Jean-Luc Godard assombra em Cannes, via Facetime, e questiona o mundo com novo filme
Afinal de contas, Godard veio a Cannes. E da forma mais insólita. Marcando presença na conferência de imprensa para falar ao telefone via Facetime com os jornalistas.
Livre d’Image, de Jean-Luc Godard, já era um evento de Cannes mesmo antes de iniciar o festival e de ser mostrado a primeira vaga de cinéfilos vorazes e em sorver a nova obra de arte do mago do cinema. Nem que seja para voltar a eterna pergunta: “O que é o cinema?” Como sempre, JLG não fornece respostas, mas deixa as pistas todas. Aqui num documento artístico que vai muito para além do cinema, talvez mais uma obra universal sobre a condição humana, que poderia ensinar muito sobre as imagens do cinema. Se recordarmos Adeus à Linguagem ou Filme Socialismo, passaram ambos em Cannes e receberam prémios, como Livre d’Image deverá receber também, percebemos que se prolonga esse percurso de questionar uma verdade que ultrapassa as imagens.
JLG tem sido uma personagem omnipresente em Cannes. Depois de ter estado em Cannes o ano passado, mais sobre evocação do que fisicamente, com o filme de Le Redoutable, de Michel Hazanavicius (que em língua inglesa recebeu o titulo caloroso de Godard Mon Amour), com Louis Garrel a assumir (de forma conseguida, diga-se) a personagem Godard, no período em que vive com Anne Wiazemsky, e ainda no documentário da amiga Agnès Varda, Visages Vilages, se bem que de forma igualmente não corpórea. Este ano faz o cartaz oficial do festival, com o par Anna Karina e Jean-Paul Belmondo, em Pedro, o Louco, de 1965, e ainda com este filme em competição que partiu da colaboração entre o cineasta suíço Fabrice Aragno, o produtor de Godard Jean-Paul Battaggia e a professora de cinema avant-garde Nicole Brenez.
De certa forma só os menos avisados, ou incautos, poderiam esperar algo diferente de uma reflexão estética sobre o mundo das imagens em que vivemos. Por isso mesmo, Livre D’Image será mais do que um filme, uma vez que JLG sempre enxergou mais adiante e recusou verdades imutáveis, partilhando um filme (des)organizado em capítulos, e cuja ficha técnica surge bastante antes do final.
Talvez por isso seja mais útil encarar este livro de imagens como o trabalho exaustivo de um artista avant garde e de um filósofo. Por isso mesmo, não questionamos as suas opções narrativas sempre tão fragmentadas pela edição, ou talvez melhor pela colagem – e nesse aspecto torna-se muito relevante o importância gestual da mão como parte desse trabalho – como não questionamos o gesto criativo de um pintor.
São as imagens, os sons, ou a sua voz rouca, em off, a dizer, ou a contradizer, – um pouco como Srebrennikov quando revela em Leto isto não aconteceu, mas também os silêncios e o ecrã vazio, os erros. Sempre com fragmentos de filmes, como o cuidado em que mostra o esplendor do technicolor e o diálogo tenso entre Sterling Hayden e Joan Crawford, no muito amado Johnny Guitar, o clássico de Nicholas Ray, seguramente um dos momentos ‘mais lá de casa’ de João Benard da Costa.
Sim, trata-se de um cinema também como instrumento politico, afinal de contas como grande parte do cinema de JLG, pleno de fragmentos vídeo reportagem de atrocidades, com um dedo apontado para a Palestina.
Goste-se ou não, Livre d’Image mostra um documento histórico tremendo, vigoroso e fortíssimo, demasiado valioso para ser subestimado. Até porque teremos de regressar a ele, pois a forma como o realizador de 87 anos sintetiza a sua maneira de encarar o mundo merece todo o nosso esforço e até uma certa perplexidade, neste processo de constante maturação que compõe este ‘Livro’, como se fosse uma pintura multimédia criada num momento de êxtase criativo. Por isso mesmo, apreende-se como algo maior que um filme, mais como uma obra multimédia avassaladora, em que se assumem erros propositados, de som, de imagem, como que a dizer que assim se torna mais terreno, mais humano e menos semi-Deus. Como se classifica uma obra assim? De forma igualmente radical.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt