“O Irlandês”, de Martin Scorsese: um magistral regresso às origens
Para a realização desta crítica o filme foi visto em sala na cidade de Madrid, Espanha. Posteriormente será lançada outra crítica onde o filme foi também visto em sala em Lisboa, na Culturgest, a convite da Netflix. Outra ressalva antes da leitura do texto: contém spoilers.
Há realizadores que terminam a sua carreira com uma obra prima e pela qual ficam conhecidos, outros mais talentosos chegam a produzir duas ou três. Numa outra galáxia vivem realizadores como Martin Scorsese que quando se reformarem vão deixar-nos dez ou doze títulos de qualidade superior das quais as próximas gerações vão continuar a desfrutar.
Na sua vasta carreira, Scorsese explorou vários temas e mostrou versatilidade no retrato de diferentes temáticas. No entanto, o seu nome estará para sempre associado aos filmes de gangsters ou máfia como se costuma designar. Foi explorando esta temática do crime organizado que em 2007 ganhou o seu (por enquanto) único Óscar na qualidade de realizador, com o magnifico The Departed (2006). Este é apenas um entre muitos filmes sobre gangsters que o realizador norte americano concebeu.
Numa primeira fase, e sempre com o seu fiel Robert De Niro, surgiram as suas primeiras visões com títulos como Mean Streets (1973), Goodfellas (1990) ou Casino (1995) e já numa segunda fase da sua carreira, em conjunto com o talentoso Di Caprio, começou a explorar a mesma temática mas em tempos mais modernos com obras como The Departed (2006) e o diabólico The Wolf of Wall Street (2013). Agora, com este seu novo filme, The Irishman, acontece um regresso à primeira parte anteriormente descrita. E a inigualável dupla Robert De Niro e Joe Pesci volta a trabalhar com Scorsese. A estes junta-se outro ator de primeira linha: Al Pacino que, pela primeira vez na sua carreira, trabalha com Scorsese. Juntos voltam a produzir um capítulo deste primeiro grupo de filmes onde os conflitos de interesses levam a traições, mortes e roubos. Mais do que uma luta pelo dinheiro, como nos filmes mais recentes, os confrontos aqui surgem acima de tudo por questões de orgulho e de poder.
Um dos grandes objetivos de Scorsese com o cinema é o de pintar grandes pedaços vida, explorando sempre a verdadeira origem humana dos seus personagens. Para além disso, há sempre um especial prazer em filmar nas ruas de Nova Iorque, cidade onde nasceu e cresceu numa área fortemente influenciada por italianos, especialmente da Sicília. Em The Irishman também vemos estas influências italianas.
Tudo começou em 2004 quando De Niro leu o livro no qual a obra se baseia: “I Heard You Paint Houses” (2004) do ex-investigador e escritor Charles Brandt, uma frase que nos acompanha durante o filme e bastante utilizada em campanhas publicitárias. O actor ficou intrigado pelas personagens verídicas deste livro, o que naturalmente o levou a imaginar um filme do mesmo (De Niro também produz The Irishman).
Como seria de esperar, uma história dessa natureza teria que contar com a realização do seu amigo de longa data Scorsese, que rapidamente identificou a conexão emocional que De Niro tinha para com aquela história real. Aqui, acompanhamos o relato de Frank Sheeran, o irlandês, interpretado por De Niro, sobre os seus envolvimentos criminosos com a família Bufalino (sobretudo com Russel Bufelino interpretado por Joe Pesci) e Jimmy Hoffa (em mais um papel magistral de Al Pacino), um líder sindical de enorme relevância. O filme é contado em 4 linhas temporais, a presente na qual encontramos um Frank bastante velho que nos vai contar toda a narrativa, dentro da qual há uma viagem de carro mais recente entre ele e Russel e dentro desta viagem é-nos contado o nascimento da sua amizade que deu origem a vários acontecimentos que acabam por representar a narrativa principal do filme. Numa quarta linha ainda mais distante temos memórias de Frank quando participou na Segunda Guerra Mundial. A terceira linha narrativa converge com a segunda e no final do filme as três linhas principais convergem para dar luz ao brilhante final do filme.
Como sabemos, este grupo de actores já ultrapassou os 75 anos e como tal durante a filmagem foi utilizado a tecnologia de CGI (Computer Graphic Imagery) para rejuvenescer as suas faces nas diferentes linhas temporais, uma ferramenta que Scorsese definiu ao Independent como “uma evolução da maquilhagem”, para ele as tecnologias são bem-vindas desde que não retirem “a natureza humana dos filmes”.
Relativamente à história esta é bastante longa e vem desde os anos 50, passando pela eleição e morte de John F. Kennedy no qual vemos os interesses de Hoffa sobre o mesmo, até ao tempo no qual Frank nos conta a história, em princípios do século XXI. Dentro das personagens, o mais importante a nível histórico é Hoffa, líder do International Brotherhood of Teamsters (IBT), uma união sindical que Hoffa ajudou a tornar-se na maior dos EUA.
A narrativa em torno de Hoffa é absolutamente central no filme. A pesar disto, a personagem principal do filme acaba por ser Frank, the Irishman, um homem que se encarregava de transportar carne para restaurantes até conhecer Russel e dar um novo rumo à sua “carreira”. Frank é um homem inexpressivo, de poucas falas que gosta das coisas organizadas e definidas de forma simples. Não é uma personagem que vá do oito ao oitenta, antes pelo contrário, o seu estado de humor é extremamente constante o que nos dificulta a vida quando tentamos perceber se ele realmente se importa pelos crimes que comete. Por outro lado, ainda que seja um criminoso, vemos nele uma espécie de “bom soldado” leal aos seus amigos, no qual se pode confiar para executar uma tarefa com eficiência.
Durante quase três horas e meia, assistimos às questões da luta de poder, conflitos morais e a exploração do lado negro dos humanos. Podemos também ver este filme como um ensaio sobre envelhecer, um problema que o trio de actores e o próprio Scorsese estão a enfrentar nas suas vidas. Sobretudo, através da personagem de Frank que na parte final do filme, ao fazer uma profunda reflexão sobre arrependimentos ou não, revela um pouco mais dos seus sentimentos e dessa sensação imediata de já ter passado tudo o que tinha para passar na sua vida. Dá conta que o facto de ter andado sempre ocupado de projecto em projecto, levou-o a sentir que tudo passou muito depressa.
O lado das relações familiares dos personagens com as suas famílias é claramente posto em segundo plano, ou seja, as famílias estão lá, ficamos a conhecê-las, mas pouco tempo vão ocupar no grande ecrã, um lado da história que podia ter sido melhor explorado, como Scorsese fez em outros filmes como Goodfellas (1990). Não obstante, também se pode argumentar que essa ausência é propositada para dar ainda mais força às conclusões da vida de Frank e como qualquer objeto de arte, está sujeito a diferentes interpretações. Cabe ao público sentir-se identificado com o filme e “sem necessariamente saber o porquê disso”, como sugeriu Al Pacino em entrevista à CBS Sunday Morning.
O filme é também um enorme relato da história dos EUA e da vida do carismático Hoffa, uma personagem histórica que atualmente passa um pouco ao lado da importância que chegou a ter.
Dignos de menções honrosas são igualmente o humor inteligente do filme, o trabalho com a caracterização dos actores e a banda sonora que Scorsese trata com pinças para que o ambiente de época seja o mais real possível. Já a fotografia, que ficou a cargo de Rodrigo Prieto, não é especialmente deslumbrante, mas cumpre com o seu papel de dar ao filme um ar dramático e documental em determinados momentos.
Na parte final tudo converge em torno da personagem de Robert De Niro (Frank) e eleva o filme a um nível superior no qual acabamos com uma solidão e silêncio que dão o espaço necessário para o espectador acrescentar os seus próprios sentimentos e acrescentar a sua perspectiva sobre a vida de Frank, depois de ter passado tantos anos a “pintar casas”. Momentos que nos podem levar a experimentar um efeito espelho e a questionar sobre que preço vamos pagar pela vida que estamos a viver.