Jean-Luc Godard assombra em Cannes, via Facetime, e questiona o mundo com novo filme

por Paulo Portugal,    12 Maio, 2018
Jean-Luc Godard assombra em Cannes, via Facetime, e questiona o mundo com novo filme
‘Le Livre d’Image’

Afinal de contas, Godard veio a Cannes. E da forma mais insólita. Marcando presença na conferência de imprensa para falar ao telefone via Facetime com os jornalistas.

Livre d’Image, de Jean-Luc Godard, já era um evento de Cannes mesmo antes de iniciar o festival e de ser mostrado a primeira vaga de cinéfilos vorazes e em sorver a nova obra de arte do mago do cinema. Nem que seja para voltar a eterna pergunta: “O que é o cinema?” Como sempre, JLG não fornece respostas, mas deixa as pistas todas. Aqui num documento artístico que vai muito para além do cinema, talvez mais uma obra universal sobre a condição humana, que poderia ensinar muito sobre as imagens do cinema. Se recordarmos Adeus à Linguagem ou Filme Socialismo, passaram ambos em Cannes e receberam prémios, como Livre d’Image deverá receber também, percebemos que se prolonga esse percurso de questionar uma verdade que ultrapassa as imagens.

Jean-Luc Godard via Facetime

JLG tem sido uma personagem omnipresente em Cannes. Depois de ter estado em Cannes o ano passado, mais sobre evocação do que fisicamente, com o filme de Le Redoutable, de Michel Hazanavicius (que em língua inglesa recebeu o titulo caloroso de Godard Mon Amour), com Louis Garrel a assumir (de forma conseguida, diga-se) a personagem Godard, no período em que vive com Anne Wiazemsky, e ainda no documentário da amiga Agnès Varda, Visages Vilages, se bem que de forma igualmente não corpórea. Este ano faz o cartaz oficial do festival, com o par Anna Karina e Jean-Paul Belmondo, em Pedro, o Louco, de 1965, e ainda com este filme em competição que partiu da colaboração entre o cineasta suíço Fabrice Aragno, o produtor de Godard Jean-Paul Battaggia e a professora de cinema avant-garde Nicole Brenez.

De certa forma só os menos avisados, ou incautos, poderiam esperar algo diferente de uma reflexão estética sobre o mundo das imagens em que vivemos. Por isso mesmo, Livre D’Image será mais do que um filme, uma vez que JLG sempre enxergou mais adiante e recusou verdades imutáveis, partilhando um filme (des)organizado em capítulos, e cuja ficha técnica surge bastante antes do final.

Talvez por isso seja mais útil encarar este livro de imagens como o trabalho exaustivo de um artista avant garde e de um filósofo. Por isso mesmo, não questionamos as suas opções narrativas sempre tão fragmentadas pela edição, ou talvez melhor pela colagem – e nesse aspecto torna-se muito relevante o importância gestual da mão como parte desse trabalho – como não questionamos o gesto criativo de um pintor.

Jean-Luc Godard

São as imagens, os sons, ou a sua voz rouca, em off, a dizer, ou a contradizer, – um pouco como Srebrennikov quando revela em Leto isto não aconteceu, mas também os silêncios e o ecrã vazio, os erros. Sempre com fragmentos de filmes, como o cuidado em que mostra o esplendor do technicolor e o diálogo tenso entre Sterling Hayden e Joan Crawford, no muito amado Johnny Guitar, o clássico de Nicholas Ray, seguramente um dos momentos ‘mais lá de casa’ de João Benard da Costa.

Sim, trata-se de um cinema também como instrumento politico, afinal de contas como grande parte do cinema de JLG, pleno de fragmentos vídeo reportagem de atrocidades, com um dedo apontado para a Palestina.

Goste-se ou não, Livre d’Image mostra um documento histórico tremendo, vigoroso e fortíssimo, demasiado valioso para ser subestimado. Até porque teremos de regressar a ele, pois a forma como o realizador de 87 anos sintetiza a sua maneira de encarar o mundo merece todo o nosso esforço e até uma certa perplexidade, neste processo de constante maturação que compõe este ‘Livro’, como se fosse uma pintura multimédia criada num momento de êxtase criativo. Por isso mesmo, apreende-se como algo maior que um filme, mais como uma obra multimédia avassaladora, em que se assumem erros propositados, de som, de imagem, como que a dizer que assim se torna mais terreno, mais humano e menos semi-Deus. Como se classifica uma obra assim? De forma igualmente radical.

Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt

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