“Isto é um Negro?” é um manifesto diante de uma história contada pela metade
Os atores Ivy Souza, Lucas Wickhaus, Mirella Façanha e Raoni Garcia insurgem-se contra a massa forte de cadeiras brancas no meio do palco, com a força e determinação de quem tenta empurrar uma montanha. Mirella assume-se como “boca das desgraças que não têm boca”; Lucas, “filho de Carnaval”, lembra a pertinência do eterno clássico dos Racionais MC’s enquanto diz que “me ver pobre, preso ou morto já é cultural”; Ivy sublinha que a Alemanha olha com um misto de horror e vergonha para o holocausto, ao mesmo tempo que o passado colonizador de Portugal é celebrado. Isto é um Negro? é um espectáculo que, garante a directora Tarina Quelho, mostra uma realidade “difícil de engolir”. Mas rodeios não levam a lado nenhum se “o mundo é assim mesmo”, e, no fim das contas, “você precisa de cuspir o caroço se quer comer a melancia”.
“A gente está morrendo há muitos anos”, conta Mirella, dois dias antes da apresentação de Isto é um Negro? no Teatro Carlos Alberto, a propósito da quinta edição do Mexe. A actriz sabe que “conseguimos chegar a lugares muito difíceis de chegar para a população negra”, mas, por outro lado, salienta que as diversas temáticas levantadas no espectáculo “precisam de começar a ser discutidas ontem”. Para Tarina, é fundamental, por exemplo, desmistificar a ideia de que “o racismo é algo que só acontece nas nossas cabeças”. A coordenadora do grupo acredita que “nem tudo o que está na peça é autobiográfico, mas tudo poderia ser”: algures entre o registo cronístico e a ficção, ela “reflecte uma experiência que é partilhada colectivamente por qualquer pessoa negra”.
Se, conforme escreveu o filósofo e ensaísta Frantz Fanon, “os oprimidos acreditarão sempre no pior a respeito de si mesmos”, os intérpretes de Isto é um Negro? discorrem sobre os diferentes mecanismos que alimentam e dão forma a um racismo estrutural no Brasil e no mundo. Com um sentido de humor apurado e sem medo de derrubar a quarta parede, porque “a vida não é um palco”, os actores lançam um olhar sobre a escravatura e as suas vozes silenciadas, e o espaço em que se encontram é usado como um local onde essas vozes têm, à sua disposição, um megafone.
Os quatro corpos nus em palco – Tarina afirma que “o nu tem vontade de esfregar alguma coisa na cara da plateia”, se calhar um lado da história “que as pessoas nem sempre estão dispostas a encarar” – procuram criar diálogos possíveis sobre a negritude. O plural aqui é importante, até porque, sustenta Mirella, “não existe uma negritude ou um único jeito de existirmos enquanto pessoas negras”. A própria ideia de ‘negro’, sugere Tarina, parece “uma invenção”, o que faz com que o título da peça adquira um tom provocador e inquietante. “O que é ser negro? Você sabe?”, conclui a dramaturga.
Fartos de lhes ser negado um lugar no canto da mesa e eternamente insatisfeitos com os livros escolares, que não fizeram o trabalho de casa todo ou olham apenas para um lado da moeda, os criadores de Isto é um Negro? têm uma série de coisas a dizer sobre os mitos que perduram há 500 anos e que continuam a ser glorificados. Porque já houve quem os tentasse calar, e porque sabem o quão preciosa é uma plateia disposta a ouvir, falam como se não houvesse amanhã. E porque o racismo não é algo que acontece só na cabeça, os Racionais MC’s, a banda de hip-hop lembrada por Lucas, deixam o aviso: “olha quem morre / veja você quem mata”.