ID_NO LIMITS: o festival de identidade urbana de que precisávamos

por Bernardo Crastes,    4 Abril, 2019
ID_NO LIMITS: o festival de identidade urbana de que precisávamos
IAMDDB. Fotografia: João Rosa / CCA
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É entusiasmante começar de novo. A perspectiva de um novo festival, apesar das inevitáveis comparações com eventos passados, traz-nos a cada vez menos frequente oportunidade de experimentar algo novo. O ID_NO LIMITS reinventou-se desde a sua anterior iteração como Lisboa Dance Festival e seguiu o mote que lhe dá nome: não impor limites à forma de execução, a estereótipos de género ou a expressões artísticas.

O Centro de Congressos do Estoril foi o espaço escolhido para acolher o festival; um espaço francamente inusitado que acabou por se revelar versátil na medida certa, com a possibilidade de descoberta para o espectador, à medida que percorria os diferentes recintos, bem divididos e, ainda assim, perto uns dos outros. Isso facilitava deslocações e trouxe fluidez a um festival no qual dificilmente nos sentimos assoberbados por massas de gente, apesar da boa adesão por parte do público. À entrada, ainda antes de a maioria do público ter chegado, o ambiente parecia alienígena, com luzes arroxeadas desconcertantes e um som drone vindo da instalação artística CAST//2050, do colectivo português 00:NEKYIA, que evocou um futuro talvez não muito distante com recurso a Inteligência Artificial, visuais etéreos e som industrial.

Fotografia: João Rosa / CCA

Encontrámos o palco principal logo no átrio, ladeado por longas cortinas que o isolavam do ambiente circundante. Aí, foram recebidos os nomes maiores do festival. No primeiro dia, houve um foco maior no hip hop, com a sequência de Madlib e IAMDDB. O primeiro, reputado produtor e DJ, veio abrir o palco com um dos seus sets, com snippets de beats de hip hop que se seguiam rapidamente, demonstrando grande mestria e fluidez na mesa de mistura, como seria de esperar. No entanto, a música em si acabou por não ser especialmente entusiasmante, conjurando um ambiente relaxado mais adequado a um fim de tarde num festival outdoor.

De seguida, a luso-britânica Diana de Brito provou ser o nome mais atractivo do festival, pela reacção entusiasmada da chusma de gente que se juntou para a ver. Com o seu discurso português comovente, a artista criou uma ligação instantânea com o público, baseada na música, nas origens e no seu amor por “charutos”. A sonoridade foi mais direccionada para o trap do que o epíteto de urban jazz da sua música deixaria entrever, com canções como “Wokeuptoflexx” ou “Sweg”, do mais recente EP, à cabeça. O flow da jovem artista manteve o embalo que os beats de Madlib trouxeram, mas com um ambiente mais vibrante, bastante bem recebido.

Pedro Mafama. Fotografia: João Rosa / CCA

No segundo dia, o palco principal recebeu Arca, artista que mais personificou o mote sem limites que o festival propôs. A mistura de performance teatral, sons e samples electrónicos sem grande estrutura, intercalados com canções pop, passagens vocais angelicais, comoventes interacções com o público, projecções visuais esquisitas (a cargo de Carlos Sáez) e até leitura, de certeza há-de ter dado algo a todas as pessoas presentes, fossem os fãs fervorosos que reagiam a cada momento ou apenas espectadores curiosos. Numa segunda visualização, acaba por não ser tão surpreendente, e faz-nos desejar uma exploração mais dedicada da música que compõe os seus álbuns camaleónicos. Talvez a maior valência do espectáculo com estes moldes seja mostrar-nos que podemos fazer e ser o que quisermos, abrindo possibilidades e trazendo conforto aos outcasts, particularmente atraídos pela sua música. Nesse aspecto, tem todo um mérito diferente.

Arca. Fotografia: João Rosa / CCA

Depois disto, os suecos Little Dragon acabam por exacerbar o seu estatuto de aposta segura, com a sua música que soa bem, mas não é particularmente surpreendente ou entusiasmante. Alguns momentos puxam mais pelo público, como a apoteose de “After the Rain” ou a rendição de “Wildfire”, canção de SBTRKT na qual a banda participa, mas a sua postura em palco não inspira tanta energia como as batidas constantes e explorações de teclas requeriam.

Talvez o espaço mais desadequado do festival tenha sido o auditório, a que concertos com bastante energia foram relegados, como foi o caso de Dino d’Santiago, artista que está em ascensão meteórica, provando-o com um concerto para uma sala cheia, no qual explorou o mais recente Mundu Nôbu. Com uma descontracção advinda de uma carreira já relativamente longa e cheia, Dino pôs a sua voz na frente e levou-a a pontos a que a sua música de estúdio não costuma chegar. “Nova Lisboa” foi particularmente bem recebida, tanto pelo contexto como pela sonoridade cativante e punchline que obrigou todos a cantar “Qual é a ideia?”.

Dino d’Santiago. Fotografia: João Rosa / CCA

Antes de si, Kamaal Williams trouxe a sua imagem de marca, a improvisação. Atrasos e sobreposições não nos permitiram assistir a mais do que o início do espectáculo, mas a ideia que ficou do primeiro número musical foi a de uma construção baseada no ritmo, com pequenas variações, mas que acabavam por não chegar a lado algum. Não ajudou que os teclados de Kamaal estivessem com um feedback que lhes tirava a definição jazz tão agradável das versões em estúdio. A longa duração do concerto faz-nos crer que o espectáculo acelerou, mas parece que teremos de o comprovar em futuras ocasiões.

No entanto, um dos melhores espectáculos que vimos no festival foi o de Vessel. O artista britânico aliou-se a Pedro Maia, que esteve a cargo do espectáculo audiovisual, composto por três ecrãs alinhados que exploraram a componente visual da música confrontacional do artista. Inicialmente mais direccionada para sonoridades ambiente e drone, as canções combinavam camadas vocais ou sintetizadores dissonantes para criar um efeito amorfo que inicialmente repeliu, mas acabou por nos impedir de sair do auditório tão depressa. Quando começaram as batidas violentas e luzes estroboscópicas desorientadoras, apenas a perspectiva de ir ver Madlib nos levantou do assento. Foi pena o público ser tão pouco para assistir a algo tão hipnótico. Foi a nossa porta de entrada no festival e não poderia ter sido melhor.

Vessel. Fotografia: João Rosa / CCA

Muito diferente do que o antecedeu foi o concerto de Pedro Mafama. Logo à entrada, é-nos feito o aviso de que a sua música não é para ouvir sentado. Como tal, as pessoas ocuparam as escadas e frente do palco para poder dançar ao som dos beats quebrados que vão beber a diferentes fontes de inspiração. Com o público recheado de amigos do artista, o ambiente que se viveu foi de folia. O concerto abriu logo com “Jazigo”, o primeiro grande single da sua carreira, cantado por grande parte de quem estava presente. Os primeiros passos para o seu reconhecimento estão dados e, a partir daqui, parece que será sempre a subir.

Os restantes dois palcos, em salas normalmente dedicadas a reuniões e conferências, acolheram uma série de diferentes géneros, que balanceavam os crowd-pleasers dos recintos principais e trouxeram uma variedade impressionante, uma das mais-valias do festival. Por exemplo, ao mesmo tempo que Vessel trazia o noise e drone das profundezas da Terra e Madlib partilhava os seus beats, pudemos assistir a Dead End a soltar as suas batidas agressivas de dubstepbreakbeat, assim como dançar ao som do techno saltitante que Varela passava. Uma das salas dedicou-se ao hip hop tuga, com quatro horas de curadoria da editora Parkbeat, que trouxe vários artistas para fazer a festa. Xinobi teve direito a dois sets diferentes (um deles para substituir Moullinex, que cancelou a sua actuação) e Rui Maia mostrou um lado mais progressivo do que aquele que a sua música em Mirror People ou X-Wife deixam mostrar.

Rui Maia. Fotografia: João Rosa / CCA

A fechar as noites, nomes fortes da música electrónica vieram demonstrar os seus dotes. Pearson Sound, já há algum tempo a fazer falta nos nossos festivais dedicados à electrónica, veio passar a sua IDM (Intelligent Dance Music) a uma hora cujo início pedia mais coração e menos cérebro. Foi quando chegou a beats mais relacionados com o footwork que começou a entusiasmar o público e a levantar o som até níveis dignos de noites de clubbingDJ Nigga Fox, porta-estandarte da batida lisboeta, veio partilhar o centro musical fulgurante da capital. Hunee trilhou mais por uma onda tropical e sons reminiscentes dos anos 80, o que deu azo a danças divertidas e despreocupadas, boas para terminar o festival.

O conceito bem definido é refrescante na paisagem de festivais portugueses já algo saturada. Apesar das poucas horas que a maioria das pessoas passou no ID_NO LIMITS, sai-se com a sensação de se ter experienciado muitas coisas diferentes. Não poderíamos querer um resultado mais adequado a um festival que se assume sem limites.

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