‘Human Flow’: uma viagem leal e actual da crise dos refugiados
“Human Flow” é uma homenagem ao poder da imagem – arrisco-me a afirmar que, se se retirassem os comentários sonoros, o documentário não perderia o seu significado. Sem pretender chocar em demasia – notemos que somos, apenas, uma única vez confrontados com a imagem violenta de um corpo morto e já em decomposição –, o realizador, Ai Weiwei, arrasta-nos para um cenário repleto de barcos à deriva no oceano, de tendas que são habitação, de fronteiras fechadas, de desespero, de procura incessante pela vida para quem esta é uma conquista e não uma garantia. Rapidamente, percebemos que nos encontramos perante a atual crise de refugiados.
A cena que abre o documentário é-nos familiar: um pequeno barco carrega pessoas de coletes vermelhos e cor-de-laranja; para além do peso humano excessivo, carrega vidas inteiras e esperanças, numa travessia rumo ao desconhecido. De seguida, somos transportados até ao Iraque, onde sobrevoamos um campo de refugiados habitado, principalmente, por cidadãos provenientes da Síria; ainda no mesmo país, uma tela branca vai sendo colorida por pessoas estáticas de diferentes idades, numa tentativa de nos lembrar que cada refugiado representa, acima de tudo, uma história, um rosto, uma identidade. Somos, ainda, transportados para outros países, entre eles a Grécia, o Bangladesh, a Síria, a Jordânia, a Itália e a Turquia.
Ao longo de dois anos, Ai Weiwei viajou por vinte e três países e visitou quarenta campos de refugiados. A juntar a esta experiência, apresenta um passado semelhante, onde ele próprio sofreu na pele a retirada indesejada de casa quando, na década de cinquenta, o governo comunista chinês enviava para campos de trabalho forçado quem ousava criticar a sua vontade. Não é de estranhar que o passado tenha, assim, servido de alavanca ao trabalhado realizado, funcionando através de um sentimento de compaixão que não deixa de ser louvável. No entanto, as intenções do realizador, no limite, ajudam a entender a sua obra, não a justificam, e é exatamente por isso que, mesmo considerando o bom fundo de quem conduz um filme, este pode falhar. Não considero que seja o caso de “Human Flow” que, com crueza, simplicidade e inteligência, interliga vidas, memórias, relatos e pensamentos.
Acima de tudo, este é um documentário sincero que se justifica por si só: não pretende apresentar esclarecimentos profundos ou assinalar os porquês; não pretende, sequer, apresentar soluções. Convida à reflexão e ao pensamento, numa tentativa de ser o próprio espectador a fazer as ilações que considerar pertinentes com base no que vê, nas informações que lê – sobretudo, baseadas em estatísticas – e no que ouve. Claro que este não é um processo totalmente livre: o caminho que o realizador quer que percorramos é previamente determinado.
No fundo, “Human Flow” repete-se ao longo dos cento e quarenta minutos totais, não sendo isto pejorativo, apenas consequência da própria natureza do fenómeno. Por outras palavras, por mais distintas que sejam as origens de cada pessoa apresentada, as suas crenças, a sua religião, a sua história individual ou vivência coletiva, todas se encontram em situação semelhante por terem sido forçadas a abandonar o seu país de origem como forma única de preservar a vida. Neste sentido, o documentário, por um lado, dá voz a quem sofre na pele os problemas e, por outro, a quem trabalha para melhorar as condições de vida apresentadas, sendo o discurso semelhante, independentemente das fronteiras habitadas; quem se encontra na primeira posição espera ser tratado com a dignidade que merece, quem se encontra na segunda, reclama uma resolução urgente e sublinha o caos vivido.
Um dos aspetos mais curiosos é o facto de Ai Weiwei se fazer aparecer em cena agindo casualmente: a grelhar o almoço, a rapar o cabelo, a tirar selfies com a população ou a trocar de passaporte com um refugiado, numa brincadeira que, rapidamente, se torna numa situação constrangedora. Apesar de ser irrelevante para a mensagem que pretende passar, estes aspetos, além de funcionarem como uma lufada de ar fresco, reforçam a sua clara ligação à realidade do que é ser refugiado – definição que apresenta ainda durante a primeira hora do documentário. Outro aspeto curioso é o pequeno número de pessoas entrevistadas que choram ao relatar a sua situação, como se fossem somente as feições dos seus rostos a exteriorizar a tristeza que sentem – talvez pelo hábito, talvez por terem perdido todas as forças; mais do que curioso, torna-se preocupante, ao revelar relatos frios, distantes e apáticos, como se a esperança tivesse morrido algures entre o seu país e a viagem realizada. Se esta ainda existe, encontra-se, principalmente, refletida nas crianças, cuja felicidade inocente demonstra como as coisas poderão, um dia, recompor-se.
Ai Weiwei optou por descomplicar, utilizando, em “Human Flow”, apenas aquilo que, sendo visível pelos seus olhos e sentido pela sua experiência, seria o mais urgente de filmar. O resultado foi uma viagem leal por aquilo que é a crise de refugiados nos seus moldes atuais.