Fê-lo, em especial, a partir da fotografia a preto-e-branco (muitas delas captadas pelo seu marido), que a destacou inicialmente, enquanto envergava uma tela, numa pose similar à de Cristo a carregar a cruz. Fotografia que, como muitas outras, se tornou parte de autênticas séries com uma lógica inerente, narradas pela sua própria forma de criar a sua arte. Trata-se de uma tomada de posição, em que a artista assume que aquilo que é o core do seu trabalho é, não mais, do que uma representação da sua identidade. Assim, as diferenças e as distâncias entre o trabalho e o corpo da artista tornam-se, cada vez mais, uma miragem, fundindo-se num discurso em que a imagem feminina se transforma numa pintura ou num desenho. Assim, assume-se, ela própria, como a tela, captando o seu instante performativo ao mesmo tempo que o corpo é, ele próprio, o objeto artístico.
A arte de Helena Almeida também pode ser vista como um combate em relação à “tirania” que se impõe entre a sua existência e a sua representação artística, em que há essa intermediação que tira a autenticidade à sua criação. Entre as suas obras de renome, destacam-se, assim, “Pintura Habitada” (1975), “Desenho Habitado” (do mesmo ano), “Tela Habitada” (1977), “Ouve-Me” (1979), “Negro Agudo” (1983), “Saída Azul” (1995) ou “Dentro de Mim” (2001, em escultura). São as tais imagens que convergem vários meios e que colocam em diálogo várias camadas de criação, que pronunciam diferentes espaços e momentos temporais distintos e que, na sua fusão, criam uma nova plataforma de tempo e de espaço, que não é mais do que o momento da criação. Um momento de quietude, em perfeita harmonia com o exterior, embora segura da sua interioridade. Tanto com cor, como sem ela, Almeida entrega-se a um protagonismo que não necessita de ser evidente, mas que vai sempre ao encontro com esse choque com os limites, desde os suportes, passando pela multiplicidade de espaços com gestos de alguma dramaticidade.
Almeida chegou a inovar com o uso de fios de crinas, que davam a impressão de se tratarem de desenhos que saltavam para fora da superfície e que iam de encontro a esse discurso vanguardista e de tomada de risco, em que as telas viram quase janelas. O desenho era, enfim, um dos três vértices da triangulação artística da pintora, que recorria, de igual modo, à pintura e à fotografia. A pintura, nomeadamente, em três cores, entre o azul e o vermelho que, por vezes, cruzavam com o negro; e a fotografia, que não era mais do que a metanarrativa que voltava às origens do desenho e que se encontra dentro da própria pintura. Esta polivalência permitiu que embarcasse por outros meios e demais fins, desde o design ao cinema, passando pela escultura e até pela arquitetura, fazendo, ainda hoje, sucesso por uma série de instituições culturais mundiais, que vão para lá de Lisboa e que chegam a Londres e até a Nova Iorque.
São três vértices que consagram a sua necessidade de se ver, ela própria, uma obra de arte, que é muito mais do que uma representação plasmada numa superfície e que se faz com o recurso a diferentes frentes. Apesar dessa elementaridade de cores, muitas vezes em manchas, que se imiscuem pelas mãos que as criam, mas também pelos olhos e pela boca. É uma linguagem nova que é criada, concretizada por uma semântica que convida a um prolongamento da extensão do corpo, que se alonga no tempo e que se repercute numa nova dimensão de espaço. É um espaço feita pela extrapolação, pelo chegar ao lado de lá dos limites, com um convite aos recursos estilísticos das emoções. Toda esta noção de amplitude, composta pelo acesso ao chão e ao tecto, mas também às paredes, abre portas a que as diferenças entre a interioridade e a exterioridade se tornem diminutas.
Durante a sua carreira, arrecadou diversos prémios, desde o da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1984, até, um pouco antes, o prémio da 11ª Bienal de Tóquio. É um pecúlio que se estende naquele que é a valorização de um discurso artístico em que são as formas e é a própria artista, em si mesma, a arte. É a sua relação consigo mesma e com o ambiente em seu redor, trazendo um novo paradigma para a criação artística. Em muitos dos seus trabalhos, Almeida discursa com gestos e posturas perante o seu atelier interno em que habita e em que se transforma, abrindo portas a algumas questões que vão de encontro às grandes preocupações dos movimentos feministas. Reencontrar e redescobrir a identidade feminina é uma meta que vai alcançando ao transpor essas restrições e ao jogar com as dimensões sensoriais, expondo momentos de convite ao outro de questionar o mais fundamental dos olhares, dos ouvires, dos cheirares e até dos falares.
A representação tão personificada da artista ajuda, de igual modo, a que o diálogo que esta constrói seja povoada de vários significados. Por exemplo, momentos em que se encontra tapada e escondida, denunciando aspetos de uma realidade opressiva e repressiva, ou até então o próprio abandonar da palavra, de forma a encontrar um discurso capaz de fintar os obstáculos que a sociedade lhe impunha, sejam vindos do Estado ou até da própria estrutura social. O corpo humano é fonte e suporte de uma realidade concreta artística, que é veículo das suas histórias e das suas turbulências interiores, que, em muitas ocasiões, servem de temas e de plataformas de colocar em causa a atmosfera artística vigente, tanto dentro como fora do seu país.
Também o sonho é tema, mais no final da sua carreira, quando se dedica a construir realidades oníricas, no diálogo entre o seu atelier e os objetos com os quais convive no dia-a-dia. A pintura ganha uma vida própria, procurando debater-se com a sua criadora, que se torna a sua sombra e que se torna estática, vazia de essência, fragmentando-se pelas suas criações. No entanto, não deixa de ser ela a manietar as expressões das suas obras, por intermédio da fotografia, onde ela, de forma subtil, demonstra a sua força narrativa, que por mais que aparente estar congelada, segue viva e em plena construção. Jogando com os limites do palco da vida artística, sintoniza-as com o final abrupto do seu corpo, nas extremidades das suas mãos e dos seus pés, para o qual, por vezes, acaba por convidar o seu marido para não a deixar acabar-se ali e ampliar a sua extensão num firme percurso que soa à infindade.
Helena Almeida foi tudo isto. Pintora, desenhadora, artista. Fotógrafa não, embora fizesse parte e determinasse a conceção dessas fotografias, com a missão real e bem concreta de fazer parte do seu discurso artístico. Assim, pode-se assumir que também é fotógrafa, já que concebeu essas realidades, em plena harmonia com os seus desenhos e com a sua intenção de ser, ela própria, arte. Mais do que a obra por si mesma, a artista entregar-se à criação e fundir-se nessa intenção de ser, enfim, a realidade desejada, que almeja os limites invisíveis, mas bem presentes, de até onde vai a expressão do que é e de que como é a arte. Helena Almeida permanece, assim, como retrato desenhado, pintado e fotografado dessa distinta intenção e de se firmar, em si, tamanha realização.