Jacob Collier e Snarky Puppy: os professores estão em palco
Depois do hip hop e neo soul dos The Roots e o pop R&B de Jessie J, o terceiro dia do EDP Cool Jazz trouxe a Cascais uma mistura de sonoridades, proporcionada pela habilidade instrumental e vocal dos Snarky Puppy e de Jacob Collier. O hipódromo Manuel Possolo foi o palco para música que fez jus ao nome do festival, incorporando-o com outros géneros musicais. Foi um espectáculo que agradou a gregos e troianos, que é como quem diz: tanto a melómanos tímidos, como aqueles mais dançarinos.
Mas antes dos “nomes grandes” — e de forma igualmente destra — foi a vez de Guilherme Melo, em formato trio, introduzir a noite no parque Marechal Carmona com o seu jazz titilante. O baterista fez-se acompanhar por um baixista e pianista e mostrou música rápida, com apontamentos de teclas a adornar o seu ritmo frenético e solos de walking bass a complementar as batucadas intensas. Notou-se versatilidade de um artista que já colaborou com nomes como Pedro Abrunhosa, Dead Combo ou Salvador Sobral, e foi uma introdução adequada, digna da viagem sonora em que tínhamos acabado de embarcar.
Após o término das Cascais Jazz Sessions, foi a vez do artista britânico Jacob Collier brilhar. Em quê, exactamente? Tudo talvez seja uma palavra muito forte, mas foi lá perto. Collier mostrou a sua perícia numa multitude de instrumentos, em arranjos vocais impressionantes e melódicos — ainda que por vezes tenha acusado alguma fadiga na voz — e como frontman irrequieto e afectuoso. Arrancou o concerto qual personal trainer de a capella a guiar o público e a “tocá-lo” como se fosse um instrumento, introduzindo com ajuda de todos “With The Love In My Heart”. Só nesse tema tocou piano, slapping no baixo e, para espanto de todos, pandeireta! Independentemente do instrumento, Collier tocou-os de forma exímia, entoada com muito entusiasmo.
O prodigioso músico começou por mostrar a sua habilidade em diversos instrumentos e ritmos, e, logo a seguir, a sua qualidade na composição, ao transitar para “Hideaway” sem o público dar por isso. Nesta balada intimista e expansiva, mostrou orgulhosamente o seu falsetto em arranjos melódicos com os seus colegas de palco, que curiosamente não eram os seus seus cinco “irmãos”. Mas os músicos que lhes tomaram o lugar fizeram um excelente trabalho, tanto que Collier aproveitou o final da música para os apresentar. “Como se estão a sentir, Estão a divertir-se?”, questionou o artista, antes de dividir o público num concurso de apoio caloroso e responder à sua pergunta da maneira mais interactiva possível.
“Don’t You Know” trouxe a festa e a dança de volta para a actuação, sendo o tema onde se sentiu verdadeiramente o funk na música de Jacob Collier. Mas, ao longo de todo o serão, algo transpareceu mais que tudo o resto: a harmonia na música deste compositor e os arranjos vocais fabulosos que constrói replicados ao vivo. E ainda que esta riqueza sonora seja melhor apreciada em versão de estúdio, Collier fez o máximo para a transpor para uma atmosfera ao vivo e até melhorá-la. Em “Djesse”, cobriu a sua voz de efeitos digitais armado com um vocoder e teclas, seguido de um espectáculo vocal a lembrar Bon Iver, com múltiplas notas a serem cantadas pela voz do artista. Custa a acreditar que conjurou arranjos como estes no seu quarto.
Já no final do espectáculo, “Smile” foi cantado e tocado por Collier ao piano de forma solene, incorporando o espírito de Nat King Cole na sua actuação e honrando este ícone do jazz de forma adequada. Mas o jovem artista não estava pronto para se despedir. Pediu o apoio do público para tocar uma última música e “All Night Long” garantiu-nos que, apesar de Jacob Collier ficar por aqui (será que fica mesmo?), a festa ia continuar. Foi um espectáculo que encheu a noite com riqueza vocal, para depois Snarky Puppy mostrarem o encanto que as grandes músicas instrumentais têm.
Apresentaram-se nove artistas em palco; mas, ao longo dos anos, a banda liderada pelo baixista Michael League mostrou-se ao vivo com diferentes alinhamentos. É um elenco que se vai alterando ao longo do tempo, mas nunca deixa de ser “The Fam”, uma colectiva musical que constrói temas intrincados e desafiantes com melodias harmoniosas. Só em Immigrance — o álbum mais recente da banda, lançado no início deste ano — participaram 19 intérpretes. Foi com esse álbum que os Snarky Puppy abriram a actuação: “Even Us” deu o mote certo para um espectáculo caracterizado pela enorme destreza dos membros da banda, com um solo de percussão absolutamente insano.
A fugaz “Semente” levou-os a Culcha Vulcha e “Tarova” manteve-nos lá, embalados pelo seu riff intermitente de piano. Após “Bad Kids To The Back”, League aproveitou para apresentar alguns membros que estavam em palco e deixar elogios a Jacob Collier — “um bom amigo desta banda”. “Há quanto tempo é que estivemos cá? Demasiado tempo, é esta a resposta”. O frontman lembra uma história de uma reacção alérgica a marisco de um dos membros da banda, antes de “Thing of Gold” recuar até 2012 e groundUP, com um grande solo de teclas a tomar de assalto a música.
Ao longo de todo o espectáculo, o público foi invadido por uma vontade de dançar ao som da multitude de notas que ouvimos soar, com um encanto capaz apenas de ser transmitido por um profissional da arte sonora. Os músicos percorreram o espectro cromático de notas com o mesmo entusiasmo com que o público o recebia, e essa união foi extremamente clara em “Chonks”. Dotada de um groove que escapa por entre arranhares de um riff comandante de guitarra eléctrica, a música atingiu o seu apogeu no grande solo desse instrumento, com todos os outros artistas a manterem a atmosfera com estilo e de forma impecável.
Na última música do alinhamento principal, League dirigiu-se ao público. “Para esta próxima música preciso da vossa ajuda. Vamos fazer um pequeno exercício de ritmo.” Dividiu o público em duas partes e instruiu-as em diferentes ritmos, para tocar ao seu sinal. “Pensamento de músico: não penses só na tua parte; pensa em como soa com o resto do grupo.” Depois da lição, “Xavi” soou rápida com a sua bateria sincopada e solos de sopro pelo meio. Ao sinal de League, o público deu o seu melhor num complicado exercício de ritmo. Depois dos vários membros da banda serem apresentados, os Snarky Puppy despediram-se, mas ainda faltava o encore.
Guardaram um dos seus maiores êxitos para o final, mas “Shofukan” foi tocada com o vigor de quem tinha acabado de começar o concerto. No entanto, no final desta potente actuação, os Snarky Puppy ainda tinham mais uma surpresa na manga: Jacob Collier juntou-se à banda para um solo de teclado em “What About Me”. São um artista e um grupo diferentes, mas há algo que os une: ambos querem ensinar, construir, fazer da música uma aprendizagem e fazer do público um aprendiz colectivo. Saímos à noite para ver e ouvir música e, especialmente neste concerto, actuámos a noite toda. Com as nossas mãos, com as nossas vozes, com os nossos moves. Foi uma celebração da música e, no final, os nossos professores estavam em palco, orgulhosos dos fãs e alunos.